The Fall of the Stars: Capítulo 5 - O Espetáculo tem que continuar
- AngelDark

- 14 de jul.
- 53 min de leitura
Volume 4 : Fragmentado
Parte 1
Enquanto avançavam pelo imponente corredor, o grupo observava os painéis de mogno polido e as decorações clássicas e sofisticadas. O caminho serpenteava e estreitava-se sem aviso, pontuado por portas de tamanhos variados – algumas, curiosamente, abrindo diretamente para paredes sólidas. Pequenos lances de escada surgiam abruptamente e não levavam a lugar algum, quebrando a lógica do espaço. Janelas internas ou vitrais exibindo cenas incongruentes aumentavam a sensação de desorientação. Detalhes luxuosos, como arandelas de bronze, coexistiam com a estranheza de lâmpadas nuas pendendo do teto ou trechos de construção inacabada. Era um ambiente de grandiosidade intencional, subvertida por uma arquitetura labiríntica, caprichosa e profundamente inquietante.
— O que você acha? — Kai perguntou, enquanto caminhava com a expressão fechada.
— Sobre o quê?
— Sobre quem é o assassino, óbvio!
— Por que você acha que eu deveria saber? — Dante retrucou, parecendo um pouco cansado da insistência.
— Eu não sou cego. Já notei que você é bom com essas merda, por isso te segui. Responda logo e vamos resolver isso de uma vez. Quanto antes terminarmos, mais cedo podemos sair daqui.
Dante o encarou por um momento.
— Se não queria ficar comigo, por que decidiu vir?
— O que mais eu poderia fazer? Além do mais, e se você fosse morto pelo assassino antes de eu ter a chance de te vencer? Nunca aceitaria uma vitória assim.
Dante ignorou o comentário e continuou seguindo em frente, seus olhos perscrutando cada detalhe do corredor.
— Com licença? — Hyori, que os seguia em silêncio, finalmente falou, a voz um pouco hesitante.
— que foi? — Dante perguntou, sem desviar o olhar das paredes.
— É que... o senhor Kai parece ter certeza de que você sabe a resposta, senhor Dante. Mas eu não entendo o porquê. Poderiam me explicar?
— hum — Kai interveio, vendo que Dante continuava absorto em suas observações. — É simples, esse maldito Dante percebeu alguma coisa importante lá na reunião, algo que ele não contou porque ainda não tinha certeza absoluta. Mas aposto que ele já tem uma ideia bem clara de quem é o assassino.
A atenção de Dante foi subitamente capturada por uma porta entreaberta mais adiante, a do quarto de um dos hóspedes. Fazendo um gesto silencioso para que Kai e Hyori esperassem, ele entrou com cautela. O quarto estava empoeirado, mas sobre uma pequena escrivaninha, um envelope se destacava. Dante o pegou. Era uma carta, endereçada a Asriel. Nela, uma mensagem curta e direta instruía Asriel a ir até o quarto de Lorelei o mais rápido possível.
Dante franziu a testa, mostrando a carta para Kai e Hyori.
— Isso pode ser a isca — Kai murmurou. — Levar Asriel a um local específico... talvez uma armadilha.
— Não está sozinho... — Dante murmurou, os olhos estreitando-se em pensamento.
Kai então começa a falar encarando o resto do quarto.
— Falando nisso... Heisen. Ele mentiu, não foi? Sobre estar no vagão restaurante com a Anna no início. Nós estávamos lá, e não vimos nenhum dos dois.
— Você está certo — Dante concordou, guardando a carta cuidadosamente. — O álibi deles sempre pareceu frágil. E tem mais: Vivian me disse mais cedo que passou a manhã inteira perto da cozinha e garantiu que estava vazia. No entanto, Heisen e Anna afirmaram ter passado a manhã lá.
— Eu sabia! — Kai exclamou, mais irritado do que surpreso. — Eu os vi mais cedo, perto dos fundos da mansão, cochichando como se estivessem tramando algo. Definitivamente não estavam na cozinha!
Intrigados com a menção dos fundos da mansão, decidiram investigar aquela área. Ao dobrarem um corredor que levava a uma ala menos utilizada, encontraram uma cena inesperada: Love estava ajudando Belltrylis a se levantar do chão. Belltrylis parecia atordoada e tinha um galo na testa.
— O que aconteceu? — Hyori perguntou, correndo para ajudar.
— Foi o Heisen... e a Anna — Belltrylis explicou, a voz trêmula. — Eu estava investigando por aqui e os ouvi conversando em segredo. Quando tentei me aproximar para ouvir melhor, Heisen me viu... Ele me acertou com alguma coisa e apaguei. Quando acordei, eles tinham sumido. Love me encontrou agora há pouco.
Mal tiveram tempo de processar a gravidade da situação quando gritos agudos e aterrorizados ecoaram pela mansão, vindo de um andar acima. Sem hesitar, os três, agora acompanhados por Love e uma Belltrylis ainda cambaleante, correram na direção do som.
Ao chegarem a um salão ornamentado, a cena era macabra. Blade estava caído no chão, inconsciente. Perto dele, jaziam os corpos sem vida de Aquiles e Asriel, em poças de sangue que manchavam o tapete caro. Um outro grupo – composto por Kalluto Gallagher, Nova Sengrard e Mikasa Loufen – já estava lá, paralisados de horror. Mikasa estava pálida, explicando que tropeçou em um dos corpos no escuro parcial, soltando o grito que ouviram.
Dante ajoelhou-se imediatamente, examinando os corpos de Asriel e Aquiles. Novamente, tirando o sangue e a palidez mortal, não havia sinais de luta. As feridas fatais pareciam ter sido causadas por algum tipo de lâmina afiada e precisa, semelhante ao primeiro assassinato. Ele se voltou para Blade, tentando gentilmente acordá-lo, procurando por ferimentos.
Foi então que, de repente, as poucas luzes que ainda funcionavam no salão piscaram e se apagaram completamente, mergulhando todos na escuridão total. Quase simultaneamente, uma névoa fria e espessa começou a surgir do chão e das paredes, preenchendo rapidamente o ambiente com uma bruma leitosa e opaca.
Dante sentiu uma pressão estranha, uma sensação de isolamento súbito. Ele chamou por Kai e Hyori, mas sua voz pareceu ser engolida pela névoa. Tentou sentir a presença deles, o ether que normalmente emanava dos outros, mas não sentiu nada. Era como se estivesse completamente sozinho naquele breu enevoado. E ele teve a terrível sensação de que o mesmo estava acontecendo por toda a mansão, separando todos os grupos, deixando cada um à mercê do que quer que estivesse à espreita naquela névoa sinistra.
A escuridão e o silêncio opressor eram um convite ao pânico. Em uma situação assim, a maioria das pessoas responderia da mesma forma: encolhidas, isoladas na presença invisível de um assassino, a desconfiança como um veneno gelado nas veias. Todos à volta eram suspeitos. Mais de uma morte já manchara os corredores da mansão, os alvos e objetivos do criminoso permaneciam um enigma sombrio, e a próxima vítima poderia ser qualquer um. Pânico, medo, nervosismo – sentimentos que paralisam, que transformam pernas em chumbo, impedindo qualquer reação lúcida.
Mas ali, as regras da normalidade pareciam distorcidas. Enquanto a névoa artificial começava a se dissipar como um véu rasgado, revelando os contornos fantasmagóricos dos móveis e tapeçarias, algo perturbador aconteceu. Os Scarlune presentes, ao invés de sucumbirem ao medo, ergueram o olhar. Um brilho estranho, quase febril, acendeu em seus olhos e um sorriso se espalhou por seus lábios. Sem hesitação, começaram a caminhar, passos firmes sobre os tapetes caros, movendo-se através dos resquícios de névoa como se seguissem um chamado inaudível, um destino que só eles conheciam.
"O jogo já começou." O pensamento ecoou na mente de cada um deles, uma ressonância silenciosa enquanto avançavam, indiferentes ao caos.
Ainda envolto nos últimos fiapos da névoa leitosa, Dante parou, um sorriso predatório se formando em seus lábios ao sentir a mudança na atmosfera, o ar vibrando com uma nova tensão.
— Agora preciso acabar com isso logo, pois senão vou perder a diversão… Empolgante! — murmurou para si mesmo, a voz um sussurro rouco que mal perturbava o silêncio do corredor, antes de retomar sua caminhada decidida.
Não muito longe dali, em outra ala da mansão, Akira, de pé junto a uma janela alta que agora revelava um jardim obscurecido pela noite, terminava de retirar a luva de couro negro. Com a mão nua, ele tocou a última ondulação densa de névoa que se agarrava ao vidro. Não houve esforço, nem energia visível; a névoa simplesmente se desfez ao seu toque, evaporando como fumaça sob um sol inexistente. O corredor atrás dele clareou instantaneamente, revelando detalhes antes ocultos nas sombras. O som de passos hesitantes recomeçou em outros pontos da mansão, um sinal de que a visão retornara a todos.
— Vamos! — A voz de Hyori cortou o silêncio próximo a Kai, surpreendentemente firme, desprovida da hesitação que ele conhecia. Ela estava parada, postura ereta, os olhos fixos no corredor à frente com uma intensidade desconhecida. — Precisamos agir para pegar o culpado!
Kai a encarou, a confusão nublando seu rosto. Aquela não era a Hyori que tropeçava em deduções simples. A confiança dela era quase palpável, a forma como ela já parecia analisar o ambiente, tudo era... diferente.
— Mas quem é você…? — ele começou, a pergunta morrendo em seus lábios. Havia algo no olhar dela, uma certeza fria, que o fez engolir as palavras e apenas assentir, sentindo um arrepio percorrer sua espinha.
— Padrão Registrado — Hyori murmurou, mais para si mesma do que para Kai, antes de começar a andar. Seus movimentos eram fluidos, precisos, desviando de um vaso derrubado no chão sem sequer olhar para ele.
Kai a seguiu, seus próprios passos mais cautelosos no corredor agora visível, mas ainda sinistro. Como ela sabia onde ele estava na névoa? Nenhum dos dois estava na sala original. Ele quase tropeçou em uma pequena estátua de bronze no chão, algo que Hyori contornou como se sempre soubesse que estava ali. O murmúrio dela, "Padrão Registrado", ecoou em sua mente. Padrão de quê? De movimento?
"Não, não pode ser isso," pensou Kai, a testa franzido. "Há pouquíssimo tempo, ela precisou que eu explicasse a simples linha de raciocínio de Dante... Será que... essa mudança...?" Ele observou as costas dela, a forma como ela avançava com propósito.
Enquanto Kai lutava com suas dúvidas, Akira se aproximava de sua empregada, Mikasa, que estava encostada em uma parede, ainda piscando para se ajustar à luz repentina.
— Mikasa. — A voz de Akira era calma, mas carregada de urgência. Ele parou ao lado dela, o olhar varrendo o corredor. — Não temos mais tempo a perder. O assassino entrou em desespero. Vamos acabar logo com isso.
Mikasa endireitou-se, a confusão ainda visível em seus olhos, mas a disciplina assumindo o controle. Assentiu e preparou-se para segui-lo.
— Espere, Mestre Akira... — ela hesitou, a mão roçando o tecido do próprio uniforme. — Como assim, desesperado? O que aconteceu?
Akira virou-se parcialmente, o olhar encontrando o dela.
— Quando foi sugerido que nos separássemos, todos ouviram. Ninguém se opôs abertamente, lembra? Nem mesmo quem suspeitávamos. Parecia que o assassino tinha aceitado, talvez até preferido, a separação inicial. — Ele fez uma pausa, o olhar se desviando para a janela onde a névoa se dissipara. — Mas então, veio essa névoa. Uma tática idiota. Uma tentativa de nos desorientar depois que já estávamos nos movendo. Por quê? Foi uma péssima ideia.
Ele gesticulou levemente com a mão desnuda.
— Eu posso dissipar isso facilmente. Outros aqui têm habilidades semelhantes ou instintos aguçados o suficiente para navegar mesmo no escuro ou em ilusões. Foi um erro tático grosseiro. — Ele voltou a encarar Mikasa. — Agora, pense: alguém que orquestrou tudo com precisão até agora cometeria um erro tão óbvio por impulso?
Mikasa franziu a testa, processando.
— Não... ele parecia ter controle total.
— Exato. — Akira assentiu, um brilho de compreensão fria nos olhos. — As coisas provavelmente saíram do controle dele. Outra pessoa agiu, forçando a mão do nosso assassino original, fazendo-o reagir sem pensar. E isso... isso muda tudo.
O som abafado de passos em um tapete grosso nos guia para outro corredor mal iluminado. Beatrice e Brighid carregavam Belltrylis, cujo rosto estava pálido de dor.
— E você acha que essa ação inesperada... a que fez o assassino se atrapalhar com a névoa... foi a morte de Asriel? — Brighid perguntou em voz baixa, olhando por sobre o ombro, seus sentidos alerta a qualquer ruído.
— É... pelo menos... a minha suspeita... — Belltrylis conseguiu dizer, a voz fraca, a mão pressionando a têmpora.
Beatrice ajustou a forma como carregava Belltrylis, sentindo o quão leve ela estava. "Incrível! Mesmo com dor, ela ligou os pontos... Tão pouca informação e ela já suspeita da causa do desespero..."
— Eu sinto muito... — Belltrylis continuou, fechando os olhos brevemente. — Minha teoria... acaba aí. Tenho certeza que se Mestre Dante, Senhor Heisen ou Senhor Akira estivessem aqui, já teriam mais pistas concretas...
— Está tudo bem, Bell! — Brighid respondeu rapidamente, tentando injetar alguma leveza. — Eu sou a Scarlune aqui e sou tão cabeça de vento que nem pensei nisso! O que você fez foi incrível, sério!
— Não mereço... tais palavras...
A calma relativa daquele corredor contrasta brutalmente com a cena seguinte. Kai e Hyori pararam abruptamente na entrada de um pequeno salão de leitura. O cheiro metálico de sangue pairava pesado no ar.
— Mas que merda é essa?! — Kai, recuando um passo instintivamente. — Ele ficou tão desesperado que saiu matando a esmo?!
No chão de madeira escura, jaziam mais três corpos: Baltimor Yormun, Lucis Kaiten e Ulter Amphored. Novamente, cortes precisos na garganta. Nenhum sinal de luta, apenas a quietude terrível da morte e o sangue começando a escurecer no chão.
Hyori, no entanto, avançou. Agachou-se perto do corpo mais próximo, o de Lucis Kaiten, seus olhos varrendo a cena com uma frieza analítica que fez Kai estremecer.
— Não, Kai. Olhe. — Ela apontou com o queixo para uma mancha de sangue próxima ao corpo. — O sangue já está ressecando nas bordas. Estão frios. — Ela roçou levemente as costas da mão na bochecha pálida de Lucis, sem demonstrar repulsa. — Ele os matou antes de Aquiles e Asriel. Provavelmente durante o apagão inicial ou logo depois. Além do mais... observe o grupo.
Kai forçou-se a olhar.
— Foram mortos da mesma forma... que os outros...
— Isso também. — Hyori levantou-se, limpando os dedos inexistentes de poeira na calça. — Mas não é disso que estou falando. Pense nos detalhes.
— Então, do que diabos você está falando? — Kai perguntou.
Hyori começou a andar lentamente pelo pequeno espaço, seus olhos passando pelos livros nas estantes, pelos móveis intactos, e voltando aos corpos.
— Todos eles. Estes e os anteriores. Mortos exatamente da mesma forma: um corte único e preciso na garganta. Mas por quê? Se, como você e Dante teorizaram, o culpado original tinha ajuda ou pelo menos cúmplices, por que manter um modus operandi tão específico e reconhecível? Poderiam variar para confundir. — Ela parou, virando-se para Kai. — Mas não, ele continuou. Ou melhor... alguém continuou. Enviando uma mensagem subconsciente.
— Que mensagem? Que o assassino quer que a gente saiba que é ele? Isso é loucura!
— Quase. — Um lampejo de algo que poderia ser satisfação cruzou os olhos de Hyori. — O novo assassino quer que a gente pense que foi o anterior.
Kai piscou, tentando processar. — Espera... por que você...?
— Pense comigo, Kai. — Hyori retomou, agora apontando para os corpos um a um. — Primeiro: a fórmula repetida, quase como se quisesse nos dar uma pista falsa, nos direcionando para o culpado original. Não faz sentido se o objetivo é se esconder. Segundo: a névoa. Concordamos que foi uma ação de nervosismo, certo? O assassino original percebeu que algo saiu do controle, que alguém estava agindo em seu nome ou interferindo. E terceiro, e talvez o mais importante... — Ela fez uma pausa dramática, seu olhar varrendo os três mortos. — Olhe para eles. Baltimor, Lucis, Ulter. Nenhum deles é um Scarlune. Se a teoria principal é que o assassino quer atrasar a eleição da sucessão, matar empregados ou convidados de menor importância não ajuda em nada. Pelo contrário, só reforça a ideia de que o culpado é da família principal, focando a atenção onde talvez ele não queira.
Kai finalmente entendeu, a ficha caindo com um baque surdo em sua mente.
— O assassino original... se desesperou porque percebeu que as mortes desses três... apontariam para a família... e não foi ele quem os matou. É isso?
Hyori assentiu, um brilho calculista nos olhos. — Exatamente. Foi por isso que ele se desesperou e usou a névoa. Uma tentativa falha de controlar o caos que outra pessoa criou.
Longe dali, Dante parava em meio a um corredor ornamentado com retratos ancestrais cujos olhos pareciam segui-lo. Ele inclinava a cabeça, ouvindo o silêncio tenso da mansão, um silêncio agora pontuado pela compreensão.
"Provavelmente," pensou ele, um sorriso fino brincando em seus lábios enquanto seu olhar se fixava em um retrato particularmente sombrio, "o novo jogador está manipulando o antigo. Brincando com ele. Precisava de tempo e espaço, sem ser seguido nem por nós, nem pelo assassino original. E então, a saia justa perfeita: deixar Blade vivo, ferido, mas vivo." Ele passou um dedo pela moldura empoeirada. "Sabia que Blade eventualmente acordaria, que nos levaria até quem o atacou – o novo assassino. Mas, como um sussurro venenoso de 'me proteja', ele manipulou o original para criar a névoa. Uma distração para separar todos, para esconder Blade tempo suficiente. Se Blade falasse, a identidade do novo seria revelada. O caos da névoa era a cobertura ideal."
Nesse instante, como se conectados por fios invisíveis de dedução, os três que assumiam o papel de detetives naquele palco macabro – Dante em seu corredor de retratos, Akira próximo à janela agora límpida, e Hyori diante dos corpos no salão de leitura – chegaram à mesma conclusão sombria. Uma compreensão compartilhada que pareceu pairar no ar tenso da mansão. E, simultaneamente, o mesmo pensamento finalizou suas linhas de raciocínio:
— Isso deixou de ser um jogo de esconde-esconde... e virou um pega-pega.
Parte 2
Nas entranhas rochosas do subterrâneo, sob a imponente cidade de Threshold, a tensão era palpável. Mio, Diane e Amarylis prendiam a respiração, ocultas pela barreira mágica, enquanto observavam Rasputin. Koala, ao lado delas, permanecia se mexendo tentando ir até seu pai, até que Amarylis, com um movimento rápido e pesaroso, a nocauteou com um golpe preciso na nuca.
— A situação acaba de escalar vários níveis — avisou Amarylis, o olhar fixo em Rasputin. — Não faço ideia dos planos desse cara, mas ficar aqui paradas não vai nos ajudar em nada.
Amarylis fez menção de se mover, mas os gestos frenéticos de Mio e Diane a detiveram. Foi então que um som arrastado, ecoou do corredor externo, aproximando-se da câmara oculta. Passos firmes e decididos. Um homem surgiu, envolto em faixas brancas que lembravam um sarashi tradicional, cobrindo-lhe o torso, e com os olhos faiscantes à mostra. parou exatamente na entrada, encarando o vazio onde, para ele, a barreira tremeluzia sutilmente.
— Uma barreira de ocultação bastante eficaz... — sua voz era grave, com um timbre divertido, enquanto seus olhos pareciam perfurar o véu mágico.
Do outro lado, a surpresa estampou-se no rosto de Rasputin.
— Espere, ele consegue ver a barreira? Mas... ela está funcionando ou não? — sussurrou, confuso.
— O que está acontecendo? Quem é ele? — Mio buscou respostas nos olhos de Diane.
Diane suspirou, resignada. — Acho que não há mais como adiar. A verdade é que Threshold abriga muito mais gente do que você imagina, Mio.
— Como assim?
— Threshold e os Scarlune escondem um segredo, nos registros oficiais, a capital é apenas a cidade superior, aquela fachada bela e intocada que todos conhecem. Contudo, logo se percebeu que certos indivíduos Scarlune, com seus poderes voláteis e naturezas complicadas, não poderiam coexistir pacificamente lá sem reduzir a cidade a escombros semanalmente. Assim, foram escavadas cidades inferiores, andares e mais andares nas profundezas do abismo continental, verdadeiros labirintos subterrâneos. Essas cidades não constam em mapa algum, são um segredo bem guardado. Mesmo que forasteiros visitem o continente, dificilmente as encontrariam. Durante as reuniões de família, apenas os Scarlune mais... dóceis e os líderes de casas têm permissão para circular na superfície. Os outros, os mais problemáticos, são direcionados para os níveis inferiores, onde o caos é a norma e as batalhas são comuns no cotidiano. Até mesmo os Scarlune da superfície que costumam causar problemas durante as chegadas dos visitantes eram temporariamente realocados para baixo.
Mio arregalou os olhos. — Espera, então aquele cara...
— Raikou Scarlune — confirmou Diane, com um ar sombrio. — Um dos "problemáticos" encaminhados para os andares subterrâneos.
Raikou não via, não sentia o éter da barreira. A magia era impecável, sem falhas perceptíveis para um observador comum. Mas o detalhe crucial reside exatamente aí: "comum". Raikou Scarlune podia ser descrito de inúmeras formas, mas "normal e comum" definitivamente não era uma delas.
— Consigo sentir... — ele inspirou profundamente, um sorriso selvagem começando a se formar em seus lábios. — Atrás desta névoa... o cheiro metálico de sangue fresco e uma avassaladora sede de combate.
Havia quase cinco mil quilômetros separando a cidade da superfície da primeira camada subterrânea. Aquele corredor onde se encontravam marcava a fronteira entre esses dois mundos. Movido por nada além de um instinto de batalha hiper aguçado, uma bússola interna que apontava para a batalha, Raikou havia caminhado diretamente da cidade subterrânea até aquele ponto isolado, atraído por uma perturbação que ninguém mais notara.
— Que tipo de animal selvagem é você? — disse Rasputin, o encarando com uma mistura de curiosidade e cautela.
Com um movimento fluido, Raikou sacou uma espada de madeira da faixa em sua cintura. Não era uma relíquia ornamentada, mas uma simples bokken, gasta pelo uso. Com um grito que vibrou pelas paredes da caverna, ele a brandiu contra a barreira. O ar estalou. A magia de ocultação se espatifou como vidro, fragmentos etéreos chovendo e se dissipando antes de tocar o chão. Raikou atravessou o umbral, seus olhos varrendo o local. Notou Amarylis, Mio e Diane, o corpo inerte de Koala nos braços da primeira, e o cadáver do pai de Koala ao lado de Rasputin.
Um sorriso ainda mais largo, quase maníaco, rasgou o rosto de Raikou.
— Eu realmente não faço ideia do que está rolando aqui, mas duvido que seja do seu interesse me deixar ir depois de ter visto tudo isso, não é? — Sua voz era um trovão contido. — Sendo assim, não percamos tempo com formalidades inúteis! Vamos começar uma batalha até a morte, aqui e agora!
"Acho que minha pequena brincadeira saiu do controle," pensou Rasputin, um suor frio escorrendo por sua testa. "Sem querer, atraí uma fera selvagem para fora da jaula..." Ele discretamente começou a digitar algo em sua lacrima de comunicação, escondida no bolso. No exato instante em que seu dedo pressionou o botão de envio, o mundo pareceu distorcer. Raikou, que um piscar de olhos antes estava a metros de distância, explodiu em movimento. O ar vibrou. Antes que Rasputin pudesse processar, um impacto brutal o atingiu no peito. A força foi tamanha que ele foi arremessado contra a parede da caverna, rochas se partindo e poeira explodindo ao seu redor, o corpo de Rasputin ficando esmagado entre as pedras.
— Vocês três! — Raikou rosnou por sobre o ombro, a espada de madeira ainda vibrando. — Não se metam! Não quero interferências, ou vou acabar com vocês também!
Amarylis, recuperando-se do choque, ergueu Koala em seus braços. — Droga! Mio, Diane, corram para a superfície! Se esses dois lutarem a sério aqui, as vibrações vão atrair todos os outros do subterrâneo. Perderemos qualquer chance de controlar a situação! Rápido!
As três se esgueiram para longe da zona de combate, o som dos primeiros golpes ecoando terrivelmente atrás delas.
Raikou avançou novamente, uma sombra veloz contra a penumbra da caverna. Rasputin mal teve tempo de se desvencilhar dos escombros quando a bokken de Raikou, impulsionada com força sobre-humana, perfurou seu peito. O som surdo de madeira encontrando carne e osso ecoou, e Rasputin foi novamente lançado para trás, atravessando a parede e caindo em um túnel adjacente.
Raikou aproximou-se da abertura, alerta. De repente, uma sombra disforme, negra como piche, saltou das trevas em direção às suas costas. Com um movimento instintivo e uma velocidade cegante, Raikou girou, sua espada de madeira cortando o ar num arco preciso que partiu a sombra ao meio, dissipando-a em volutas de fumaça escura.
— Está brincando comigo? — A voz de Rasputin, agora com um tom metálico e distorcido, surgiu atrás de Raikou. Ele estava de pé, o buraco em seu peito se fechando visivelmente.
Rasputin estendeu as mãos em direção às costas de Raikou, palmas brilhando com uma energia sinistra.
— Morra!
Mas Raikou, como um relâmpago, girou sobre os calcanhares. Ignorando a ameaça iminente, desferiu um soco direto e brutal. O punho encontrou o rosto de Rasputin com um estalo nauseante de dentes se partindo. Rasputin foi catapultado de volta para o túnel, e Raikou saltou atrás dele, aterrissando sobre seu oponente caído. A bokken tornou-se um borrão, desferindo uma chuva de mais de duzentas estocadas em Rasputin em uma sequência alucinante, cada golpe levantando poeira e arrancando gemidos abafados da vítima.
Raikou finalmente saltou para trás, aterrissando suavemente, a respiração ritmada, observando. Novamente, Rasputin se moveu, erguendo-se das crateras formadas pelos golpes. Ele cambaleou, mas atacou pelas costas de Raikou mais uma vez. Sem sequer olhar, Raikou rebateu com a espada de madeira. O golpe atingiu a cabeça de Rasputin com uma força trovejante. O impacto foi tão violento que não apenas destruiu completamente o crânio de Rasputin, espalhando fragmentos de osso e uma substância escura, mas também arrancou um pedaço considerável do teto do túnel, que desabou em uma cascata de rochas.
Raikou permaneceu imóvel, os olhos fixos, concentrado. Lentamente, em meio à poeira, a forma de Rasputin começou a se recompor. A cabeça se regenerava, os membros se realinhavam.
Um sorriso lento e predador se espalhou pelo rosto de Raikou.
— Entendi... Então você é um daqueles. Um brinquedo que não quebra fácil.
Rasputin, a voz ainda trêmula, encarou seu oponente.
— E você, seu gorila maldito... Que tipo de monstro é você?!
— Relaxe — Raikou inclinou a cabeça, os olhos brilhando com uma alegria selvagem. — Logo, logo você vai descobrir.
E com essas palavras, uma aura esmagadora, densa e pulsante como o calor de uma forja, irrompeu de Raikou. O ar ao seu redor vibrou, pequenas pedras levitam e a própria luz da caverna parece se curvar diante da sua presença aterradora. A verdadeira batalha estava apenas começando.
Parte 3
No epicentro da cidade, o "show" macabro orquestrado pela figura de cabelos bicolores atingia seu clímax. Uma cacofonia de éter distorcido pairava no ar, turvando os sentidos dos cidadãos, que cambaleavam com olhares vidrados e movimentos letárgicos, marionetes inconscientes numa peça sinistra. Do alto de um arranha-céu parcialmente cristalizado por ether, a jovem misteriosa usando máscara de raposa – franziu a texta ao receber uma mensagem de seu parceiro.
— Então, aquele idiota incompetente não conseguiu conter a situação… — os lábios finos curvando-se em desdém. enquanto sua aura volátil começou a ondular ao seu redor, carregada de intenção destrutiva. — Será que ele realmente possui alguma utilidade para os planos do Mestre? Talvez seja hora de descartá-lo.
No instante em que sua energia ameaçava transbordar, uma silhueta colossal cortou os céus da cidade. Um pássaro titânico, com penas que pareciam forjadas da própria noite estrelada, planou majestosamente. Contudo, ao se aproximar do abismo atrás da mansão, a criatura pareceu ser sugada por uma força invisível, como se o abismo faminto a puxa-se para dentro. Antes que o inevitável acontecesse, a ave etérea dissolveu-se em partículas de luz, e de suas costas, sete vultos ágeis como falcões saltaram, mergulhando em direção ao caos urbano.
Uma dessas sombras, a que se destacava por uma trajetória incandescente, acelerava vertiginosamente em direção ao palco improvisado da garota de cabelo bicolor. Seu corpo começou a brilhar intensamente, um misto de azul celeste e branco ofuscante, e no ápice da descida, um rugido etéreo ecoou. Ao lado dela, materializou-se um tigre branco espectral, colossal e translúcido, com listras que pareciam feitas de relâmpagos congelados. Juntos, mulher e fera romperam a cortina opressora de éter que asfixiava a cidade com o impacto de um trovão. As garras astrais do tigre rasgaram o véu energético, que se estilhaçou como vidro, liberando ondas de choque que varreram a praça.
Instantaneamente, os raios azul-albinos da recém-chegada incineraram os resquícios da barreira. Um murmúrio coletivo varreu a multidão conforme as pessoas piscavam, desnorteadas, mas recuperando a consciência. Gritos de surpresa e alívio começaram a pipocar.
— Todas as unidades! — A voz da mulher, clara e autoritária, cortou o ar, amplificada por um comunicador em seu ouvido. Seu traje, embora chamuscado em alguns pontos, ostentava insígnias de comando. — Pelo visto, a cidade esteve sob ataque durante nossa ausência. Iniciem os protocolos de evacuação imediatamente! Prioridade aos civis!
Uma voz metálica e urgente respondeu pelo comunicador: "Comandante Hilda, qual o estado de urgência? Repito, qual o nível da ameaça?"
Hilda, a Comandante, fixou seu olhar penetrante, da cor do aço polido, na jovem de cabelos bicolores, que a encarava de volta com uma mistura de surpresa e fúria. O tigre espectral rosnou ao seu lado, um aviso vibrante no ar.
— É apenas uma crise de nível Amarelo — Hilda declarou, sua voz tingida com uma calma calculada que beirava o escárnio.
Um rosnado gutural escapou da garota bicolor. Chamas dançaram em seus olhos.
— Não acha que seria mais prudente… não subestimar seus inimigos, Comandante? — Sua voz era um veneno adocicado.
No mesmo instante em que a última sílaba deixou seus lábios. Hilda estava diante dela. Junto a uma lança feita de pura energia elétrica, crepitante e instável, que se materializou em sua mão, como alguém atingindo uma bola em uma mesa de sinuca, ela desferiu uma estocada fulminante e a força do impacto foi brutal. arremessando a garota para trás, cruzando a praça num arco violento. Seu corpo colidiu com uma das titânicas árvores-edifício que definiam a arquitetura orgânica da cidade, o tronco maciço estalando e cedendo com um som trovejante. A estrutura inteira gemeu e começou a desabar lentamente, levantando nuvens de poeira e detritos sobre o local do impacto onde a garota bicolor agora repousava, esmagada.
— E o'que eu espero, pois pelo menos isso, acabará com a minha fama de superestimar os oponentes…
Hilda falava olhando o local do impacto
Parte 4
Longe dali, nas profundezas úmidas de uma caverna, Ceto observava a cena caótica se desenrolar através de um pequeno rio subterrâneo, cuja superfície lisa e escura agia como um espelho líquido e distorcido mostrando os eventos na cidade. A água ondulava, refletindo o brilho distante da batalha.
— Merda, isso é péssimo! — ela falou, roendo a unha do polegar, seus olhos arregalados fixos na imagem da árvore titânica desabando. — O trem descarrilou legal agora… aquele cara tinha garantido que era impossível a maldita Hilda retornar à cidade antes de amanhã! Pensando bem… ela não estava no rastro daqueles dois Scarlunes fugitivos que se mandaram para o Void? Como diabos ela chegou tão rápido?
De repente, uma voz aveludada e cortante como obsidiana soou atrás dela, fazendo-a saltar.
— O novo duo não está entregando os resultados esperados, Ceto?
— Só se for resultado negativo… Ah! — Ceto virou-se bruscamente, o coração disparado, ao perceber a figura sombria de Lucia emergindo das sombras da caverna como se fosse parte delas. — Droga, Lucia! Quer me matar do coração? Avise antes de aparecer assim!
Lúcia continuou a caminhar lentamente, seus olhos brilhando com uma luz própria na penumbra.
— O que planeja fazer agora, pequena estrategista? Sua operação parece estar… comprometida.
— Eu sei lá! — Ceto gesticulou, exasperada, a água do rio espirrando com seus movimentos. — Não entendo por que o Mestre Niklaus me incumbiu de planejar e gerenciar essa operação inteira! E muito menos por que insistiu que eu usasse esses novatos problemáticos! A situação está ficando cada vez pior, é um desastre atrás do outro!
— Ele fez isso para testá-la, Ceto — Lucia respondeu, a voz calma, mas com um tom de desafio. — Para que você pudesse perceber seus próprios limites e, quem sabe, transcendê-los. E evoluir.
— Saco! Eu não pedi para ser cobaia de nenhum teste de evolução! — Ceto chutou uma pequena estalagmite, que se partiu com um estalo.
— Além disso — Lucia continuou, ignorando o desabafo —, esta operação sempre foi de alto risco, com baixas probabilidades de sucesso total. O tipo ideal para testar novas lideranças. Se vencer, os louros e o reconhecimento seriam todos seus. Se falhar, as perdas seriam calculadas, e você sairia com uma experiência valiosa, sem o fardo de um fracasso esmagador.
Ceto parou, a raiva dando lugar a uma compreensão relutante. — …
— Então, percebe? — Lucia inclinou a cabeça. — Ele desenhou isso especialmente para você, Ceto. Ele teve esperanças calculadas em seu potencial.
— Isso só me coloca mais pressão para conseguir alguma coisa! — Ceto passou as mãos pelos cabelos, desesperada.
— Aprenda a lidar com ela. O fardo e o privilégio da liderança.
— Mas o que você faria no meu lugar? A situação está horrível e só parece piorar! Hilda na superfície, meu trunfo na mansão por um fio… e a droga do rasputin fazendo besteira!
— O que eu faria não importa. Niklaus confiou esta missão a você. Decida sozinha. Sinta com seus instintos, Ceto. Pense, analise, qual o melhor curso de ação? Se eu lhe der as respostas, você não aprenderá nada. Não evoluirá.
Ao ouvir aquilo, Ceto fechou os olhos por um momento, forçando-se a respirar fundo o ar frio e úmido da caverna. A imagem de Hilda e do tigre astral, a árvore caindo, a fúria da garota bicolor… tudo rodopiava em sua mente. Primeiro, seu assassino infiltrado na mansão dos Scarlune estava perigosamente perto de ser descoberto. Segundo, por conta da imprudência de Rasputin, havia uma chance alarmante dos Scarlune do subterrâneo perceberem a extensão de sua infiltração. E para completar o pesadelo, a Comandante Hilda havia retornado dos confins do Void, pulverizando o controle que tinham na superfície. O tabuleiro estava um caos, as peças inimigas movendo-se com força inesperada. Ceto precisava de uma jogada de mestre, uma forma de virar o jogo usando apenas os recursos atuais…
— Isso é… — ela começou, a voz embargada pela magnitude do desafio — Isso é impossível…
— Não desista na primeira dificuldade real, Ceto. Olhe além do óbvio…
— É impossível… — Ceto a interrompeu, um brilho febril acendendo em seus olhos, um sorriso lento e astuto começando a se formar em seus lábios. — …se estivermos falando apenas das peças que estão atualmente no tabuleiro!
Lucia arqueou uma sobrancelha, um lampejo de interesse genuíno em seu olhar normalmente impassível.
— O que você está planejando ?
— Me empreste sua força, Lucia.
Lucia ponderou por um instante, o sorriso enigmático retornando.
— Hum… Se você acredita que com isso conseguirá trazer um resultado favorável… que assim seja. Considere feito.
— Não entendi o que você falou com toda essa nobreza, mas vou levar isso como um sim! — Ceto estendeu as mãos em direção à superfície do rio subterrâneo. A água começou a brilhar com uma luz interna, e sua superfície lisa tornou-se instável, como mercúrio agitado. — Vamos mudar o jogo, Lucia. Vamos alterar drasticamente a disposição das peças!
Com um esforço concentrado, Ceto mergulhou as mãos na água luminescente. Quatro vórtices aquáticos começaram a se formar, girando e se aprofundando, cada um emitindo um brilho de cor diferente, conectando-se a locais distintos e distantes.
— Tá na hora de trocar as peças de lugar! — ela proclamou, um brilho maníaco e determinado em seu olhar. A partida estava longe de terminar.
Parte 5
As sombras do corredor opressor pareciam se agarrar a Dante, enquanto ele permanecia imóvel, o olhar fixo na escuridão que engolia o final sem saída da passagem estreita. O ar era pesado, carregado com o cheiro de mobília velha e empoeirada. O silêncio era tão denso que o eco de sua própria respiração parecia uma intrusão.
— Parece que você está finalmente pronta para encerrar essa charada, Anna? — A voz de Dante era baixa, um fio de aço na quietude, mas carregada de uma exaustão palpável.
Do fundo do corredor, a silhueta de Anna se materializou lentamente, como se a própria escuridão estivesse a parindo.
— O que foi que me entregou? Qual detalhe escapou à minha encenação?
Dante soltou um suspiro lento.
— Eu estava me sentindo… lento. As peças do quebra-cabeça demoravam uma eternidade para se encaixar. Não entendia a origem dessa lentidão, mas o estalo final, a peça que iluminou o tabuleiro, foi a sensação de que não era a hora certa de apontar o culpado. — Ele passou a mão pelo cabelo, a frustração visível em sua testa. — Pensei muito nisso. Por que essa hesitação? Era a chance perfeita! Mesmo que minhas suspeitas estivessem erradas, apresentar um possível culpado poderia ter evitado que agíssemos de forma imprudente, como aquela separação aleatória e desastrosa. Mas, ainda assim, uma força interna me impediu de falar, mesmo quando era óbvio, até para o Kai, que eu devia saber quem era o traidor.
— E você percebeu — a voz de Anna, agora desprovida de qualquer traço da doçura fingida, ecoou com uma frieza cristalina — acontece que não era para você revelar o culpado ainda.
Um brilho perigoso acendeu nos olhos de Dante.
— Então, era por isso? Você estava diminuindo minha capacidade de dedução? e me fez não revelar o culpado? Eu sabia que você podia ler meus pensamentos, mas nunca pensou em mencionar que também poderia influenciá-los de forma tão direta?
— Se eu o fizesse — Anna deu um passo à frente, a luz escassa revelando um brilho calculista em seus olhos —, momentos de epifania como este perderiam completamente o sentido, não acha?.
— Agora Chega! Acabou! — A voz de Dante elevou-se, — Mais pessoas morreram por conta disso! Conte-me agora! Por que você decidiu agir dessa forma? Por que me enganar?
O semblante de Anna, antes uma máscara de frieza calculista, transmutou-se. A dureza cedeu lugar a uma tristeza profunda, quase palpável, que pareceu envelhecê-la em segundos.
— O que mais eu poderia ter feito, Dante?
Aquele olhar. Aquela vulnerabilidade misturada à escuridão fria e crua. Dante o reconheceu instantaneamente. Era o mesmo olhar estampado no rosto dela quando se encontraram pela primeira vez, um espelho da própria alma fragmentada que ele carregava. Aquelas palavras, aquele rosto, foram a chave final, a revelação que ele tanto temia quanto ansiava.
— Finalmente… revelando a verdadeira face, não é? — ele murmurou, mais para si mesmo do que para ela.
Um sorriso fantasmagórico, desprovido de qualquer alegria, curvou os lábios de Anna.
— E então? O que achou da minha atuação? Interpretar o papel da "princesa em apuros", especialmente para você, não foi nada fácil, sabia? Exigiu um controle… considerável.
Dante ativamente bloqueou o pensamento, ou talvez, só talvez, ela ainda estivesse sutilmente o influenciando a não pensar demais. Da primeira vez que se encontraram: a personalidade de Anna era muito mais astuta, fria, quase predatória. Embora tivesse mudado, suavizado, no momento em que suas essências se "misturaram". No entanto, a transformação foi drástica demais.
Foi então que Dante entendeu tanto a personalidade amigável e doce quanto a fase "chunibyou" exagerada não passavam de máscaras habilmente confeccionadas, camadas de disfarce para diminuir sua própria presença, para torná-la palatável, menos ameaçadora aos olhos dele, ou para fazer ele esquecer como ela realmente era.
— Acho que você tinha razão — Anna o encarou. — Agora, já chega.
— Concordo — Dante devolveu , sua postura mudando, a exaustão dando lugar a uma prontidão tensa.
Um brilho de desafio surgiu nos olhos de Anna.
— Qual foi, Dante? Não me diga que realmente acredita que pode me vencer em um confronto direto? Suas batalhas contra os outros avatares não lhe ensinaram absolutamente nada sobre a disparidade de nossos poderes?
— Claro. Talvez eu até perdesse… em uma situação normal — Dante admitiu, um leve sorriso perigoso surgindo em seus lábios. E então, com um movimento rápido e deliberado, ele empurrou um jarro de cerâmica ornamentado que repousava sobre um pedestal precário ao lado dele.
O jarro espatifou-se no chão com um som agudo, e instantaneamente, um chiado preencheu o corredor. Éter puro, denso e opaco, começou a ser liberado de forma feroz, ondulando como uma névoa viva.
Anna recuou um passo, os olhos semicerrados.
— Mas o quê…? O que é isso?
— Atrás de você, Anna. Isso aqui é a tesouraria da mansão Scarlune. O local sagrado onde as relíquias mais poderosas e as pesquisas da família são guardadas. Acha mesmo que eles não instalaram algumas… “seguranças” para garantir que seus tesouros não fossem roubados?
No mesmo instante, das sombras mais profundas atrás de Dante, uma presença se manifestou. Um enorme lobo negro, com olhos que brilhavam como brasas vivas e dentes do tamanho de adagas de obsidiana, materializou-se com um rosnado que vibrou pelo corredor. Sua pelagem parecia absorver a pouca luz, e uma aura de poder ancestral emanava dele.
— Este doguinho aqui — Dante gesticulou na direção da fera imponente — é um dos três Deuses Lobos que a família encontrou em suas viagens e domesticou, transformando-os em cães de guarda leais para a mansão. Como você bem sabe, como um membro da família Scarlune por sangue. Portanto, para ele, não sou considerado um invasor. Já você…
Um arrepio gélido percorreu a espinha de Anna enquanto as peças se encaixavam em sua mente com uma clareza terrível. Foi ela quem atraiu Dante até ali, numa tentativa de distraí-lo, de ganhar tempo para seu parceiro. Mas a escolha específica daquele local… ela não conhecia a planta da mansão com tantos detalhes. A menos que…
— Não me diga que… você…
Um sorriso triunfante, embora cansado, iluminou o rosto de Dante.
— Parece que esse seu poder de influenciar mentes é um caminho de mão dupla, não é mesmo? E você sabe como eu aprendo rápido, ne Anna!
O Deus Lobo saltou, um borrão de fúria escura e presas reluzentes. Anna reagiu instintivamente, materializando um rifle em suas mãos, e disparando, Mas o lobo era mais do que matéria; dissolveu-se em fumaça sombria no instante do impacto, apenas para se rematerializar, circulando-a com velocidade fantasmagórica. De repente, com um uivo silencioso que pareceu ecoar dentro da própria alma dela, a essência do lobo pareceu invadir seus pulmões. O ar lhe faltou, e runas azuis brilhantes, intrincadas e dolorosas, começaram a se gravar em sua pele como ferro em brasa. Ela caiu de joelhos, o corpo convulsionando, antes de desabar pesadamente no chão.
Dante aproximou-se, o cansaço pesando em seus ombros, mas com uma resolução de aço em seu olhar.
— Agora acabou, Anna. Você vai me explicar tudo. Direitinho.
— Acho… que essa conversa… terá que ficar para depois…
E então, sem aviso, sem som, uma nova presença disruptiva materializou-se no corredor, diretamente atrás de um Dante ainda focado em Anna. A garota de cabelos bicolores, a mesma que orquestrava o caos fora da mansão, estava ali, seus olhos púrpuras brilhando com uma intensidade predatória.
Dante virou-se bruscamente, o choque e a surpresa estampados em seu rosto.
— Quem… Quem é você?????
— Como me pediram para ser educada com os outros membros da organização, vou me apresentar. Meu nome é Lynx Kenedy. Ou Delta, se preferir. — Sua voz era melódica, mas com um tom subjacente de perigo absoluto. — Qualquer outra coisa, receio, terá que ficar para depois.
Dante deu um salto para trás, o instinto gritando perigo, mas era tarde demais. Lynx ergueu a mão, os dedos formando um sinal que lembrava vagamente a cabeça de uma raposa, elegante e mortal. Ela olhou através da abertura formada por seus dedos, diretamente nos olhos de Dante.
— KON.
A única palavra, proferida com uma autoridade sobrenatural, pareceu quebrar a própria realidade. O ar atrás de Dante estilhaçou-se como vidro trincando sob imensa pressão, revelando não a parede do corredor, mas um abismo pulsante, um turbilhão vertiginoso de cores impossíveis e formas geométricas distorcidas. Antes que pudesse reagir, uma força invisível o agarrou, Dante foi sugado para dentro do caleidoscópio bizarro e vertiginoso, desaparecendo sem deixar vestígios.
Assim, Delta baixou a mão lentamente, e um leve sorriso satisfeito apareceu brincando em seus lábios.
— Bom. Com o principal problema resolvido, acho que podemos continuar com nossos planos.
Parte 6
No centro da cidade, palco da recente batalha entre Delta e Hilda, o cenário se transformava drasticamente. Raios e trovões rasgavam o céu à medida que a evacuação dos cidadãos prosseguia em ritmo frenético. Nuvens de tempestade, carregadas e ameaçadoras surgiam, enquanto um éter palpável, denso como as profundezas oceânicas, saturava a atmosfera. Hilda mantinha o olhar fixo no ponto onde sua adversária anterior, Delta, deveria estar. Contudo, em seu lugar, erguia-se agora uma jovem de cabelos brancos como a neve, olhos carmesins e orelhas delicadamente pontudas. Era Lúcia, uma nova ameaça que acabara de invadir Threshold.
— Não era contra você que eu estava lutando — declarou Hilda, a voz firme como aço, ecoando acima do rugido da tempestade, sua mão instintivamente buscando o cabo da lança que pendia invisível ao seu lado.
— Houve uma substituição — replicou Lucia, um sorriso enigmático e quase predatório pairando em seus lábios. Sua postura, relaxada e elegante, contrastava violentamente com a tempestade elétrica que ela parecia comandar com a própria presença.
O ar estalou, ionizado, e o cheiro de ozônio preencheu o ambiente. Num piscar de olhos, Lucia desintegrou-se em pura eletricidade, um feixe azul-cobalto com estrias rubras que ziguezagueou pelo asfalto rachado com um zumbido agudo e ameaçador, mirando o flanco desprotegido de Hilda com velocidade extrema.
Hilda, cujos reflexos eram forjados em incontáveis batalhas e afiados pela sobrevivência, reagiu com uma velocidade que desafiava a percepção humana. No instante em que Lucia se desmaterializou, a comandante girou sobre os calcanhares, seu corpo um borrão de movimento. De sua mão estendida, um som agudo precedeu a materialização de sua lança, forjada em pura energia elétrica que crepitava e estalava com poder. Com um movimento fluido, preciso e brutal, interceptou a trajetória de Lucia. O impacto das duas forças elétricas desencadeou uma onda de choque cataclísmica. Uma cúpula de luz ofuscante expandiu-se, cegando momentaneamente e lançando ondas de pura força cinética que fizeram os vidros dos prédios próximos explodirem em chuva de estilhaços e as estruturas de concreto gemerem sob a pressão.
— Impressionante — concedeu Lucia, sua forma tremeluzindo por um instante antes de se solidificar a poucos metros de distância, ilesa. Seus olhos vermelhos brilhavam com uma intensidade fria e analítica, como os de uma caçadora avaliando sua presa. — Seus reflexos são notáveis... para uma humana.
Hilda não se dignou a responder. Seus dedos apertaram o cabo da lança elétrica com uma força que faria aço comum vergar. Ela avançou. Cada passo seu era pesado, determinado, esmagando os detritos sob seus pes. Sua postura era a de uma predadora, cada músculo tenso e pronto. A comandante era uma mestra em artes marciais, e sua lança não era apenas uma arma, mas uma extensão viva de seu corpo e vontade. Ela girava, cortava e estocava com uma perícia mortal e uma fúria controlada, cada golpe carregado com a força concentrada dos céus.
Lucia, em contraste, era a própria tempestade encarnada, movendo-se como uma sombra eletrificada, quase intocável. Sua velocidade era vertiginosa; ela parecia dançar entre os ataques ciclônicos de Hilda, seus movimentos fluidos, graciosos e terrivelmente eficientes. A vampira não empunhava armas convencionais; seus próprios dedos afilados podiam, num instante, alongar-se e endurecer, transformando-se em garras imbuídas de uma corrente elétrica, capazes de rasgar aço como papel. Ela preferia ataques rápidos, letais e precisos, buscando a menor brecha na defesa de Hilda, seus golpes visando pontos críticos com precisão cirúrgica. Ocasionalmente, ela se desvanecia em relâmpagos azuis, aparecendo em ângulos impossíveis, forçando Hilda a uma defesa constante e exaustiva.
A comandante, contudo, era implacável. Embora Lucia fosse inegavelmente mais rápida, Hilda possuía uma força bruta descomunal e uma resiliência que começava a surpreender a vampira. Quando de repente um feixe de raios, de Lúcia, atingiu o ombro de Hilda. A dor foi excruciante, queimando uniforme e pele, mas a comandante apenas cerrou os dentes, um rosnado escapando por entre eles, e respondeu com um arco devastador de sua lança. A onda de energia forçou Lucia a um salto acrobático para trás, aterrissando com leveza felina no topo de um dos barcos de transporte encalhados nos canais e começando a se mover saltando entre eles.
Hilda, com agilidade surpreendente, saltava entre as margens dos canais que cortavam a cidade como artérias, movendo-se rapidamente sobre passarelas precárias e beiradas instáveis, perseguindo Lúcia como uma sombra veloz e determinada enquanto à batalha continuava sem trégua, apesar de lutar em uma superfície instavel seu olhar permanecia cravado em Lucia. A adversária, por sua vez, rebateu o olhar e os ataques com uma expressão enganosamente calma e serena, quase divertida, reconhecendo a força impetuosa de Hilda sem jamais temê-la.
Num estratagema astuto, Lucia reduziu sua velocidade, quase parando sobre uma ponte de pedra que cruzava o canal, convidando o ataque. Hilda não hesitou. Sua lança voou, um cometa azulado, e perfurou o ombro de Lucia, que emitiu um som agudo de dor. Mas, antes que Hilda pudesse continuar o ataque, um sorriso gélido tocou os lábios da vampira. Ignorando a dor lancinante, ela agarrou o braço de Hilda com uma força surpreendente.
— Ingênua — ela murmurou, antes de liberar uma descarga elétrica massiva que crepitava de sua mão, não apenas atingindo Hilda em cheio com uma dor agonizante, mas também se espalhando pela água acumulada nos canais mais baixos. Gritos de horror ecoaram quando a corrente atingiu civis que tentavam desesperadamente evacuar em gôndolas e pequenas embarcações, seus corpos convulsionando na água eletrificada.
Ao testemunhar o caos e o sofrimento indiscriminado causado por seu poder, um lampejo fugaz, quase imperceptível, de algo que poderia ser hesitação – ou talvez remorso – cruzou o rosto de Lucia. Ela instintivamente começou a recolher parte da energia que fluía descontroladamente. Mas Hilda, consumida pela dor lancinante do choque e pela fúria, não percebeu. E com um grito selvagem, ela girou o corpo e desferiu um golpe lateral com a haste da lança, um impacto brutal que arremessou Lucia violentamente contra a parede de um dos edifícios que cercavam o canal. A estrutura estremeceu e as janelas explodiram para dentro com o impacto.
Lucia emergiu dos escombros com uma agilidade felina, um filete de sangue carmesim escorrendo de sua boca manchando suas vestes. Com um salto, alcançou o telhado semi-destruído, observando os olhos furiosos de Hilda. Assim uma compreensão pareceu alvorecer em seu semblante.
— Você se importa demais com estes... civis — comentou Lucia do alto, sua voz ecoando com um leve tom arcaico, quase desdenhoso, mas com um toque de genuína curiosidade, enquanto observava um grupo de policiais tentando apressar os últimos evacuados a uma distância segura. — Essa preocupação a torna lenta.
O olhar de Hilda transformou-se em gelo puro. Era verdade. Parte de sua mente estava sempre atenta aos inocentes, um fardo que ela carregava com honra, mas que em combates de vida ou morte como este, poderia ser uma fraqueza explorável.
— Isso não é da sua conta! — bradou Hilda, sua voz superando o clamor da tempestade. Em vez de um ataque direto, ela canalizou uma quantidade colossal de sua eletricidade. O éter ao seu redor dobrou-se e contorceu-se sob sua vontade. Assim um vórtice de pura energia começou a se formar ao seu lado, o ar estalando violentamente. Dentro dele, uma silhueta majestosa e terrível tomava forma.
Um rugido que era a própria essência da tempestade – trovões, ventos uivantes e o estalar de incontáveis raios – explodiu do vórtice. Byakko, o Tigre Branco Celestial, avatar da própria Hilda, materializou-se em toda a sua glória elétrica. Seu corpo translúcido, maior que um tanque de guerra, era um emaranhado de raios brancos e azulados, seus olhos faiscando com inteligência primordial e poder. Suas patas trovejavam no chão a cada movimento, e listras elétricas pulsavam e percorriam seu corpo etéreo, emanando um calor palpável e o cheiro intenso de ozônio.
Um brilho de genuíno interesse – finalmente quebrou a fachada de controle de Lucia.
— Você é cheia de surpresas...
Agora eram dois contra um. Com a agilidade de um relâmpago e a ferocidade de uma avalanche, Byakko avansou sobre Lucia. A vampira, mesmo com sua velocidade sobre-humana, viu-se instantaneamente pressionada pela ofensiva coordenada. Enquanto o tigre atacava com garras e presas que estalavam com energia pura, rasgando o ar e forçando Lucia a esquivas acrobáticas que a levavam perigosamente perto das bordas dos telhados, Hilda avançava, sua lança buscando explorar qualquer abertura criada pela fúria de seu companheiro elemental. Era uma sinfonia de destruição coordenada.
Pressionada, Lucia revelou mais de seu arsenal. Erguendo a mão para o céu tempestuoso, ela atraiu um raio negro como a noite, moldando-o em pleno ar. Uma espada de ébano, de lâmina fina e elegante, porém pulsando com uma energia corrupta e instável, materializou-se em sua mão. Com um movimento fluido e letal, Lucia desferiu uma estocada. A lâmina da espada sombria transformou-se instantaneamente num chicote de energia rubro-negra, ziguezagueando pelo ar como uma serpente. O chicote estalou contra a pata dianteira de Byakko, arrancando um uivo de dor eletrificada da fera, que cambaleou, desequilibrado por um instante.
Aproveitando essa fração de segundo, Lucia moveu-se como um espectro, surgindo ao lado de Hilda. Uma torrente de ataques frenéticos com sua espada forçou Hilda a uma defesa desesperada, a comandante bloqueando e desviando por puro instinto, faíscas negras e azuis explodindo a cada encontro das armas energizadas. A espada sombria tornou-se um borrão. A última estocada, carregada com uma descarga fulminante de energia caótica, atingiu Hilda em cheio no peito. A comandante foi arremessada violentamente vários metros para trás, seus pés abrindo o asfalto antes que ela conseguisse cravar a lança no chão para frear o impulso.
A batalha estava longe de terminar. O céu continuava a chorar raios, e Threshold, era agora a arena de um confronto entre duas guerreiras que dominavam a própria essência da tempestade. O ar crepitava com a promessa de uma destruição ainda maior, enquanto Hilda, apoiada em sua lança e com Byakko reagrupando-se ao seu lado, e Lucia, empunhando sua espada de sombras, encaravam-se através da tormenta, prontas para o próximo assalto devastador.
Parte 7
Enquanto isso, em uma cripta esquecida nas profundezas do porão da mansão, um homem contemplava um corpo etéreo, selado dentro de um caixão de cristal maciço. O ar gélido da sala carregava o peso de eras, um silêncio opressor que sugeria que o local não via a luz — ou a perturbação — há séculos, talvez milênios. O pó do tempo cobria cada superfície, exceto o esquife translúcido, onde o corpo jazia em perfeita preservação, intocado pela decadência.
— Parado aí, Heisen! — A voz de Belltrylis cortou a quietude como um chicote, ecoando pelas paredes de pedra fria enquanto ela invadia o recinto.
— Parece que, afinal, era verdade... — Brighild murmurou, os olhos fixos na cena.
— Então... era mesmo você? O assassino? — Beatrice interpelou, a voz carregada de uma tensão palpável.
Heisen virou-se lentamente, um sorriso enigmático brincando em seus lábios. — Vejo que foram as primeiras a me encontrar. Realmente... interessante. Mas digam-me, o que as traz a conclusões tão apressadas? Que base sólida sustenta tal acusação?
— Bom, não seria a primeira vez que suas mãos se mancham com o sangue de um Scarlune...— Brighild murmurou, a amargura tingindo suas palavras.
— Ah, o histórico passado... um ponto pertinente, admito. — Heisen concedeu com um leve aceno de cabeça. — Mas espero, sinceramente, que não seja apenas esse fato que usem para me incriminar.
— Também tem o detalhe de você ter me atacado pelas costas e me nocauteado! — Belltrylis rosnou, a mão instintivamente indo para o local do golpe. Heisen apenas a observou, aguardando o restante da torrente acusatória.
— E você mentiu! — Belltrylis continuou. — Disse que estava na cozinha pela manhã, mas a Senhorita Vivian foi categórica: a cozinha estava completamente vazia.
— Entendo... então foi assim que as peças se encaixaram para vocês. — Heisen ponderou, um brilho calculista em seu olhar. — Poderiam também adicionar o fato de que eu possuo a perícia e os meios para tal... ato. E, como podem ver... — Ele sacou sua lâmina com um movimento fluido, a luz escassa da cripta revelando o aço encharcado de um vermelho vivo e pegajoso. — ...eu certamente tenho uma ferramenta adequada para o trabalho.
A visão do sangue fresco fez Beatrice recuar um passo. — Quem você pensa que engana? Sua lâmina... está banhada em sangue!
— Verdade, está. — Heisen confirmou, a calma em sua voz tornando a cena ainda mais sinistra. — No entanto, repito: o culpado não fui eu.
— Então, onde diabos você estava antes da reunião que nos trouxe a este inferno? — Belltrylis exigiu, a impaciência crescendo.
— Eu estava exatamente aqui. — Heisen gesticulou para o caixão de cristal. — Imerso em um projeto... bastante delicado. Testando, digamos, a compatibilidade de Anna com este... receptáculo.
— O que você quer dizer com isso? "Compatibilidade"? — Brighild franziu a testa, a confusão misturando-se à suspeita.
— Mais importante que isso... — Beatrice interrompeu, os olhos fixos em Heisen, as engrenagens de sua mente trabalhando febrilmente. — Você disse que não era o assassino, mas que poderia ter cometido o crime. Contudo, afirmou que não foi você... mas sua lâmina está suja. Diga-me, Heisen... por acaso temos um segundo assassino em cena, e esse alguém seria você?
Um sorriso lento e satisfeito espalhou-se pelo rosto de Heisen. — Bingo! Vejo que a senhorita dragão, ao menos, possui a sagacidade para conectar os fios desta teia.
— Espere... mas isso... então você é o assassino, no final das contas! — Belltrylis exclamou, a confusão dando lugar à fúria.
— Não exatamente. — Heisen corrigiu, o tom divertido. — Digamos que estive... orquestrando o maestro das sombras, manipulando o verdadeiro assassino para ganhar tempo precioso para meus próprios objetivos.
— E para isso, mais inocentes precisaram morrer? — Brighid interpelou, a voz embargada pela raiva e pela dor.
— Brighid, sem ofensa, mas sua linearidade de pensamento chega a ser... irritante. — Heisen suspirou com desdém. — Por que não se mantém em silêncio até que os adultos terminem esta conversa, sim?
Beatrice, ignorando o insulto, continuou a juntar as peças do quebra-cabeça. — Você forjou as mortes... e usou o Blade... para manipular o verdadeiro assassino, forçando-o a seguir seu roteiro distorcido. Desorganizou as equipes, transformou tudo num jogo de pega-pega, enquanto você, aqui embaixo, neste mausoléu particular... tecia seus próprios planos.
— Como esperado, uma dedução brilhante, senhorita dragão. — Heisen aplaudiu suavemente.
— E por que deveríamos confiar em uma única palavra que sai dessa sua boca traiçoeira? — Belltrylis cuspiu as palavras.
— Não precisam. — Beatrice respondeu antes que Heisen pudesse abrir a boca, a compreensão iluminando seu rosto. — Ele já planejou isso também. Ele só precisa nos mostrar que os outros "mortos" estão, de fato, vivos. E ele sabe quem é o assassino. Mesmo que não o tivesse descoberto por dedução... contanto que Asriel esteja vivo, ele poderá revelar tudo.
— Como um bônus pela sua perspicácia, senhorita dragão, creio que lhes adiantarei o nome do assassino...
Mas, antes que o nome escapasse de seus lábios, o ar no centro da cripta tremeu, ondulando como a superfície de um lago perturbado. Do vácuo cintilante que se formou, uma figura materializou-se com graça felina: uma garota atraente, cabelos bicolores emoldurando um rosto adornado com uma máscara e orelhas de raposa, suas roupas elegantes contrastando com a aura selvagem que emanava dela.
— Infelizmente — a recém-chegada ronronou, a voz melodiosa, mas com um toque de malícia — a próxima página deste mistério permanecerá selada... por mais um instante.
— KON!
Risadas frenéticas, cristalinas e eivadas de uma loucura contagiante, ecoaram pelas paredes ancestrais. Subitamente, o chão sob seus pés começou a ceder, não à terra fria, mas a fraturas na própria tessitura da realidade – teias de aranha de não-espaço se abrindo como mandíbulas famintas para engoli-los.
Foi então que Heisen agiu. — Agora que minha análise está completa... — sua voz cortou o pandemônio crescente, desprovida de qualquer traço de zombaria anterior, fria e afiada como o aço de sua lâmina. — ...não preciso mais da interferência da Horizon. Vamos logo acabar com este jogo tedioso!
E antes que Beatrice fosse completamente tragada pelo caleidoscópio vertiginoso de cores e não-ser que se abria abaixo, ela vislumbrou Heisen. Ele não recuava. Com um gesto brusco, arrancou o tapa-olho, e uma aura opressora, quase palpável, explodiu dele. Sua pequena lâmina, antes uma adaga sinistra, expandiu-se com um silvo metálico agudo, transformando-se numa espada imponente, banhada por uma luz interna e sinistra. Ele avançou, não contra a gravidade paradoxal que os puxava para o abismo, mas através dela, em direção à garota raposa. Sua velocidade desafiava a lógica,, finalmente liberto de qualquer artifício ou pretensão. Beatrice viu-o desferir um golpe – um borrão prateado rasgando o ar viciado da cripta. A garota raposa, hesitou por uma fração de segundo, surpresa genuína em seus traços antes mascarados pela zombaria. Então, sua forma etérea vacilou e se desfez como fumaça ao vento, no exato instante em que a escuridão consumia a visão de Beatrice.
Parte 8
O sol é uma fornalha aberta no céu, um disco incandescente e impiedoso que reina soberano sobre um oceano de nada. O ar paira, denso e imóvel, vibrando com um calor que cozinha a própria paisagem, fazendo o horizonte dançar numa miragem febril e zombeteira. Dunas de areia fina, cor de laranja e ferrugem, estendem-se até onde a vista alcança, como ondas petrificadas de um mar esquecido pelo tempo, cada cume vale uma réplica exata do anterior, numa monotonia enlouquecedora. A própria areia parecia sugar a umidade do ar antes mesmo que pudesse oferecer qualquer alívio, tornando cada grão um pequeno braseiro sob os pés.
Havia um único sinal de vida, uma única árvore que ousava desafiar esta desolação. Suas folhas, se é que um dia foram verdes, agora eram de um marrom ressequido, agarrando-se aos galhos como últimas testemunhas de uma batalha perdida. Além dela qualquer outra vegetação, se alguma vez existiu, rendeu-se há eras, deixando para trás apenas o esqueleto de rochas nuas e o pó de ossos de um mundo que já foi. O silêncio é quase palpável, uma pressão esmagadora quebrada apenas pelo zumbido agudo nos ouvidos de quem se atreve a existir ali.
Para um ser humano que acaba-se ali, seria uma provação incessante. A garganta transforma-se em lixa, implorando por uma gota de umidade que nunca virá. A pele esturricada e racha sob o flagelo solar, tornando-se um mapa de fissuras dolorosas que ardiam com o mais leve movimento, os lábios sangram, e os olhos ardem sob a luz impiedosa que reflete em milhões de grãos de areia, chegando e confundindo. Cada passo é um esforço vão sobre a areia fofa que suga as energias, enquanto o suor evapora antes mesmo de trazer qualquer sensação de frescor, deixando para trás apenas o sal e a exaustão. O corpo clama por um alívio que jamais chega, tornando-se um fardo pesado e dolorido.
Para a mente, o deserto é um labirinto de desesperança. A vastidão opressora e a uniformidade da paisagem corroem a sanidade. Miragens de oásis luxuriantes e lagos cristalinos surgem como torturas visuais, promessas cruéis que se desfazem em nada mais que ar trêmulo, e a mente, faminta por estímulos, começa a pregar peças, conjurando sussurros no vento, vultos nas dunas distantes. O tempo perde o significado; dias e noites se fundem numa sucessão indistinta de sofrimento sob o sol inclemente ou o frio cortante da noite desértica. As sombras das dunas alongavam-se e encurtavam-se num ciclo interminável, a única medida de um tempo que se tornara elástico e traiçoeiro. A noção de direção se esvai, e a loucura espreita, paciente.
Para o espírito, é o teste final. A esperança é a primeira a morrer de sede neste lugar, seguida pela vontade de lutar. A imensidão árida parece zombar de qualquer propósito, de qualquer fé. Confrontado com a indiferença brutal da natureza em sua forma mais crua, o espírito é esmagado pela insignificância.
E era naquele inferno desértico e sem esperança que Dante se encontrava.
— Porcaria... De novo não...
Ele vagou por minutos, horas, dias, semanas, a ponto de nem saber mais quanto tempo havia se passado. Seus pés, inicialmente protegidos por botas, logo se viram expostos quando o couro cedeu ao calor e à abrasão, e cada passo se tornou uma meditação sobre a dor, a areia quente infiltrando-se em feridas abertas. Dante caminhava e caminhava, sem parar. Sozinho, contava aproximadamente um milhão, quatrocentos e quarenta mil segundos entre uma árvore e outra; esse era o tempo que levava para alcançar a árvore seguinte, movendo-se em linha reta. Isso se repetiu várias vezes, ciclos de caminhada e colapso, onde a consciência era um luxo intermitente, até que, finalmente, Dante começou a desistir de caminhar e usou seu éter nos olhos. Foi quando notou que todo aquele lugar estava cercado por uma espécie de domo de cristal, que o impedia de alcançar a saída. Assim, usando o éter em seus olhos, ele agora corria até a borda com toda a sua velocidade, percebendo que o domo parecia segui-lo – o que normalmente o impediria de alcançar a borda. Mas, dessa forma, ele finalmente conseguiu chegar até lá e, por fim, quebrou-o, o impacto enviando ondas de dor por seus braços já castigados, achando que finalmente escaparia. De repente, porém, viu-se em um deserto ainda maior, mais quente e árido. O novo sol parecia pulsar com uma malevolência renovada, e o ar, se possível, ainda mais sufocante.
— Você só pode estar brincando comigo!
Assim, ele voltava a repetir o mesmo processo, seguindo os mesmos passos. No entanto, sempre que quebrava uma nova parte daquele domo, seu inferno pessoal piorava: ficava mais quente, a ponto de a própria areia fumegar sob seus pés, os dias duravam mais, arrastando-se em eternidades de luz inclemente, a gravidade do lugar aumentava, fazendo cada membro pesar como chumbo e cada respiração exigir um esforço consciente, assim como a fome e a sede, que se tornavam garras cravadas em seu estômago e garganta. Seu corpo parecia estar cada vez mais acorrentado por grilhões que tentavam mantê-lo no lugar. Sua pele, antes apenas rachada, agora se desprendia em alguns lugares, deixando a carne viva exposta ao tormento, e seus músculos, embora inicialmente definhando, começaram a se adaptar de forma grotesca, tornando-se densos e fibrosos para suportar o fardo crescente.
Mas, ainda assim, Dante continuava a caminhar, repetindo o mesmo processo por quantos dias fossem necessários. A noção de "dias" era apenas uma convenção mental; a realidade era um fluxo contínuo de sofrimento, pontuado apenas pela quebra de mais uma barreira ilusória. Até que, de repente, uma fissura na realidade apareceu. Dante tentou correr até ela, achando que seria sua passagem para a saída, mas, quando chegou perto, uma pessoa caiu de lá e pousou sobre ele.
— Mas que lugar é este? — Beatrice perguntou para si mesma.
— Bem-vinda ao meu inferno pessoal. Agora, por favor, saia de cima de mim — Dante implorou, embaixo dela.
Ela o golpeou antes de se levantar, mas, depois de uma boa olhada, conseguiu ver o estado horrível em que Dante se encontrava. Ele era pouco mais que pele, osso e uma vontade indomável, os olhos fundos brilhando com uma febre antiga, o corpo uma tapeçaria de cicatrizes e queimaduras recentes e antigas.
— O que aconteceu com você?
— Eu é que pergunto! Por que ninguém veio atrás de mim?
— Ninguém notou que você sumiu...
— POR UM ANO INTEIRO?! Um ano contado em ciclos de tortura, em sóis que nunca se punham e luas que jamais surgiam, em fome que roía as entranhas e sede que transformava a saliva em pó!
— Do que você está falando? Há pouco tempo estávamos juntos!
Dante logo percebeu que seu palpite sobre o porquê de ninguém ter vindo até ele havia se confirmado. Fosse aquilo uma "black box" ou uma habilidade, o levara para algum lugar desconectado do tempo real. Logo, mesmo que para ele anos tivessem se passado, para os de fora, talvez meros segundos tivessem transcorrido.
Dante então explicou tudo o que havia acontecido desde que ele chegou, e Beatrice contou tudo o que aconteceu com ela do lado de fora. Logo, eles perceberam que essa era a habilidade da tal Delta. Dante também percebeu que ela era membra da Horizon, ficando ainda mais motivado a sair dali de qualquer jeito.
— Como eu pensei... — disse Dante. — Então, o Heisen e a Anna não eram os novos assassinos.
— Peraí, você já sabia?
— Claro. Pensa: se Anna e Heisen estavam de complô, como teriam impedido as reuniões anteriores a esta de acontecer? Melhor, o que eles teriam a ganhar? Heisen é um cara pragmático; além do mais, ele também estava surpreso e realmente tentando desvendar os casos. Havia também a questão de ele não ter matado nem desaparecido com o corpo de Belltrylis. E, sinceramente, enquanto o assassinato de Lorelei foi extremamente calculado, demonstrando planejamento prévio, as desculpas de Anna e Heisen sobre os falsos locais onde afirmavam estar – o vagão-restaurante e a cozinha – eram fracas e repetitivas. Nem parecia que estavam se esforçando, o que ia completamente contra a atitude do assassino anterior.
— Agora que você disse… Mas, então, quem?
— Pensa: quem mais poderia ter atrasado as eleições, controlado tudo com a palma da mão, saber onde cada um dos líderes estava e ter todas as informações para fazer tantas preparações, com tudo habilmente planejado? E quem tinha o melhor álibi, pois estava sozinho justamente porque seu trabalho era ir de um lado para o outro…
— Espera, então está dizendo que…
— O único que poderia nos dizer que a mansão estava fechada e todos acreditaríamos sem tentar confirmar. Alguém em quem confiávamos tanto que abriríamos nossa porta, afinal, ele estava lá para nos buscar.
— Love Scarlune…
— Exato. É só pensar: mesmo que todos nós sejamos meio conflituosos e sempre tenha sido assim, mas, ainda dessa forma, sempre foi possível encontrar os líderes pelos métodos que usamos. Por que dessa vez não deu? Só por causa de briguinhas? Até parece! Alguém tinha que estar ativamente controlando e gerenciando tudo por trás dos panos.
— Temos que sair daqui e avisar aos outros! Mio pode estar em perigo!
— Pois é, o que acha que estou fazendo? Tenho algo que preciso dizer para Anna, de qualquer jeito, mas só vai dar quando eu sair daqui. Só que não é tão fácil.
Assim, os dois começaram a caminhar por tempo indeterminado. Sempre que quebravam mais um domo daquele lugar, mais o castigo sobre eles aumentava: a gravidade era tão pesada que, se não fizessem pausas para descansar, desmaiaram, seus corpos esmagados contra a areia incandescente até que a consciência retornasse como um novo tipo de agonia; a sede era tanta que Dante desejava até que seu corpo suava para poder beber o próprio sangue, mas, como num verdadeiro inferno escaldante, aquele lugar fervia e evaporar qualquer suor que seu corpo expeliu. A cada novo domo, um novo tormento se somava: ora eram enxames de insetos vítreos que picavam e se enterravam sob a pele, causando febres delirantes; ora o próprio ar se tornava corrosivo, queimando os pulmões a cada inspiração forçada. Houve um domo onde o som era a tortura, um zumbido lancinante e constante que ameaçava estilhaçar suas mentes, e outro onde o silêncio era tão absoluto que ouviam o próprio sangue pulsar dolorosamente nos ouvidos.
Após meses daquilo, meses que se sentiam como décadas, marcados pelo crescimento lento e doloroso de unhas que quebravam na areia e cabelos que se tornavam um emaranhado ressequido e sem vida, os dois começaram a passar várias horas do dia descansando e conversando para evitarem a loucura. Seus corpos, embora horrivelmente emaciados, começavam a exibir uma resiliência sobrenatural; a pele, um couro grosso e cheio de cicatrizes sobrepostas, os músculos, cordas tensas e incrivelmente fortes sob a magreza.
— Então quer dizer que não é normal dragões serem pequenos e...
Dante parou de falar quando, de repente, Beatrice o encarou de forma irritada.
— O que foi que você disse?
— Eu disse que umas fadas estavam me irritando por não terem asas e chifres. Normalmente, é algo que os dragões deveriam possuir em sua forma humanoide.
— Mas você não tem.
— Não exatamente.
— Como assim?
Beatrice então virou-se, deixando Dante mexer em seu cabelo.
— São chifres?
Mas Beatrice ficou quieta, esperando alguma reação típica.
— Que fofo!
Ela, porém, foi surpreendida com algo que não havia previsto, o que a fez se levantar, corada.
— O que você quer diz... Droga! Calado!
— O que foi?
— Calado, calado, calado...
— Mas eu só disse…
Então, voltaram a caminhar em meio ao deserto que piorava cada vez mais suas torturas. A cada domo rompido, a paisagem parecia zombar deles com novas crueldades: dunas que se transformavam em lâminas de obsidiana sob o sol, ou poças de um líquido escuro e borbulhante que exalava vapores venenosos. Pensando que seus corpos poderiam se deteriorar, ou talvez, chegando a um nível de loucura tão alto que só queriam fazer algo diferente, Dante e Beatrice começaram a treinar no meio daquele inferno tortuoso. Cada movimento era uma batalha contra a gravidade esmagadora, cada golpe desferido contra o ar denso era um testemunho de sua adaptação forçada, os músculos gritando, mas respondendo com uma força que os surpreendia.
— Eu queria perguntar isto desde que você me pediu para te treinar, mas por que você usa o seu éter dessa forma? Você cobre toda a parte do corpo que vai usar para atacar?
— E não é assim que eu deveria fazer?
— Claro que não! Isso é um desperdício e ainda impede de concentrar todo o éter. Quando socar, coloque apenas no centro do punho, não no braço inteiro. Imagine a energia fluindo como um rio, estreitando-se para ganhar força e velocidade. Quando for receber um ataque, preveja o lugar onde vai ser atingido e então concentre o éter naquele ponto. Esse é o básico do estilo Taikou.
— Estilo Taikou?
— É o estilo de artes marciais dos dragões… Espera, você o usa sem saber?
— Acho que copiei de alguém. Não é como se eu tivesse sido treinado por alguém.
— Droga! Vou ter que te ensinar do básico, então!
Eles passaram horas fazendo treinos – dias, semanas, meses – os ciclos de sol e escuridão (ou qualquer que fosse a fonte de luz e trevas naquele plano) se sucedendo incontáveis vezes, até que as primeiras técnicas se tornaram instintivas, gravadas em seus corpos castigados como as cicatrizes que os cobriam. Chegando ao ponto de nem lembrarem por que começaram.
— Ei, Bea, eu sempre quis perguntar, mas… por que você não me atacou?
— No treino de hoje? Você se moveu rápido demais. Simples assim.
— Não, eu estou falando de quando voltei do Titanic e nós nos esbarramos.
— … Eu queria agradecer, mas não sabia como. Aí nem percebi o que tinha acontecido.
— Agradecer pelo quê?
— Eu não tenho certeza, mas acho que a minha irmã está atrás de você. Eu finalmente consegui vê-la de novo! Eu finalmente me reencontrei com ela!
— Sua irmã?
— A garota com quem você se encontrou no Titanic, aquela que desapareceu capturando o avatar.
Dante logo percebeu que Beatrice falava de Kali e, assim, se alarmou e se enfureceu.
— Você é irmã dela?
Mas Bea parecia triste, apenas observando o horizonte.
— Quer me contar o que aconteceu?
Aquela pergunta pairou no ar, criando um silêncio enorme que se estendeu por vários dias e noites. Noites que agora eram povoadas por novas ameaças: criaturas sombrias que rastejavam da areia fria, ou ventos glaciais que ameaçavam congelá-los até os ossos, forçando-os a usar o éter não apenas para lutar, mas para gerar um calor mínimo para sobreviver. Mesmo quando treinavam, sob uma gravidade que faria um homem comum ser esmagado como um inseto, quando tentavam sair daquele lugar ou quando descansavam, Beatrice não falava nada, como se aquela pergunta tivesse cutucado algum lugar intocável para ela. Demorou anos até que ela resolvesse voltar a falar; anos em que viram montanhas distantes se formarem e erodirem pela metade, em que as estrelas (quando visíveis) pareciam mudar suas constelações lentamente, uma prova cruel da vastidão do tempo que lhes fora roubado. Justamente o tempo que levou para que as forças de ambos se exauriram. Eles se sentiam completamente exauridos: suas bocas secas sangravam, a língua grossa e áspera mal conseguindo articular palavras, seus olhos doíam, injetados e fundos em órbitas escuras, quase perdendo a capacidade de focar nas miragens cruéis, suas cabeças estavam pesadas, cada tossida manchava suas mãos de sangue. O peso de seus próprios corpos era tão grande que parecia que estavam carregando um planeta. A pele deles era um pergaminho antigo, esticado sobre ossos proeminentes, mas sob essa aparência frágil, havia uma densidade muscular e uma resistência óssea forjadas no extremo da sobrevivência. Cada respiração era um chiado doloroso nos pulmões queimados e sobrecarregados.
— É culpa minha... — essas foram as primeiras palavras de Beatrice em anos. Sua voz, um sussurro rouco, quase inaudível, como o raspar de pedras.
— Do que você está falando? — perguntou Dante, a voz rouca pela fumaça e pelo cansaço.
— Foi culpa minha… Minha irmã era perfeita. Ela era forte, tinha chifres incríveis, um éter maior que o do meu tio e do meu pai… Mas tudo porque nasceu de outra mulher, que não era minha mãe... Tudo porque eu nasci com meu éter vermelho… Por minha causa, ela foi abandonada, descartada… Mesmo eu sendo essa falha, essa fraca… Tudo que eu sempre quis foi a minha irmã.
Dante começava a entender, lembrando-se fragmentos do que as fadas haviam murmurado.
— A história sobre a lenda…
— Eu treinei tanto para ficar mais forte, para poder dar orgulho a ela, para trazer minha irmã de volta! Mas, mesmo depois de tudo, eu simplesmente não consegui nada… A única vez que consegui revê-la... ela nem sequer olhou para mim. — A garota soluçava, mas naquele inferno escaldante, suas lágrimas evaporavam antes mesmo de rolar por seu rosto. Eram apenas trilhas de sal que se acumulavam sobre a sujeira e o sangue seco em suas bochechas encovadas. — No fim, vou morrer sem ter conseguido provar para ninguém que eu não era imprestável, sem saber se consegui orgulhar minha irmã... Vou morrer sem ter mudado absolutamente nada.
Dante aproximou-se e a segurou pelos ombros, sacudindo-a com uma urgência desesperada.
— Do que você está falando? Nós não vamos morrer aqui!
— Você ainda não entendeu? — a voz dela era um fio de desespero. — Não importa quantos domos quebremos, não importa o quanto andemos, este inferno só vai ficar pior, de novo, e de novo… Ela nos prendeu em nosso próprio inferno, e não há como sair…
— Você disse que ainda precisa fazer algo, não é? Precisa encontrar sua irmã! Então, como ousa vir com essa história de morrer antes disso?
— O que mais eu poderia fazer?! Eu já tentei de tudo!!! Mas nada que eu faça funciona! Prefiro morrer a continuar vivendo este pesadelo!
Dante silenciou. Ele não podia mentir, não podia tecer falsas promessas sobre uma saída iminente, pois ele mesmo sentia o peso esmagador daquele lugar. Mas Dante já havia atravessado provações que teriam quebrado qualquer outro, lutara contra demônios internos e externos. E não importava quanto tempo levasse, mesmo que suas pernas cedessem e ele tivesse que se arrastar, rastejar, rolar pela paisagem infernal, ele não pararia. E, acima de tudo, recusava-se a deixar sua companheira para trás.
Com um esforço renovado, ele a ajeitou em suas costas, o corpo dela frágil e pequeno contra o seu, os ossos dela pontudos contra suas próprias costas esfoladas, um fardo leve em peso, mas imenso em significado, e retomou a marcha incansável.
— Escuta bem! — A voz de Dante rasgou o ar opressor, carregada de uma convicção que parecia desafiar o próprio inferno. — Há uma garota que um dia me amou e partiu antes que eu pudesse retribuir. Há outra que está tentando se esconder do mundo, acreditando que o isolamento é sua única defesa contra o ódio. Há um homem que carrega uma culpa tão pesada que mal o deixa respirar, convencido de que sua família morreu por sua causa. E agora... agora tem uma pequena guerreira com o peso de mundos sobre os ombros e que deseja reencontrar sua irmã!
Ele fez uma pausa, o som de seus passos pesados ecoando como um juramento.
— Eu jurei a mim mesmo, que estaria ao lado de cada uma dessas pessoas. Jurei que lutaria até que a felicidade e o sorriso retornassem aos seus rostos. E você, você não é exceção! Portanto, ouça e entenda: não me importa a distância que teremos de cruzar nesse inferno! Não me importa se este inferno se tornar mil vezes mais denso, mais quente, mais desesperador! Eu não vou parar! Eu não vou desistir!, e você virá comigo!
Seus músculos queimavam, cada passo era uma agonia, mas sua voz se elevava, buscando acender uma faísca no coração de Beatrice.
— Mesmo que minhas pernas se partam, que meus pés sangrem até tingir este chão maldito com o meu sangue, eu te carregarei! E quando sairmos deste maldito lugar, Beatrice, eu farei com que você veja quão incrível voce é! e pode apostar pois eu te juro, Beatrice, por tudo que me é sagrado, por cada célula do meu corpo Eu vou levar você até a sua irmã!
E assim ele prosseguia, implacável, avançando pelo coração pulsante do inferno. Não hesitava. Não parava. Cada passo era uma vitória sobre a própria exaustão, uma superação de limites mentais e físicos que se esmigalham diante de sua vontade. A mente, um turbilhão à beira da insanidade; o corpo, um mapa de agonia lancinante. Seus pés eram massas informes de carne cicatrizada e sangue coagulado, os tendões esticados ao máximo, mas ainda impulsionando-o para frente. Contudo, em meio à loucura febril, seus olhos – duas brasas incandescentes – recusavam-se a perder o brilho, a chama de sua determinação inabalável. E ele continuava a caminhar, passo após passo, até que, finalmente, o último domo – a derradeira prisão daquele pesadelo escaldante – ergueu-se diante dele.
Assim, sem emitir um único som, Dante desferiu um golpe. Seu punho, envolto em sague e feridas de todos os demais domos quebrados, a pele restante esticada sobre nós dos dedos deformados por incontáveis impactos, cada cicatriz uma memória de um inferno superado, e na pura essência de sua fúria e promessa, não apenas atingiu, mas atravessou a realidade distorcida, rasgando o tecido daquele mundo como se fosse papel. Uma fissura crepitante surgiu, expandindo-se como uma ferida aberta no éter, e dela, em meio a estilhaços de pura energia infernal, Dante emergiu.
Quebrado e com diversas feridas no corpo esgotado, um esqueleto ambulante coberto por uma pele que parecia couro velho, mas vibrando com uma energia interna aterradora, Beatrice, igualmente devastada, mas respirando fracamente, ainda repousava em suas costas, enquanto ao seu redor, a cena se congelava. Diante deles, como estátuas petrificadas no tempo, lá estavam Heisen, Akira, Hyori, Kai, Rasputin e Delta, seres que apenas com seu ether aterrorizavam, ainda com a aura de ether emanando intensamente pela batalha, mas agora eram uma tela de choque absoluto e confusão paralisante.
Dante avançou na direção deles, um espectro de destruição e resiliência. Fisicamente aniquilado, mentalmente esfolado até o âmago, parecia que o mais leve sopro de vento o desintegraria em pó. Mas então, seus olhares encontravam os dele. E aqueles olhos... profundos, intensos, portais para uma alma que se recusava a morrer, trazendo consigo o eco de incontáveis desertos e a vastidão de um tempo incompreensível para aqueles que viviam em segundos, fizeram todos recuar. Ninguém naquela sala, entre os guerreiros mais poderosos e os estrategistas mais astutos, ousava sequer respirar, o silêncio reinava com todos pasmos o encarando.
— Sai.
Não foi um pedido. Foi uma ordem. Uma emanação de pura vontade que transcendia a necessidade de volume ou ameaça. E, como se compelidos por uma força invisível e irrefreável, todos à sua volta obedeceram sem um átomo de hesitação. Recuaram, abriram caminho, como as águas de um mar tempestuoso se partindo para que ele pudesse passar, Rasputin foi o unico que parecia não gostar daquilo mais ainda assim mesmo tentando evitar seu corpo não parava de tremer e fazer o que havia lhe sido pedido.
Dante, com Beatrice ainda segura em suas costas, atravessou o epicentro do caos da batalha que antes rugia, agora silenciado por sua presença. Ele não olhou para os lados, não demonstrou temor ou alívio. Seus passos, embora lentos e pesados, cada um deixando uma marca tênue de sangue e areia antiga no chão polido daquele lugar, eram firmes, cada um deles uma afirmação de sua jornada implacável, focado apenas em seu caminho adiante.
Continua….
Historia Escrita e revisada por AngelDarkCanal do Youtube : @AngelDarkAMV
Aviso
Esta obra é uma ficção e não deve ser interpretada como uma representação da realidade. A obra contém cenas pesadas, que podem ser perturbadoras para alguns leitores. Se você se sentir desconfortável com esses temas, sugerimos que não leia a obra.



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