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The Fall of the Stars: Capítulo 4 - Estrela da Manhã

  • Foto do escritor: AngelDark
    AngelDark
  • 10 de ago.
  • 53 min de leitura

Capítulo 4 :  Estrela da Manhã


Parte 1

O domínio de Umbra era uma extensão de terra colossal, um supercontinente resultante da fusão de mais de 11 continentes, sendo um lugar tão vasto que eclipsava qualquer outro já registrado na história. Era um reino onde a sobrevivência era a única lei. Ali, apenas os fortes prevaleciam; os fracos eram usados, descartados ou submetidos a destinos muito piores que a morte. Umbra não era apenas um lugar — era um teste brutal de resistência, onde a selvageria moldava cada alma que ousava habitá-lo.

Com a ascensão do Imperador Qin, a capital e algumas cidades próximas experimentaram uma era de relativa calmaria. Qin, um líder tão astuto quanto implacável, havia unificado diversos reinos sob seu estandarte, domando a ferocidade de Umbra com a mesma força bruta que agora buscava suprimir — um paradoxo que definia seu reinado. Sob sua liderança, a capital floresceu, com mercados vibrantes e ruas patrulhadas, mas a paz era uma fachada frágil. Fora dos muros da capital, o caminho para a unificação de Umbra era longo e tortuoso. Clãs, reinos e líderes rebeldes viam Qin como um hipócrita, um tirano que pregava ordem enquanto suas mãos ainda pingavam o sangue de suas conquistas.

Entre os opositores mais ferozes do imperador estava o reino de Zan, um verdadeiro pandemônio na terra. Se Umbra era sinônimo de brutalidade, Zan era o próprio inferno encarnado. Governado por uma aliança profana de demônios e anjos caídos, Zan era um antro de decadência e depravação, onde os piores instintos da criação encontravam livre expressão. Não havia limites, nem moral, nem consequências — apenas o caos puro. Os demônios de Zan, talvez por habitarem um ambiente tão primordial, evoluíam a um ritmo assustador, tornando-se ameaças colossais em pouco tempo. Eram liderados pelos onze Generais Titânicos, guerreiros de poderes que beiravam o mítico e que serviam ao rei Ptolemy, um soberano incansável cuja ambição expandia os domínios de Zan dia após dia, sem trégua.

As forças de Zan eram implacáveis. Mesmo nas noites mais escuras, seus exércitos marchavam, movidos por uma determinação quase sobrenatural. Trabalhadores escravizados, soldados exaustos e máquinas de guerra improvisadas operavam sem cessar, como se o próprio tempo temesse detê-los. Apesar da força dos aliados de Qin, que rivalizavam em poder com os generais de Zan, conter o avanço daquele reino parecia uma tarefa impossível. A expansão de Zan era como uma praga, consumindo tudo em seu caminho, sem qualquer misericordia.

Capital Eryndor reino de Qin

— Senhor eles chegaram a cidade de sancro. — um homem da divisão de inteligencia relatava diretamente para Qin. 

enquanto isso o imperador observava um tabuleiro de shogi visivelmente irritado. 

— ta certo apenas relate quem esta la. — Qin respondeu.

O homem da inteligência engoliu em seco, sentindo a aura gélida que emanava do imperador. Qin não se virou, seus olhos ainda fixos nas peças de madeira polida.

— É a General Titânica, Zenobia, meu senhor. Ela lidera a vanguarda.

Ao ouvir o nome, os dedos de Qin apertaram a peça de shogi que segurava – o General de Ouro – com tanta força que a madeira estalou, quase se partindo. Um rosnado baixo escapou de seus lábios. Zenobia. A Cadela de Guerra de Ptolemy. De todos os generais, tinha que ser ela. A força bruta personificada, uma antítese de sua própria fineza estratégica.

Ele sentiu o ether borbulhando sob sua pele, uma tempestade contida que ansiava por ser liberada nos campos de batalha de Sancro. Ele poderia incinerar o exército dela de onde estava. Poderia esmagá-la pessoalmente. Mas as vozes de seus conselheiros ecoaram em sua mente: 

“Sua presença inspira, meu Imperador, mas sua vida é o pilar do reino. Não se arrisque por uma única cidade. Você é o jogador, não a peça.”

Com um suspiro irritado, ele moveu seu General de Ouro, posicionando-o defensivamente no tabuleiro.

— Ordene que o Comandante Liko forme a Tartaruga de Aço. Dragões no ar, artilharia focada nos flancos. Não deixe que eles nos cerquem. Zenobia é um martelo, ela só sabe avançar. Vamos quebrar o cabo do martelo antes que ele nos atinja.




Cidade de Sancro – O Campo de Batalha

A ordem de Qin era uma obra de arte tática. As legiões de Qin, vestidas em armaduras negras e escarlates, moveram-se com uma precisão hipnotizante, formando uma muralha de escudos e lanças impenetrável. Atrás deles, tanques de cerco com múltiplos canhões ajustavam suas miras, enquanto no céu, os grandes dragões de guerra, com escamas que brilhavam como obsidiana, rugiam e cuspiam torrentes de fogo para deter o avanço inicial.

Mas o exército de Zan não era um exército. Era uma praga, uma maré de loucura que se chocava contra a muralha de aço de Qin.

Os guerreiros de Zan eram visões de pesadelo. Musculosos a ponto da deformidade, com veias saltadas e olhos injetados de sangue, eles pareciam não sentir dor. Muitos tinham a pele cinzenta pela exaustão e desidratação, os ossos marcando o rosto, mas seus corpos não paravam. Famintos, sedentos, movidos apenas por um desejo primordial de aniquilação. Eles avançavam sobre os próprios mortos, um tapete de corpos que servia de rampa para a próxima onda de berserkers. Um soldado de Zan, com uma lança atravessada no ombro, ignorou o ferimento e usou os dentes para arrancar a garganta de um legionário de Qin antes de cair morto. A disciplina de Qin enfrentava um tipo de horror que a estratégia não previa.

No centro daquela horda caótica, destacava-se uma figura bela que contrastava naquele horror. Uma bela mulher usando roupas militares provocantes e pretas, com seus cabelos amarelos e mechas pretas ela ria vendo o campo de batalha e sentindo o cheiro de sangue, aquela era sem duvidas a General Zenobia. 

—  Ele deve ter descoberto que estou aqui, por isso mudou a posição das tropas. Zenobia murmurava para si vendo o campo de batalha e o analisando em segundos.

O Comandante Liko, do alto de sua torre de comando, viu uma oportunidade. A general estava exposta, avançando à frente de suas tropas sentada sobre um tanque de guerra so que do lado de fora dele.

— Atiradores! Foco na mulher em cima do tanque! Equipes de morteiro, lancem uma barragem sobre a posição dela! AGORA!

Assobios agudos cortaram o ar. Dezenas de balas de sniper, projetadas para perfurar aço, voaram em direção a Zenobia. Ao mesmo tempo, o céu se encheu de granadas que caíam em arco, prontas para transformar a área ao redor dela em uma cratera.

O impensável aconteceu. Zenobia olhou para cima, viu a chuva de aço e fogo descendo e, em vez de recuar, ela gargalhou. Um som terrível, cheio de desprezo e diversão.

Num movimento rápido como um relâmpago, sua mão disparou para o lado, agarrando três de seus próprios guerreiros berserkers pelo colarinho de suas armaduras. Com um grunhido, ela os ergueu no ar como se fossem bonecos de pano, usando seus corpos gigantes como um escudo de carne.

As balas dos snipers cravaram nos corpos dos soldados, que mal tiveram tempo de entender o que acontecia. Segundos depois, as granadas explodiram. O som foi ensurdecedor. Carne retalhada, sangue e estilhaços de armadura voaram para todos os lados. A fumaça e a poeira cobriram tudo.

Por um momento, os soldados de Qin prenderam a respiração, esperando.

Quando a fumaça se dissipou, a silhueta de Zenobia permanecia de pé, completamente ilesa. Ela abriu a mão e os três corpos mutilados e sem vida de seus "aliados" caíram no chão com um baque surdo. Ela sequer olhou para eles.

Zenobia então se virou, e agarrou o tanque destruido em que estava antes. – uma verdadeira máquina de várias toneladas – e, com uma força sobre-humana, ela o arrancou do chão facilmente e o arremessou.

O tanque voou pelo ar como um meteoro de metal, girando descontroladamente, antes de se chocar contra a formação Tartaruga de Aço de Qin. O impacto foi cataclísmico. Escudos se estilhaçaram, homens foram esmagados instantaneamente e uma brecha de dez metros se abriu na linha defensiva que antes parecia inexpugnável.

A moral daquele flanco desmoronou. Ver uma única pessoa usar seus próprios homens como escudo e depois arremessar um tanque era algo que transcendia a guerra. Era um ato de um deus profano.

— Voce so pode estar brincando esta dizendo que aquele monstro esta lutando a 5 dias sem nenhum descanso ?! como vamos vencer isso ? — um soldado de qin falava desesperando transcrevendo em palavras oque todos sentiam. 




Capital Eryndor

No tabuleiro de shogi de Qin, uma peça de Lança, representando a unidade do Comandante Liko, foi violentamente derrubada da mesa por um de seus próprios generais que relatava, ofegante, o que acabara de acontecer através de um espelho de comunicação.

Qin não disse nada. Seu rosto era uma máscara de fúria contida. Sua estratégia era perfeita. Suas tropas eram superiores. Mas a estratégia não podia calcular a insanidade. Não podia prever uma general que usava seus próprios homens como consumíveis e suas máquinas de guerra como projéteis.

Zenobia não estava jogando shogi. Ela estava virando o tabuleiro inteiro e usando-o como arma.

Com um movimento brusco, Qin se levantou, sua mão varrendo o tabuleiro e derrubando várias peças de madeira que rolaram pelo chão polido. — A cidade está perdida. Ordene a retirada total. Salvem os dragões e o que restar da artilharia. — Sua voz era fria como o aço de uma lâmina recém-forjada. — E enviem uma mensagem àquela Cadela de Guerra. Diga a ela para aproveitar a vitória. O Imperador agora tem um interesse... pessoal... em seu bem-estar.

O oficial assentiu com uma reverência apressada e retirou-se, o som de seus passos ecoando antes que o pesado silêncio da derrota tomasse conta dos aposentos. O som das grandes portas se abrindo quebrou a quietude. Duas figuras imponentes entraram.

— Pelo visto, a situação não mudou muito desde que partimos. — A voz grave pertencia a um homem de estatura colossal, cuja alabarda negra e intimidadora bateu levemente no chão de mármore com um som pesado.

— Lu Bu. Wu Zetian. — Qin falou, forçando os ombros a relaxarem para manter a postura imperial. — Então, finalmente chegaram.

— Basta uma ordem sua e eu mesmo recupero a cidade antes do amanhecer. — Lu Bu declarou com uma tranquilidade arrogante, como se falasse de uma tarefa trivial.

— Não seja impulsivo, Lu Bu. — A voz de Wu Zetian era calma e afiada como vidro, um contraponto perfeito à força bruta de seu companheiro. — Com todo respeito, Imperador, a verdade é que a cidade de Sancro não possuía valor estratégico. Não era um centro de mineração, nem uma rota de suprimentos. Era uma peça de sacrifício. Se enviarmos Lu Bu agora, e outro ataque ocorrer em um local vital... nossa principal arma não estará aqui para defender o que realmente importa.

— Ela tem razão. — Qin admitiu, virando-se para a enorme janela de seus aposentos, que dava vista para a capital iluminada. — Foi precisamente por isso que não enviei uma força de elite. Ainda assim, esta derrota é péssima. Será um golpe na minha moral perante o povo e apenas aumentará o clima de medo que já paira pelas ruas. — Seus punhos se fecharam ao lado do corpo. — Mas a pior parte... a pior parte é saber que não consegui evacuar todos a tempo. Isso... eu não posso perdoar.

— Por que diz isso, meu senhor? — Wu Zetian perguntou, sua expressão analítica suavizando-se com uma ponta de curiosidade.

Lu Bu olhou para ela, genuinamente confuso. — Você não sabe, Zetian?

— O que eu não sei?

Um veneno gélido escorreu pela voz de Qin enquanto ele encarava o próprio reflexo no vidro escuro. — Sobre o que os soldados de Zan fazem com os civis das cidades que conquistam... — Ele falou baixo, mas cada palavra era carregada de fúria. — Como ousam chamar aquilo de "conquista"? Desse jeito... eles não são melhores que bestas irracionais. Na verdade, nem sequer podem ser chamados de bestas.

Lu Bu e Wu Zetian se entreolharam em silêncio, testemunhando a fúria fria e pessoal que agora queimava nos olhos de seu Imperador.

Cidade de Sancro – Antigo Campo de Batalha

A cidade de Sancro, outrora uma fortaleza vibrante sob o domínio de Qin, agora era um esqueleto fumegante de sua antiga glória. As ruas, antes repletas de vida, estavam cobertas de destroços, cinzas e corpos mutilados. O ar carregava o cheiro acre de sangue, fumaça e desespero. No centro da cidade, a casa do antigo líder, um edifício imponente de pedra branca, agora estava profanada, com suas portas arrancadas e janelas estilhaçadas. No topo da escadaria principal, Zenobia, a General Titânica, erguia-se como uma deusa cruel, seus cabelos amarelos com mechas pretas esvoaçando ao vento frio que cortava a noite.

Seus homens — uma horda de berserkers, trolls, goblins gigantes e guerreiros de Zan, todos com olhos selvagens e corpos marcados pela batalha — reuniam-se em volta, formando um semicírculo caótico. Seus rostos brilhavam com uma mistura de êxtase e fome, enquanto observavam os civis e soldados capturados, ajoelhados e acorrentados no centro da praça. O clima era opressivo, como se a própria terra tremesse sob a presença maligna que dominava o lugar. O céu escurecido parecia pulsar com uma energia profana, como se estivesse prestes a testemunhar um ritual demoníaco.

Zenobia ergueu uma mão, e o silêncio caiu sobre a multidão, exceto pelo som abafado dos gemidos dos prisioneiros e do crepitar das chamas que ainda consumiam partes da cidade. Seus lábios se curvaram em um sorriso cruel enquanto ela falava, sua voz ecoando como um trovão.

— Meus guerreiros leais, meus cães de caça, meus demônios da destruição! — ela exclamou, seus olhos brilhando com deleite. — Vocês lutaram com a fúria do próprio abismo. Sancro caiu, e com ela, mais um pedaço do orgulho de Qin! Digam-me agora, o que desejam? O que seus corações anseiam fazer?

A resposta veio como uma onda ensurdecedora, um coro de vozes guturais e desumanas que reverberava pela praça destruída. Berserkers batiam suas armas no chão, trolls rugiam, e goblins gigantes riam histericamente.

— Queremos matar! Queremos profanar! Queremos estuprar e destruir tudo! — gritaram, suas vozes se misturando em um cântico de horror que fazia os prisioneiros tremerem.

Zenobia jogou a cabeça para trás e gargalhou, um som que cortava o ar como uma lâmina. — Então, que assim seja! Pelas próximas duas horas, Sancro é de vocês! Contaminem, saqueiem, destruam, profanem! Deixem que cada pedra desta cidade chore sangue, que cada alma aqui aprenda o preço de desafiar Zan! Depois, marcharemos para a próxima presa!

A multidão explodiu em um frenesi. Como uma matilha de lobos famintos soltos de suas correntes, os guerreiros de Zan avançaram sobre a cidade e seus habitantes. Casas foram invadidas, gritos de desespero ecoaram pelas ruas, e o som de risadas sádicas se misturava ao estalar de ossos e ao tilintar de correntes. Era uma orgia de violência, uma cerimônia sombria onde a humanidade era reduzida a nada além de carne para o abate.

Zenobia observava de longe, sentada em um trono improvisado feito de escombros e armas quebradas. Seus olhos acompanhavam o caos com uma satisfação fria, quase clínica. Cada grito, cada súplica, era música para ela, um lembrete de seu poder absoluto. Mas sua atenção foi interrompida por um zumbido baixo vindo de um dispositivo em seu cinto — um comunicador.

Ela o ativou, e a voz de Thorfen, um dos outros Generais Titânicos, ecoou do outro lado, carregada de urgência. — Zenobia, a equipe de recolhimento está a caminho. Comece a separar os prisioneiros. Aqueles com potencial para servir como incubadoras ou soldados, mantenha. Os demais, prepare para o mercado negro seja como escravos, ou orgãos.

Zenobia franziu o cenho, tamborilando os dedos no braço do trono improvisado. — Já dei as ordens para a triagem, Thorfen. Meus homens sabem o que fazer. Por que está me interrompendo? Não me diga que Ptolemy quer relatórios agora.

A voz de Thorfen hesitou por um momento, um sinal raro de desconforto. — Não é sobre isso. O Rei Ptolemy convocou uma reunião. Todos os Generais Titânicos foram chamados. Você precisa estar em Zan imediatamente.

Zenobia arqueou uma sobrancelha, seu interesse despertado. — Uma reunião? Agora? — Ela se levantou, caminhando até a borda da escadaria, seus olhos percorrendo o horizonte onde as chamas de Sancro iluminavam a noite. — Ele deve estar planejando algo grande. Muito bem, estarei aí.

Ela desligou o comunicador, seu sorriso retornando, mas agora com um toque de curiosidade. Uma reunião dos Generais Titânicos não era algo trivial. Ptolemy, com sua mente tão afiada quanto cruel, só reunia seus onze generais quando algo monumental estava em jogo. Zenobia olhou uma última vez para a cidade em chamas, os gritos dos civis ecoando como uma sinfonia distante, antes de descer a escadaria com passos confiantes.

Enquanto ela se afastava, a visão se desloca, subindo lentamente para o céu, até que as ruínas de Sancro se tornam apenas um ponto brilhante na escuridão. A visão se expande, atravessando montanhas, florestas devastadas e rios tingidos de vermelho, até alcançar o coração pulsante de Zan. Uma cidade-fortaleza colossal, um labirinto de torres negras e catedrais profanas, onde o céu parecia permanentemente manchado de vermelho. No centro, um palácio de obsidiana erguia-se como uma montanha, suas janelas brilhando com uma luz sobrenatural. Era ali que Ptolemy reinava, e era ali que o destino de Umbra seria decidido.

A cena termina com um vislumbre da sala do trono de Ptolemy, onde sombras imponentes — os outros Generais Titânicos — começavam a se reunir, suas silhuetas indistintas contra a luz vermelha que emanava do coração do palácio. O ar estava carregado de tensão, como se o próprio mundo prendesse a respiração, à espera do próximo movimento no tabuleiro de guerra de Umbra.

Parte 2 

Sob um véu de chuva, a noite se curva, negra e fria,Um castelo de obsidiana ergue-se, ferida aberta na terra sombria.Gritos ecoam, fantasmas de almas em tormento,Crucificados na entrada, troféus de um reino sem alento.

Nos corredores vis, sob o chão de pedra fria,A dor é moeda, a tortura, uma sinfonia.Mulheres arrastadas, sombras quebradas em alas profundas,Onde a carne é usada até que a vida se afunda.

Em celas acolchoadas, mães presas choram em vão,Guardam sementes forçadas, vidas sob coação.No ventre frio de máquinas, crianças nascem sem luz,Filhos do aço, gerados onde o amor nunca cruz.

E ali, no coração do abismo, o conclave se forma,Sob a bandeira de Zan, onde o caos é a norma.Ptolemy, o Corvo-Rei, com olhos de brasas ardentes,Convoca seus espectros, titãs de vontades violentas.

Zenobia, Lâmina Voraz, corta o ar com seu riso,Thorfen, Sussurro da Sombra, desvenda segredos preciso.Kauron, Martelo da Ruína, esmaga com força bruta,Lunova, Guardiã do Ouro, tece riqueza absoluta.

Bondor, Forjador de Cinzas, molda armas do inferno,Malemia, Tecelã do Sofrimento, faz da dor um governo.Aurora, Mãe da Treva, embala vidas em desgraça,Gustav, Domador de Feras, treina a guerra que se abraça.

Shikabane, Corvo do Lucro, pilha tesouros com garras,Koro, Alquimista do Abismo, cria horrores que se formam.Audrey, Tempestade Alada, comanda bestas que voam,Juntos, titãs proibidos de lutar, selados por um juramento vão.



— Que ideia é essa de nos chamar assim do nada, Ptolemy? — Kauron perguntava sem hesitação, seus olhos percorrendo os rostos no grande salão onde se reuniam. — As batalhas para invadir os Reinos Divinos estão longe de acabar, sabia?

— É verdade, eu estava pensando em te perguntar justamente sobre isso, Kauron. Como pode demorar tanto para abrir caminho? Está tendo tanta dificuldade contra humanos? — Zenobia provocava, o tom de divertimento dançando em sua voz.

— Fiquem em silêncio de uma vez. Sou alguém ocupada, e se tenho que ficar aqui, prefiro que vá direto ao ponto — Aurora interrompeu, os olhos fixos no celular em sua mão, a tela refletindo um brilho frio em seu rosto.

— Eu imagino que tenha incomodado alguns o fato de eu tê-los convocado assim de repente — Ptolemy começou, sentado ao centro, sua voz grave ecoando como trovões abafados. — No entanto, garanto que havia um motivo válido para isso.

— É bom que seja, já que você me interrompeu em um momento crucial da minha pesquisa — disse Malemia, a garota de maria-chiquinhas pretas, segurando uma risada sádica. — Eu estava prestes a descobrir quantas unhas é preciso arrancar até que alguém desista de sua fé.

— Vocês estão falando sério? Acham que essas interrupções são o real problema? Me interromper algo muito pior, não se esqueçam que é por minha causa que vocês têm fundos para fazer o que fazem — Shikabane resmungou, buscando reconhecimento, mas todos o ignoraram, os olhares voltados para Ptolemy.

O Imperador então ergueu a mão, silenciando o murmúrio no salão. Seus olhos ardiam como brasas, e sua presença parecia sugar a luz do ambiente.

— Reuni todos vocês para anunciar o retorno de duas membras do culto, enviadas à reunião da União da Rosacruz: Amira e Mira.

Dois vultos surgiram das sombras, ajoelhados perante o conclave. Amira e Mira, com os rostos pálidos e olhos arregalados, não conseguiam esconder o medo que as consumia. Seus corpos tremiam, e o peso dos olhares dos titãs parecia esmagá-las contra o chão frio.

— E os outros? — perguntou Thorfen, sua voz um sussurro cortante, como uma lâmina deslizando pelo ar.

Ptolemy sorriu, um gesto que não trazia calor. — Mortos. Mas suas mortes não foram em vão.

Um murmúrio percorreu o salão, misturado com risos abafados e olhares cruéis. Amira e Mira se encolheram ainda mais, sentindo a hostilidade crescer.

— Elas falharam em recuperar o Braço de Lúcifer — Ptolemy continuou, sua voz ganhando um tom de desdém. Os olhos dos generais se voltaram para as duas, carregados de uma sede assassina que fez as mulheres recuarem, caindo para trás em pânico.

— Mas nem tudo está perdido — ele prosseguiu, erguendo uma mão para conter a fúria dos outros. — Embora não tenham trazido o Braço, elas conseguiram algo igualmente valioso: o Sangue Negro de Lúcifer.

Um frasco de obsidiana foi erguido por Ptolemy, contendo um líquido viscoso e escuro que parecia pulsar com uma energia profana. O salão ficou em silêncio, os olhares fixos no artefato.

Gustav, franziu a testa, sua voz rouca quebrando o silêncio. — Isso é suficiente para trazê-lo de volta?

Ptolemy riu, um som que ecoou como trovões distantes. — Óbvio que não. Mas com o Sangue Negro, podemos criar algo novo. Uma marionete vodu, mas ao contrário. Em vez de conectar o boneco ao corpo através do sangue, conectaremos o corpo à boneca. Lúcifer poderá usá-la como um receptáculo, um avatar para controlá-lo. E se aplicarmos o mesmo projeto que usamos para transformar humanos em receptáculos de demônios primordiais, poderemos extrair um fragmento de sua alma e colocá-lo em um corpo vivo. Um receptáculo que servirá como sua extensão no mundo.

O salão explodiu em aplausos, os titãs vibrando com a conquista. Amira e Mira, ainda no chão, finalmente relaxaram, acreditando que o pior havia passado. Seus corpos, antes tensos, começaram a se aliviar, até que um vulto surgiu atrás delas.

Aurora, moveu-se tão rápido que ninguém a viu se aproximar. Seus olhos brilhavam com uma crueldade gélida. — E o que faremos com elas agora? Não precisamos mais delas — disse, sua voz um sussurro venenoso.

As duas mulheres congelaram, o alívio transformando-se em terror. Ptolemy inclinou a cabeça, um sorriso frio curvando seus lábios. — Não importa. O trabalho delas terminou.

— Isso é algum tipo de brincadeira? — Mira gritou, sua voz tremendo. — Fizemos tudo o que foi pedido! Somos membras do culto, suas aliadas!

Amira se juntou a ela, lágrimas escorrendo pelo rosto. — Por favor, Ptolemy, nós somos leais!

Aurora riu, um som que cortou o ar como vidro estilhaçado. — Como aliadas, vocês tinham um dever a cumprir. E já o fizeram.

As duas tentaram se levantar, mas Zenobia e Kauron avançaram, rápidos como sombras. Com golpes precisos no estômago, deixaram-nas inconscientes em segundos. Aurora agarrou seus cabelos, arrastando-as pelo chão de pedra em direção às profundezas do castelo, enquanto os outros observavam em silêncio.

Ptolemy se levantou, sua voz ressoando com autoridade. — Agora, novas ordens. Vocês devem partir e encontrar, em algum canto deste mundo, pessoas cujas assinaturas de éter ressoem com a mesma frequência do nosso Senhor. Só assim poderemos injetar sua essência nelas, criando receptáculos perfeitos para Lúcifer.

Os titãs sorriram, seus olhos brilhando com uma alegria profana. Um a um, começaram a se mover, suas formas dissolvendo-se em sombras ou erguendo-se em asas negras. Saíram pelas janelas do castelo, voando sob a chuva torrencial, espalhando-se pelo mundo como uma praga.

Parte 3


Tudo começou no dia 20 de agosto de 20018. Naquela época, não fazíamos ideia de que tantos destinos colidiriam em uma única viagem de trem, um evento que, mais tarde, estamparia todos os jornais de Elysium. Mas a verdadeira ignição, o estopim que levaria ao incidente sem precedentes, acendeu-se dias antes, na cidade de Nova Verezzi. Uma cidade caótica, onde o som das crianças brincando nas vielas se misturava ao cheiro acre de fumaça, pólvora e ao odor metálico de sangue. Foi ali, naquele lugar de contrastes brutais, que a engrenagem do desastre começou a girar.

— Tem certeza de que já quer começar seu livro com uma mentira, Simon? — disse uma garota de cabelos loiros e vestido preto, com um palito de Pocky entre os lábios.

— O que você quer dizer com "mentira", Ellie? — Simon, o jovem escritor, perguntou, desviando o olhar do seu manuscrito para a companheira.

— Você descreve o ocorrido como um "incidente inacreditável que abalou o mundo". É um pouco de exagero, não acha? Especialmente logo depois do que vimos acontecer em Marte, aquilo sim pegou todos de surpresa.

— Isso não é mentir, é licença poética.

— Chame como quiser. Para mim, continua sendo mentira... não que seja a primeira vez que você mente em seus livros de "não ficção".

— Lá vem você com essa implicância de novo. Se não gosta dos meus livros, é só não ler.

— Eu preciso ler! Preciso saber como você anda mentindo sobre mim para estar preparada. Da última vez, você escreveu que eu andava por aí com cachimbo e chapéu. Um cliente meu quase cancelou o contrato porque duvidou de mim ao me ver sem eles, sabia?

— E é por isso que você agora sempre anda com esses cachimbos de chocolate? — ele apontou com o queixo para uma caixa sobre a mesa. — Enfim, isso não importa. Se não vai ajudar, pelo menos não me atrapalhe. Tenho muito o que escrever.

— Tanto faz. Mas, se vai mesmo continuar, me diga: já decidiu?

— Decidi o quê?

— Quem você vai transformar em protagonista desta vez?

— ?

— Bom, meu caro Simon, é que desta vez você tem uma quantidade invejável de personagens interessantes, não estou enganada? — Ela gesticulou em direção a algumas fotos espalhadas pela mesa. — Que tal este aqui? Frank Malone.

— O mafioso da família Malone? — Ele se levantou, caminhando até a foto.

— Um homem de boa aparência, sempre impecável com sua boina e seus capangas. Se você quer contar a história desde o início, narrá-la através dos olhos dele não seria uma má ideia, concorda?

Enquanto Simon encarava a foto que a garota segurava a imagem na fotografia parecia ondular, puxando o foco para dentro de si.



Uma semana antes do incidente, Cidade de Nova Verezzi


O ar do porão era denso e fétido. Um homem, com o rosto ensanguentado e um buraco no lugar de um dente, ergueu a cabeça com dificuldade.

— Não importa o que faça... eu não vou entregar meus companheiros.

— Sabe, eu admiro essa sua lealdade. Odeio traidores — disse Frank, alisando a lapela de seu terno imaculado. — Mas isso se torna um problema para mim. Preciso encontrar o seu parceiro, pois sei que é ele quem tem o contato direto com o chefe de vocês. Tenho que entender que ideia é essa de infiltrar espiões entre os meus homens e dar uma lição nele. Uma lição que sirva de exemplo para todos aprenderem a me respeitar. Caso contrário, jamais conseguirei tomar o lugar dos Salazar com sucesso.

O prisioneiro se arrastou, conseguindo se sentar, e cuspiu uma mistura de sangue e saliva no sapato caro de Frank.

— Você... substituir os Salazar? Não me faça rir. O mundo dará muitas voltas antes que você tenha essa chance.

— Realmente, uma infelicidade. Eu esperava uma conversa mais civilizada. — Frank suspirou, fazendo um sinal para a porta. Um grupo de homens de terno entrou na sala.

— Chefe, o que devemos fazer?

— Levem-no para "conversar" com o Bruno. Tenho certeza de que ele se tornará bem mais tagarela. — disse Frank, retirando o paletó para evitar que se sujasse.

— Opa, alguém chamou meu nome?

Da penumbra, surgiu uma figura massiva carregando uma serra elétrica, o corpo coberto por respingos de sangue seco e fresco.

— Ah, Bruno. Chegou em boa hora. Tenho uma nova tarefa para você.

Ao ver a silhueta sinistra e o brilho maníaco nos olhos do recém-chegado, o prisioneiro soube que não sairia dali com vida.



Sala de Simon, uma semana depois.


— Então, vai usá-lo como protagonista? — Eleanor (Ellie) perguntou, observando a expressão pensativa do escritor.

— Admito que seria interessante, mas não é bem isso que estou procurando — respondeu Simon, afastando a foto. — Mas quem sabe...

Ele então puxou outra fotografia da pilha.



Uma semana antes do incidente, cidade de Manchini.


— Tem certeza de que é isso que você quer, minha filha? — uma mulher de semblante preocupado olhava para a jovem determinada à sua frente.

— Eu não tenho outra escolha, mamãe... — respondeu a garota, seu olhar firme. — Se eu puder descobrir a identidade do assassino do meu pai, não me importo com as consequências.

— Mas, Mikaela, você precisa entender. Aqui não é como em Gaia. Alguns crimes estão conectados a forças maiores, com as quais nem a polícia consegue lidar. Talvez eles não tenham nos contado a verdade simplesmente porque também a desconhecem.

— Então o quê? Devo baixar a cabeça e aceitar? Nunca! Eu não vou fazer algo assim. Nem que eu tenha que perguntar diretamente para Newton, eu vou descobrir a verdade. Eu juro.




— Não, não, não. Quer usar a filha do nobre como protagonista? — interrompeu Eleanor, impaciente. — Não haverá ação nenhuma no início da trama e, para piorar, o final ficará em aberto. Nunca saberemos se ela realmente encontrou a Newton.

—...Falta ação?

— Exato!

— Então que tal...

Simon, sem se abalar, continuou a remexer nas fotos. Sua mão parou sobre a imagem de uma garota cheia de atitude: longos cabelos pretos com mechas vermelhas, olhos intensos, e um quepe de estilo militar e uma saia xadrez curta.



Uma semana antes do incidente, um vilarejo remoto.


— Então, a nossa missão é levar esta joia até a capital? — a garota de quepe vermelho perguntou, analisando o objeto cintilante.

— Exatamente, senhorita Ludmilla. Precisamos que ela seja exposta na Cidade de Metal o quanto antes. O método mais rápido é ir deste vilarejo até Nova Verezzi e, de lá, pegar o expresso. Uma escolta comum não seria suficiente — explicou o jovem e tímido chefe da guilda local.

— Faz sentido. Não deve haver muitos corajosos dispostos a carregar um item tão valioso por Verezzi. Mas por que pedir a um estudante de Babylon? Não podia contratar um caçador daqui? — Ludmilla perguntou, guardando a joia com cuidado.

— Bom, é que... — o homem hesitou, olhando para o salão da guilda.

O lugar estava quase vazio. Havia um ou dois bêbados roncando em um canto e algumas crianças que pareciam mais brincar de serem caçadores do que realmente trabalhar.

— Não há muitos caçadores por aqui, já que não tem muitos monstros ou perigos reais com que lidar — disse um rapaz de cabelos pretos e roupas arroxeadas que se aproximava.

— Não é porque são poucos que não existe nenhum, Daemon — retrucou Ludmilla. — O simples fato desta joia ter sido encontrada aqui é a prova disso. Afinal, é um item recuperado de algum monstro.

— Pode até ser, mas não é assim que eles pensam — disse Daemon, caminhando para a saída.

— Ei, me espera! — Ludmilla gritou, despedindo-se do chefe da guilda e aceitando a missão.

Ao sair para a rua poeirenta, ela viu um homem arrancando a bolsa de uma senhora em frente a um bordel. O ladrão correu na direção dela. Sem que ele percebesse, com um movimento ágil e preciso, Ludmilla recuperou a bolsa. Quando o homem se virou para reclamar, uma corrente disparou da cintura dela, prendendo-o e arremessando-o com um solavanco em direção ao mar.

— Aqui está, senhora. É melhor ter mais cuidado por onde anda — disse Ludmilla, devolvendo o pertence. Ela se ergueu e observou o vilarejo com um olhar crítico. — Hum... não querem tentar a sorte como caçadores, mas não se importam em roubar ou vender seus corpos... alcune cose non cambiano davvero.

— Você disse alguma coisa? — Daemon se aproximou, sentindo que ela havia murmurado algo.

— Nada de especial. Vamos logo.




— Usar os alunos de Babylon certamente encheria a história de ação, mas... — Eleanor parou no meio da frase.

— Eu sei, pensei a mesma coisa. Hoje em dia, tudo que se fala é sobre eles. Deste jeito, não teria muita originalidade — Simon concluiu, coçando a cabeça. — Mas o que fazer, então?

Os dois se encararam e, como se guiados por um ímã, seus olhares varreram a mesa e pousaram na mesma foto ao mesmo tempo.

— Pensando bem, estávamos agindo como tolos. Sempre houve uma única resposta para essa pergunta — Eleanor falou, um sorriso cúmplice surgindo em seu rosto.

— Concordo. Só pode ser ela — Simon assentiu.

— Agora que concordamos, que tal começar a história de um jeito um pouco menos mentiroso? — acrescentou Eleanor, com um brilho divertido nos olhos.

— Vai implicar com isso de novo...?

Enquanto eles retomavam a discussão, uma leve brisa que invadiu a sala fez a foto escolhida planar até o chão. A imagem revelava uma jovem de cabelos amarelos e olhos azuis. Sem dúvida, embora ninguém soubesse na época, entre todas aquelas figuras importantes, era ela quem estava bem no centro de tudo.

Aquela foi a primeira vez que testemunhei uma história ao lado de Eleanor que eu não poderia transformar em mais um dos meus romances de detetive. Isso porque...

Parte 4


18 de agosto de 20018 as 16:30 Cidade de Nova Verezzi

Longe dos céus de vidro e do brilho perpétuo da capital de Elysium, onde a vida pulsa em trilhos de luz, espalham-se as Cidades Exteriores. São bolsões de humanidade que o tempo parece ter esquecido — ou talvez, deliberadamente ignorado. Enquanto a Cidade de Metal, o coração do reino, sussurra com a pulsação de tecnologia invisível, cada cidade costeira agarra-se a uma identidade própria, uma cultura rústica e inesquecível.

Nenhuma, contudo, é tão visceral quanto Nova Verezzi.

Ancorada em uma costa rochosa, era uma terra marcada pelo vermelho. Havia o vermelho agridoce de suas famosas maçãs e tomate, que davam a base para pratos impensáveis em qualquer outro lugar — da pizza com finas fatias caramelizadas ao macarrão servido em seu denso molho rubro. E havia, claro, o vermelho do sangue, derramado em becos escuros e considerado por alguns residentes o único símbolo verdadeiro de uma jura por honra familiar.

O sagrado e o profano dançavam em suas ruas de paralelepípedos cobertas de fuligem. O incenso que escapava das capelas úmidas nos morros misturava-se ao cheiro de uísque e tabaco nos clubes de jazz, onde o lamento de um saxofone era o hino para contratos assinados sob a mira de um revólver. No frágil equilíbrio entre o porto da Máfia e as avenidas dos gângsteres, a cidade prendia a respiração. Era um lugar movido a combustão, fé e pólvora, onde todos sabiam que a noite, com sua névoa e seus segredos, sempre pertenceria a quem tivesse a lâmina mais afiada.

— Ei, parado aí, seu idiota! — Um homem de cabelos pretos com um tapa-olho gritava enquanto corria.

O homem segurando uma bolsa nos braços, desesperado, correu até um que estava sentado em sua Vespa. Derrubou o motociclista, subiu na moto e começou a fugir.

Accidenti, ora sarà dura prenderlo... — O homem ofegava, respirando com dificuldade.

— Isso não teria acontecido se você não tivesse gritado "Peguem aquele cara!" — Uma garota loira de olhos azuis falava, irritada.

De repente, uma multidão se aproximava, começando a lotar a rua. Uma mulher se aproximou do homem de tapa-olho.

— Ah, são vocês, Ozen? — Uma mulher na multidão relaxou ao ver o rosto do homem, que colocava a mão na cabeça como se já estivesse pronto para pedir desculpas. — O que está acontecendo?

Ozen abriu um sorriso cansado, mas ainda assim malandro, tirando um cigarro amassado do bolso do casaco. — Apenas um pequeno... desentendimento de trânsito, Signora Rossi. Nada com que se preocupar. Estamos resolvendo.

— Resolvendo? — Miriam Procheno sibilou ao lado dele, os punhos cerrados. — Ozen, ele está fugindo! Não temos tempo para suas relações públicas!

Antes que Ozen pudesse responder com outra de suas desculpas charmosas, um chiado estalou no pequeno comunicador em seu ouvido e no de Miriam. A voz calma e controlada de Gustavo soou, clara como cristal em meio ao caos da rua.

Calma, pessoal. O alvo ainda está no nosso anzol. Aquele teatro todo só o levou para onde queríamos. — Houve uma pausa, o som sutil de teclas sendo digitadas. — Leona e Regulus estão a menos de duzentos metros dele, se aproximando pelo leste. A rota de fuga dele em direção ao porto é um beco sem saída. Literalmente. Eles já o têm.

Ozen deu uma piscadela para a Signora Rossi e uma tragada profunda em seu cigarro, a fumaça se misturando com a fuligem da cidade. — Viu só? Tudo sob controle.



Longe da multidão, o ladrão sentia o vento chicotear seu rosto, o motor da Vespa gritando sob ele. Ele se sentia invencível, o zumbido da adrenalina abafando qualquer outra coisa. Ele havia conseguido. Estava livre.

Foi então que ouviu.

Não era o som de outro motor, nem sirenes. Era o som rítmico e impossivelmente rápido de passos no asfalto. Ele olhou pelo espelho lateral e seu sangue gelou.

Duas figuras o acompanhavam, uma de cada lado da rua, correndo com uma velocidade que desafiava a lógica. Não corriam, fluíam. Um borrão de cabelo platinado de um lado, uma sombra silenciosa com uma katana do outro. Eles não estavam nem ofegantes.

Desesperado, ele acelerou, desviando de uma carroça de maçãs e fazendo um carro frear bruscamente. Mas eles continuavam ali, implacáveis. Leona saltou sobre o capô de um sedã estacionado com a agilidade de um felino, aterrissando sem perder o ritmo. Regulus, com seus olhos vendados, parecia sentir o fluxo da cidade, deslizando por um vão estreito entre um ônibus e a parede de um prédio, correndo por alguns instantes na própria parede para evitar a colisão.

O ladrão virou-se em seu assento, o rosto uma máscara de pânico e descrença. — Shapers! Vocês são malditos Shapers! — gritou ele, a palavra soando como uma praga.

A distração foi fatal. Ele não viu que a rua à frente, uma das muitas vias íngremes de Nova Verezzi que desciam para o porto, terminava abruptamente, dando lugar a uma escadaria e uma queda de quase dez metros até o nível inferior da cidade.

A Vespa voou sobre a borda.

Por um instante, tudo ficou em câmera lenta. O grito de terror do ladrão, a bolsa de couro voando de suas mãos, a moto girando no ar.

Mas a Osdra era mais rápida que o pânico e a gravidade.

Leona se projetou para a frente, um raio platinado em meio à queda. Em um movimento fluido, seu braço forte envolveu o peito do ladrão, parando sua descida. Com a outra mão, ela arrebatou a maleta do ar.

Logo atrás dela, Regulus Brennan saltou no vazio. Sua katana deixou a bainha com um zumbido quase inaudível. SHING, SHING, SHING! Três cortes, precisos e fatais. A Vespa se desfez no ar como um quebra-cabeça de metal, suas peças cortadas caindo inofensivamente em direções diferentes, nenhuma maior que um palmo.

Leona aterrissou no chão de paralelepípedos abaixo com a leveza de uma pena, segurando o ladrão trêmulo e a maleta intacta. Regulus pousou ao seu lado um segundo depois, sua katana já deslizando de volta para a bainha com um clique satisfatório.

As pessoas na rua de baixo, que haviam olhado para cima ao ouvir o grito, ficaram em silêncio por um segundo, processando a cena impossível. Então, o choque deu lugar à admiração. Aplausos e assobios eclodiram, uma onda de reconhecimento para os mercenários que mantinham a estranha ordem da cidade.

O ladrão, pálido e ofegante nos braços de Leona, finalmente encontrou sua voz. Ele olhou para os dois caçadores sobre-humanos e ergueu as mãos em rendição total.

— Eu desisto! Me desculpem! Eu desisto!

Algumas horas depois.

A delegacia de Nova Verezzi cheirava a café requentado e frustração. No centro do burburinho, a Detetive Sofia Vargas, uma mulher de olhar severo e cabelos presos num coque apertado, tinha as mãos na cintura, encarando a Osdra.

— Uma Vespa em pedaços, meia dúzia de multas de trânsito que foram parar na minha mesa e uma queixa de perturbação da ordem pública no distrito portuário... Foi um dia agitado, não é, Ozen? — A voz dela era puro sarcasmo.

Ozen, impávido, ofereceu seu melhor sorriso. — Apenas o custo de fazer negócios, detetive. O alvo está sob custódia, a propriedade do banco está segura. Um final feliz, eu diria.

A detetive massageou as têmporas, enquanto ao fundo, o resto dos policiais não disfarçava os olhares e cochichos. "São eles... a Osdra", um dizia. "Aqueles que destruíram o bar do Velho Tino mês passado", outro completava. Sobrou para Miriam, com o rosto corado, tentar explicar a sequência de eventos de uma forma que não os fizesse parecer completos maníacos.

Após uma longa e exaustiva negociação de desculpas, a detetive finalmente suspirou e entregou um envelope com o pagamento. — Peguem. E tentem não demolir a cidade da próxima vez.

Enquanto se viravam para sair, ouviram risadas abafadas vindo de um canto da sala. — Eles acham que são o quê? Caçadores? — um policial zombou. — Que piada. Se acham durões, nasceram no lugar errado. Deviam voltar para a fazenda de onde vieram — disse outro, com desdém.

A cor sumiu do rosto de Miriam. Aquilo doeu. Era exatamente o seu medo: nunca ser levada a sério, ser vista como uma caipira sonhadora. Ela baixou a cabeça, envergonhada. Ozen percebeu e, com um gesto paternal, passou a mão sobre o cabelo dela.

— Não liga pra isso, pequena. Cães que latem muito não costumam morder.

Leona, contudo, não foi tão sutil. Ela parou e virou lentamente a cabeça. Seus olhos dourados, penetrantes e frios como o aço, fixaram-se nos dois policiais. Ela não disse uma palavra. Não precisava. O ar ao redor deles pareceu ficar mais denso e gelado. Os sorrisos morreram, as gargantas secaram, e os dois homens de repente acharam o padrão do piso extremamente interessante, evitando o olhar dela a todo custo.

Satisfeita, Leona se virou e continuou a andar. Foi quando a Detetive Vargas voltou, com uma expressão confusa.

— Ei, esperem aí! Por que o prisioneiro estava amordaçado com fita adesiva?

O sorriso de Ozen congelou. Um pingo de suor frio escorreu por sua testa. Em um movimento rápido e desesperado, ele se abaixou, pegou Miriam no colo como se fosse um saco de batatas e começou a correr em direção à saída.

— É QUE ELE NÃO PARAVA DE GRITAR E ESTAVA DIFICULTANDO A TAREFA DE TRAZÊ-LO! — gritou ele, já em movimento.

Leona e Regulus, sem perder o ritmo, seguiram-no na mesma velocidade. — OZEN, ME PÕE NO CHÃO! POR QUE ESTAMOS CORRENDO?! — Miriam se debatia em seu ombro. Ozen não respondeu, apenas correu mais rápido. O rosto de Miriam se transformou de confusão para horror. — Ah, não... você fez aquilo de novo, não fez?



Na sala de interrogatório, um policial finalmente arrancou a fita adesiva da boca do bandido. Em vez de um suspiro de alívio, o homem inspirou fundo e berrou, apontando para a porta por onde a Osdra havia fugido.

— ELES ME ROUBARAM! AQUELES MALDITOS MERCENÁRIOS LEVARAM MINHA CARTEIRA! TODO O MEU DINHEIRO!

A Detetive Vargas fechou os olhos, apertando a ponte do nariz com força. Com uma voz carregada pelo peso de incontáveis incidentes semelhantes, ela murmurou para si mesma.

— De novo...



Já a uma distância segura da delegacia, Miriam finalmente conseguiu se soltar e encarou Ozen, furiosa.

— Eu não acredito em você! De novo, Ozen?! Como você quer que as pessoas nos respeitem se você age como um ladrãozinho de quinta?!

— Ei, calma! — ele disse, levantando as mãos em sinal de paz. — Pense bem: eu só peguei o dinheiro dele, não o dinheiro que ele roubou do banco. O dinheiro do banco nós devolvemos. Tecnicamente, a missão foi um sucesso. E afinal, ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão, não é?

Miriam tapou o rosto com as duas mãos, soltando um gemido de pura vergonha. — Eu não quero nem olhar para a sua cara.

No meio da discussão, eles pararam de repente. Tinham andado vários metros sem perceber que Leona não estava mais com eles. Olhando para trás, eles a viram parada na entrada de um beco escuro e úmido.

Enquanto se aproximavam, as primeiras gotas de uma chuva fria começaram a cair, escurecendo o asfalto. Leona estava agachada, o olhar fixo em algo no chão. No beco, encolhida perto de uma lata de lixo, estava uma pequena bola de pelos, encharcada e tremendo: um gatinho preto, com um machucado visível na pata.

A dureza no rosto de Leona se dissolveu, dando lugar a uma expressão de pura gentileza. A chuva engrossou.



A porta do Osdra Cafe esconderijo da Osdra se abriu com um chute leve.

— GUSTAVO, CHEGAMOS! — Ozen anunciou para o interior da cafetaria que servia de base. — E ACHO BOM VOCÊ ATUALIZAR A FOLHA DE PAGAMENTO! TEMOS UM NOVO MEMBRO NA EQUIPE!

Gustavo, que provavelmente estava monitorando tudo de sua sala, não respondeu de imediato. Mas a raiva no rosto de Miriam havia desaparecido, substituída por um sorriso genuíno e caloroso.

Ela observava Leona, que entrava logo atrás de Ozen. A durona e intimidadora caçadora segurava com uma delicadeza infinita o pequeno gato preto, agora enrolado em seu casaco, ronronando suavemente apesar de tudo.

Parte 5 


O Osdra Café, um oásis improvável na selva de paralelepípedos e fumaça de Nova Verezzi, exalava uma calma enganadora naquela manhã enevoada. O aroma de café torrado e pão quente disputava espaço com o cheiro úmido da chuva que ainda pingava do telhado. Era um refúgio onde a Osdra podia fingir, por algumas horas, que era apenas um grupo de excêntricos servindo cappuccinos, e não uma equipe de mercenários que dançava na corda bamba entre a lei e o submundo.

Ozen, com um avental preto sobre a camisa amarrotada, movia-se atrás do balcão como um maestro regendo uma sinfonia de caos controlado. Seu tapa-olho reluzia sob a luz fraca dos lustres, e cada sorriso calculado arrancava gorjetas generosas de clientes desavisados — especialmente das senhoras que cochichavam sobre o belo dono do café. Miriam, com o cabelo loiro preso em um rabo de cavalo desleixado, atendia as mesas com um misto de timidez e determinação, desviando o olhar sempre que um cliente se mostrava amigável demais. Leona, por outro lado, era uma estátua viva: entregava pratos com uma precisão militar, os olhos dourados varrendo o ambiente como um farol, desencorajando qualquer tentativa de conversa fiada.

Na cozinha, Regulus cortava cebolas com uma faca mais na mesma velocidade e precisão, que usou para desmantelar a Vespa na noite anterior, cada golpe tão preciso que o cozinheiro assistente, um rapaz local, apenas observava, boquiaberto. No andar de cima, Gustavo permanecia invisível, trancado em seu “covil tecnológico”. Uma bandeja com café preto e pão com tomate fora deixada na porta de seu quarto pela manhã, com um bilhete de Miriam: “Não ouse reclamar da torrada. Está perfeita.” A resposta, enviada por um drone minúsculo que zumbia pelo café, foi apenas um “Aceitável” em letras piscantes.

A rotina, porém, nunca durava muito em Nova Verezzi.

Por volta do meio-dia, o sininho da porta tilintou, e dois homens entraram com a confiança de quem acha que o mundo lhes deve favores. Seus ternos baratos, mal ajustados, contrastavam com os anéis dourados e o perfume forte que anunciava sua chegada antes mesmo de cruzarem a porta. Sentaram-se em uma das mesas de Miriam, pedindo espressos com um tom que misturava desdém e provocação.

— Dois espressos, bambina — disse o mais velho, um homem com cabelo penteado para trás e um sorriso que parecia escorrer óleo. Ele esticou a mão para tocar a saia de Miriam ao receber a xícara, um gesto disfarçado como “acidente”.

Miriam congelou, o rosto vermelho como as maçãs de Nova Verezzi. — Não... não foi nada — murmurou, recuando com o bule ainda na mão.

O segundo homem, mais jovem e com um cavanhaque mal aparado, riu baixo, como se o desconforto dela fosse parte da diversão. Ele tentou repetir o gesto, mas sua mão não chegou a tocar a saia. Um vulto platinado surgiu ao lado de Miriam, e a mão de Leona segurou o pulso do homem com a precisão de um torno. Seus olhos dourados, frios como o aço sob a luz do porto, fixaram-se nos dele. Não havia ameaça explícita, apenas a promessa silenciosa de consequências. O homem recolheu a mão, o rosto pálido, e o café na xícara tremeu visivelmente.

O primeiro homem, sentindo o ego ferido, levantou-se, a cadeira arranhando o chão de madeira. — Ei, garota, quem você pensa que é pra...

Ele não terminou a frase. Em um borrão de movimento, Leona girou, e um chute preciso acertou a parte de trás de seu joelho, fazendo-o desabar e logo em seguida o lançou na calçada molhada do lado de fora com um grito mais de surpresa do que de dor. O segundo homem, já de pé, hesitou, mas Ozen apareceu como um espectro, segurando-o pelo colarinho com uma força que desmentia seu sorriso tranquilo.

— Cavalheiros, este é um estabelecimento de respeito — disse Ozen, a voz melíflua como um licor envenenado. Ele os arrastou até a porta com uma facilidade que sugeria prática. — Mas, como bons anfitriões, não os deixaremos sair de mãos vazias.

Com um gesto teatral, ele virou as xícaras de espresso quente sobre as cabeças dos dois, que fugiram aos tropeços, xingando entre gemidos de humilhação. A multidão do lado de fora, acostumada aos dramas do Osdra Café, aplaudiu como se assistisse a uma peça de rua.

Uma senhora de cabelos grisalhos, sentada com uma xícara de chá, suspirou encantada. — Esse Ozen... sempre protegendo suas meninas! Um verdadeiro cavaleiro!

Miriam, ainda segurando o bule, fechou os olhos e respirou fundo, tentando não explodir. “Meninas...” A palavra a irritava, como se ela fosse uma criança precisando de proteção, e não uma mercenária que enfrentava ladrões e Shapers.

Antes que pudesse dizer algo, o sininho da porta tilintou novamente. A Detetive Sofia entrou, seguida por um jovem policial de rosto ansioso, com um distintivo tão novo que ainda brilhava. Sofia, com seu coque apertado e um olhar que cortava como uma lâmina, parou em frente ao balcão, ignorando o burburinho dos clientes.

— Ozen — disse ela, a voz seca como a fuligem das ruas. — Ouvi falar de uma confusão aqui fora. E sobre ontem... o ladrão está gritando na delegacia que teve um “confisco não oficial de bens”. Alguma ideia do que ele está falando?

Ozen, polindo um copo com uma calma ensaiada, deslizou uma xícara de cappuccino na direção dela. — Cortesia da casa, detetive. Quanto ao ladrão, bem, ele deve estar confuso. Adrenalina faz coisas estranhas com a memória.

Sofia pegou a xícara, mas seus olhos não deixaram os de Ozen. — Não me venha com essa, Ozen. Se eu encontrar uma carteira com o nome dele no seu bolso, vou te arrastar para a cela mais úmida que temos.

O clima ficou tenso, mas Miriam, ainda vermelha da confusão anterior, interveio, a voz suave. — Detetive, foi um mal-entendido. Ozen só... ele só... — Ela hesitou, sem saber como defender o indefensável.

Sofia suspirou, o peso de lidar com a Osdra visível em suas têmporas. — Miriam, você é a única aqui que parece ter um pingo de bom senso. Me diga, por que continuo confiando em vocês?

Antes que Miriam pudesse responder, Leona, que secava um prato com uma precisão quase hipnótica, ergueu uma mão. Seus dedos dançaram em uma sequência rápida de linguagem de sinais, e o jovem policial ao lado de Sofia arregalou os olhos, claramente sem entender.

Sofia deu um meio sorriso, traduzindo. — Ela disse que, se seus homens rirem de Miriam de novo, ela vai desmontá-los como fez com aquela Vespa. Pedaço por pedaço. — O tom era quase divertido, mas havia um respeito genuíno ali. — Agradeço a franqueza, Leona.

— Leona! — Miriam exclamou, o rosto agora vermelho por um motivo diferente. — Eu não ligo pro que dizem de mim!

— Mas deveria — disse Sofia, o tom subitamente grave, como se carregasse o peso de uma verdade antiga. — Neste mundo, Miriam, o que as pessoas acreditam sobre você pode ser mais perigoso do que uma bala. É o Efeito Espelho da Fé.

Ozen, que limpava uma mancha imaginária no balcão, ergueu uma sobrancelha. — A teoria do décimo terceiro Newton, hein? A ideia de que a crença coletiva molda o éter, e distorce a realidade. — Ele inclinou a cabeça, como se saboreasse a ideia. — Então é por isso que Nova Verezzi sempre fede a pólvora e uísque, mesmo num dia limpo? Porque todos esperam que ela seja assim?

Sofia assentiu, impressionada com a perspicácia. — Exato. Se milhares de pessoas acreditarem que as maçãs daqui são azuis, um dia elas vão nascer azuis. O éter responde à fé. E, em Nova Verezzi, a fé é uma arma.

O jovem policial, ainda confuso, arriscou: — Então... a cidade é assim porque as pessoas querem que ela seja?

— Não exatamente — respondeu Sofia. — É mais como... um eco. O que as pessoas temem, desejam ou acreditam com força suficiente se torna real. Por isso a reputação de vocês, Osdra, é uma faca de dois gumes.

Regulus emergiu da cozinha, silencioso como uma sombra, o pano de prato jogado sobre o ombro e a katana embainhada ao lado. Seus olhos vendados pareciam perfurar Sofia, como se ele pudesse ver além da fachada dela.

— Detetive — disse ele, a voz calma, mas afiada como sua lâmina. — Você não veio aqui para nos dar uma aula de metafísica. Nem para reclamar de carteiras roubadas. Qual é o jogo?

Sofia sustentou o olhar invisível de Regulus por um momento, então fez um sinal para o jovem policial, que, com dedos trêmulos, colocou uma pasta grossa sobre o balcão. O couro da pasta estava gasto, mas as bordas douradas sugeriam importância.

— O Expresso Elysium — anunciou Sofia, abrindo a pasta para revelar fotos em preto e branco, plantas detalhadas e um manifesto de carga. — Um trem blindado, a joia da coroa da tecnologia de Elysium. Projetado para conectar as Cidades-Estado, do porto de Nova Verezzi às torres de vidro da Cidade de Metal. A primeira viagem, ocorrerá amanhã, nobres, diplomatas, artefatos de valor inestimável. E um cofre que carrega algo que... digamos, não pode cair em mãos erradas.

Ela fez uma pausa, escolhendo as palavras com cuidado. — Inteligência nos informou que Don Brown e Frank Malone, os novos mandachuva da máfia, planejam transformar o evento em seu grande momento. Querem o cofre. E estão dispostos a tudo para consegui-lo.

— Malone... — Regulus murmurou, o nome saindo como uma praga. — Ele tem recrutado Shapers. Construindo uma máfia paranormal para substituir a antiga família Salazar. Isso explica os rumores de desaparecimentos no porto.

— Exato — confirmou Sofia. — A segurança do trem inclui guardas de elite, policiais e mercenários contratados pelos nobres. Eles estão prontos para balas, facas, explosivos. Mas não para Shapers. Não para o que Malone está planejando. — Ela cruzou os braços, o olhar firme. — Preciso de vocês a bordo, Osdra. Como garantia.

Ozen se inclinou sobre o balcão, os olhos brilhando com uma mistura de cobiça e curiosidade. — E qual seria o preço dessa... garantia?

Sofia rabiscou um número em um guardanapo e o empurrou na direção dele. Ozen leu em voz alta, e seu sorriso congelou por uma fração de segundo antes de se alargar em uma expressão de puro deleite.

— Miriam, comece a arrumar as malas! — exclamou ele, já imaginando os lucros.

— Espere — cortou Regulus, a voz como um fio de aço. — Um pagamento desses para “proteger um trem”? É simples demais. O que você não está nos contando, detetive?

O jovem policial engoliu em seco, olhando para Sofia como se temesse a resposta. Ela sustentou o olhar de Regulus, o ar entre eles carregado de tensão.

— Não há “simples” no Expresso Elysium — disse ela, por fim. — O que está no cofre... digamos que é mais do que ouro ou joias. É algo que pode mudar o equilíbrio de Elysium. Não posso contar mais, não aqui. — Ela fechou a pasta com um estalo e se levantou, ajeitando o casaco. — Vocês têm até amanhã ao amanhecer para decidir. Metade do pagamento adiantado, a outra metade na Cidade de Metal, entregue pelo meu contato. Se recusarem, entenderei. 

Ela virou-se para sair, o jovem policial correndo atrás dela. A pasta e o guardanapo ficaram sobre o balcão, pesados como uma sentença.

O silêncio no café foi quebrado por um miado suave. Fuligem, o gatinho preto resgatado na noite anterior, saiu de debaixo do balcão, a pata ainda enfaixada, e se esfregou na perna de Leona. Ela se abaixou, os olhos dourados suavizando-se enquanto acariciava o animal com uma delicadeza que contrastava com sua reputação. Por um momento, o peso da decisão, do cofre misterioso e da ameaça de Malone pareceu desaparecer.

Miriam, ainda processando a conversa, murmurou: — Um trem... Shapers... e algo que pode mudar Elysium? O que a gente tá fazendo, Ozen?

Ozen, recostado no balcão, acendeu um cigarro, a fumaça subindo em espirais lentas. — O que sempre fazemos, pequena. Dançamos na beira do abismo e esperamos não cair.

No andar de cima, o zumbido de um drone ecoou, e a voz de Gustavo soou pelo comunicador no ouvido de cada um deles, calma e afiada como sempre. — Já estou acessando os esquemas do Expresso Elysium. Preparem-se. Isso não vai ser um passeio qualquer.

— O dinheiro é uma isca, Ozen. O cheiro é forte demais. Uma missão tão perigosa que a polícia e guardas especiais não são garantia, mas o pagamento é tão alto que nos tenta a ignorar isso. — Ele finalmente ergueu o rosto, seus olhos vendados parecendo enxergar através de todos eles. .

— Mas isso não é o mesmo de sempre ? — Ozen retrucou, acendendo um cigarro e soltando a fumaça lentamente. Ele pegou um dos esboços do Expresso Elysium que Gustavo havia entregado. — Um exército de Shapers... Isso não é uma briga de bar. Frank Malone querendo o posto dos Salazar... isso é guerra de máfia em um nível que nunca vimos.

Leona, que terminava de acariciar o gato em seus braços, o colocou no balcão, chamando a atenção de todos. Ela olhou para Miriam e começou a gesticular rapidamente com as mãos.

Miriam traduziu, sua voz um pouco mais contida. — Leona diz: [Correr de uma briga por medo não é o nosso jeito. Mas entrar cego nela é estupidez. Precisamos de mais informação.]

— Informação que não temos — concluiu Regulus.

Ozen passou a mão pelo cabelo, o conflito visível em seu rosto. Ele olhou para a escada que levava ao andar de cima. — GUSTAVO! DESCE AQUI! PRECISAMOS DO SEU CÉREBRO SUPERDIMENSIONADO!

Ouviu-se um suspiro audível vindo de cima, seguido por passos relutantes. Gustavo Dolla apareceu no topo da escada, vestindo um moletom e com fones de ouvido no pescoço. Seus cabelos loiros estavam uma bagunça, e ele parecia genuinamente irritado por ter sido exposto à luz do dia.

— O que é tão importante que não podia ser resolvido por um comunicador? — perguntou ele, descendo os degraus.

— Quero sua opinião pessoal o'que acha disso tudo ? — Ozen perguntou diretamente olhando em seus olhos. 

— Não. — disse ele, categórico.

— "Não" o quê? — perguntou Miriam.

— Não vamos aceitar. Estatisticamente, é um desastre anunciado. O trem é um ambiente fechado com alvos de alto valor e um número desconhecido de agressores com habilidades paranormais. A probabilidade de fatalidade para uma equipe de assalto do nosso tamanho, com as variáveis que a detetive convenientemente omitiu... é inaceitavelmente alta. O risco não compensa a recompensa.

O argumento lógico e frio de Gustavo pareceu selar a questão. Miriam murchou no canto para ninguém perceber, seu sonho desinflando diante de seus olhos. Regulus assentiu lentamente, satisfeito com a análise.

Mas Ozen não olhava para Gustavo ou Regulus. Ele olhava para Miriam. Ele viu a esperança em seus olhos ser substituída pela resignação de sempre, a aceitação de que eles estavam presos em Nova Verezzi, para sempre.

Ele suspirou, amassando o cigarro no cinzeiro com uma força desnecessária.

— Sabe... ser pequeno e seguro nunca pagou as contas. — disse ele, a voz baixa. Todos se viraram para ele. — É um trabalho suicida? Provavelmente. O pagamento é bom demais pra ser verdade? Com certeza. O Gustavo está certo, as chances são péssimas.

Ele fez uma pausa, e então um sorriso torto, aquele sorriso de malandro que conheciam tão bem, começou a se formar em seus lábios.

— Mas... — continuou ele, o olhar fixo em Miriam. — É o tipo de trabalho que nos coloca no mapa. Ou nos apaga dele de vez. E eu, pessoalmente, sempre gostei de uma boa aposta.

O queixo de Miriam caiu. Regulus permaneceu em silêncio, mas havia uma tensão em seus ombros que não estava lá antes. Leona ergueu uma sobrancelha, um brilho de desafio em seus olhos dourados.

— Você está falando sério? — perguntou Gustavo, incrédulo. — Isso vai contra toda a lógica!

— E desde quando nós seguimos a lógica, Gustavo? — Ozen riu, levantando-se e batendo as mãos na mesa, agora com um ar de liderança inegável. — A decisão está tomada. Vamos pegar esse trem.

A energia no ambiente mudou instantaneamente. A dúvida deu lugar a uma determinação tensa.

— Miriam — Ozen comandou. — Prepare nosso melhor equipamento de combate. O discreto e o nem tanto. Gustavo, quero que você hackeie tudo que puder sobre o Expresso Elysium. Plantas, horários, lista de passageiros, tudo. Regulus, Leona, descansem e se preparem. Vai ser uma longa viagem.

Ele pegou seu celular do bolso, o sorriso ainda no rosto. Ousadia e loucura dançavam em seu olho bom. Ele discou um número.

— Sofia?... Somos nós. Prepara a primeira metade do pagamento. Nós estamos dentro.

Parte 6

O bosque nos arredores de Nova Verezzi era um emaranhado de sombras e silêncios antigos. A lua, uma foice pálida no céu, mal conseguia perfurar a copa densa das árvores, lançando apenas fragmentos de luz sobre o chão coberto de folhas úmidas. No centro de uma pequena clareira, uma fogueira exalava seus últimos suspiros, as brasas pulsando como um coração moribundo. O calor que emanava era fraco, insuficiente para afastar o frio que parecia brotar da própria terra.

Ao redor do fogo, a morte já havia feito seu trabalho. Corpos de Shapers jaziam em posições desordenadas, a surpresa e a confiança ainda gravadas em seus rostos pálidos. Armaduras estavam amassadas, e armas quebradas jaziam ao lado de mãos inertes. O cheiro de ozônio, resquício do Éter violentamente liberado, misturava-se ao odor metálico de sangue que começava a coagular.

Sentada sobre uma raiz exposta, indiferente ao cenário macabro, estava uma garota. Seu longo cabelo negro, tão escuro que parecia absorver a pouca luz, era cortado por mechas de um vermelho profundo, como sangue seco. Seus olhos eram predatórios; ao longe, sua visão poderia ser facilmente confundida com a de um lobo em meio à noite de lua cheia. Ela observava as chamas dançantes com uma expressão gentil, quase melancólica, um contraste perturbador com a carnificina que a cercava e com seus olhos predatórios.

Ela não queria que terminasse assim.

Quando eles surgiram das sombras, brandindo lâminas e gritando sobre uma "recompensa", ela sentiu mais curiosidade do que medo. Recompensa pela cabeça dela. Que conceito estranho. A vida deles, tão curta e frágil, era movida por coisas que ela mal conseguia compreender. Eles a atacaram com a fúria de quem luta por um tesouro, confiantes de que poderiam subjugar o fim de todas as coisas.

— "Tolos", pensou ela, sem malícia. Apenas com uma tristeza antiga, e uma curiosidade não saciada.

Ela era a Morte. Aproximar-se dela era como tentar abraçar o vácuo. A vida deles simplesmente se esvaiu, desfez-se em sua presença como fumaça ao vento. Ela nem precisou se mover. Eles apenas... pararam.

Mas o que a incomodava nesse momento não era o ato deles, pobres humanos, mas sim a energia que pulsava ao longe, da cidade que manchava o horizonte. Uma energia que a irritava, como uma nota dissonante em uma canção silenciosa. Ela estava apenas de passagem, seguindo o fluxo natural das coisas, mas eles a interceptaram e, simplesmente por azar ou destino, encontraram sua morte.

Ainda assim, em meio à futilidade de suas mortes, algo a fascinou.

— "Arts."

Foi como eles chamaram a forma como moldavam seu Éter, transformando a energia crua da alteração em técnicas com forma e propósito. Uma lâmina de vento, uma barreira de chamas, uma flecha de luz. Ela, que era um conceito puro, nunca havia imaginado tal coisa. Para ela, o Éter era simplesmente o que era, uma força a ser sentida, não esculpida. Eles, em sua breve existência, haviam aprendido a pintar com as cores do impossível.

Seu olhar se ergueu das brasas moribundas e viajou pela escuridão, fixando-se nas luzes distantes de Nova Verezzi. A energia irritante ainda pulsava lá, um desafio silencioso. Ela não queria ir até lá. Não queria ceifar mais vidas desnecessariamente.

Mas agora... agora havia uma nova curiosidade. Uma semente de algo que poderia ser um desejo.

Ela olhou para sua própria mão pálida, os dedos finos e delicados. O Éter da noite parecia responder ao seu pensamento, uma névoa escura e sutil começando a se formar ao redor de sua palma. Não era uma Art. Era apenas... ela.

— "Será", — ela se perguntou, a voz um sussurro que se perdeu no silêncio do bosque, — "que eu consigo usar isso também?"

Parte 7

20 de agosto de 20018, 09:00 - Plataforma 9, Estação Central de Nova Verezzi

O ar da Estação Central de Nova Verezzi era denso, carregado com o sal do mar, o cheiro acre de carvão e uma eletricidade de expectativa. O sol da manhã tentava, sem sucesso, furar a névoa que se agarrava aos paralelepípedos gastos, banhando a Plataforma 9 numa luz pálida, quase espectral. Ali, entre o burburinho da multidão, repousava o Expresso Elysium — não um simples trem, mas uma serpente de aço polido e vidro fumê, uma obra-prima tecnológica que parecia zombar da decadência ao seu redor. Seus vagões reluziam, imunes à fuligem, contrastando com os gritos dos vendedores ambulantes, o choro de crianças e os olhares afiados trocados por homens cujos ternos não escondiam o volume de armas escondidas.

No meio da confusão, uma menininha de uns seis anos, com tranças bem feitas e um vestido de domingo, chorava agarrada à perna do pai. Seu lamento não era birra, mas um pavor visceral, como se algo dentro dela soubesse o que os adultos ignoravam.

— Papai, eu não quero ir! — soluçava Sofia, os olhos arregalados fixos no trem. — Ele é mau! Ele vai engolir todo mundo!

O pai, um homem de rosto cansado equilibrando duas malas pesadas, suspirou, tentando manter a paciência.

— Para com isso, Sofia. É só um trem. Uma honra, aliás! A viagem inaugural! — Ele olhou para a esposa, buscando apoio.

A mãe, ajeitando o chapéu com um gesto impaciente, franziu a testa.

— Vamos logo, querida, antes que percamos nossos lugares. Não é hora pra essas coisas.

Mas a avó da menina, uma senhora de cabelos brancos e olhos profundos, como se guardassem segredos de eras, ajoelhou-se ao lado da neta. Ela segurou o rostinho de Sofia, olhou nos olhos dela e, por um instante, desviou o olhar para o Elysium. Um calafrio percorreu sua espinha. Para ela, aquele não era um trem — era um mausoléu sobre trilhos, pulsando com uma energia que não pertencia a este mundo.

— Ela tem razão — disse a avó, a voz firme, levantando-se. — Não vamos embarcar.

— Mamãe, por favor, não começa com suas superstições! — retrucou o pai, exasperado.

— Não é superstição, meu filho. É instinto. O mesmo que me fez fugir do porto antes do incêndio de 19912. — Ela cruzou os braços, decidida. — Nós ficamos.

A discussão foi curta, mas a convicção da matriarca era inquebrável. Contrariados, o casal arrastou as malas para fora da fila, ignorando os olhares de reprovação dos outros passageiros. Ninguém reparou nos corvos que sobrevoavam a estação, um presságio sombrio numa cidade onde gaivotas eram a regra.



Do outro lado da plataforma, o grupo de Osdra tentava passar despercebido, com resultados mistos. Ozen, com um terno que parecia um número menor que seu porte, exibia um sorriso fácil, mas seu olho bom varria a multidão, calculando rotas de fuga. Miriam, ao seu lado, segurava a bolsa com força, sentindo o peso da pistola escondida ali. Ela se sentia uma impostora entre os nobres e magnatas, mas mantinha a compostura. Leona, por outro lado, não fazia questão de se encaixar: vestida com uma regata justa e um short minúsculo, ela se agachava no chão, brincando com um gatinho, as pernas abertas como se esquecesse — ou ignorasse — as convenções. Amira, ao lado, apenas bocejou, já acostumada com as excentricidades da amiga, embora um leve rubor denunciasse sua vergonha.

Regulus, silencioso, com uma venda cobrindo os olhos, parecia sentir algo além do caos da estação. Seus dedos tamborilavam no ar, como se captassem uma pulsação invisível — uma energia etérea que zumbia ao redor do trem.

— Muitos tubarões pra um aquário tão pequeno — murmurou Ozen, acendendo um cigarro com um fósforo que riscou com precisão.

Regulus, imóvel, respondeu em voz baixa:

— E nós somos os peixes-piloto, esperando as sobras.

Gustavo, o mais novo do grupo, parecia deslocado. Sua beleza atraía olhares e cochichos das mulheres ao redor, o que o deixava visivelmente desconfortável. Ele tentava se esconder entre os companheiros, mas Ozen o puxou para perto, bagunçando seu cabelo com uma risada.

— Relaxa, garoto. Logo a gente entra no trem, e você pode se trancar na cabine.

— Não sou criança, Ozen! — retrucou Gustavo, afastando a mão do amigo, embora sua voz tremesse. Ele se aproximou mais do grupo, ainda sentindo os olhares.



A poucos metros dali, a tensão era quase sólida. Frank Malone, impecável em seu terno de linho e boina, observava a plataforma como um lobo à espreita. Ao seu lado, Gina Russo, de beleza cortante, fingia limpar as unhas enquanto afiava uma adaga com movimentos precisos.

— O alvo tá no vagão de luxo, chefe. Don Brown e seus palhaços — informou Tommy “Engrenagem” Doyle, a mandíbula travada como sempre. — O plano segue como combinado. Pegamos a carga, e eu cuido do traidor que ele plantou no nosso meio. Depois, a gente dá um jeito no Brown.

Frank ergueu a mão, pedindo calma, os olhos fixos em um grupo do outro lado da plataforma.

— Paciência, Tommy. Primeiro, o negócio. Depois, a vingança. Não quero o sangue dele sujando a mercadoria.

Do outro lado, como se sentisse o peso do olhar de Malone, Don Brown soltou uma gargalhada alta, mas seus olhos permaneceram frios. Ele estava cercado por sua gangue, um grupo de figuras chamativas e barulhentas, com joias brilhando demais e risadas forçadas.

— Escutem bem — disse ele, baixando a voz para um tom conspiratório. — O nobre Enrico Valtieri tá no vagão presidencial. Vamos pegá-lo antes da primeira parada. Sem alarde. A capital vai pagar uma fortuna pra ter o fantoche deles de volta. E se os cães do Malone tentarem alguma gracinha… — ele exibiu um dente de ouro num sorriso cruel — …mostrem por que as ruas de Nova Verezzi são nossas.



Entre os passageiros, uma figura se movia com uma elegância quase sobrenatural. Diego Santoni, o vampiro, era o retrato da aristocracia, com seu traje de gala e um sorriso que encantava e inquietava. Ao seu lado, Salomé Baldini, uma jovem humana de beleza frágil, parecia murchar a cada toque dele. Seus olhos fundos gritavam por socorro, mas ninguém parecia ouvir — ou querer ouvir. Diego parou perto de Mikaela e sua mãe, Moldir, ambas vestidas de luto.

— Minhas condolências pela sua perda — disse Diego a Mikaela, a voz suave como veludo. — Seu pai era um homem de visão. Gaia sentirá sua falta.

Mikaela apenas assentiu, desconfortável, enquanto Moldir lançava um olhar desconfiado para Salomé. Antes que pudesse dizer algo, o apito do trem ecoou, cortando o ar.



Nos vagões de carga, Ludmilla Farnese e Daemon Hakurei observavam a movimentação com olhos de falcão. Ludmilla, com seu quepe militar ligeiramente inclinado, murmurou:

— Muita gente armada pra uma viagem inaugural. E não falo da segurança oficial.

Daemon, a mão sempre perto do cabo da espada, respondeu:

— O Éter tá denso. Carregado de intenções. A joia que carregamos é só mais um pavio nesse barril de pólvora. Fique esperta.



Mais adiante, quatro figuras observavam o trem com uma intensidade quase palpável. Claire, uma jovem com tom de voz firme, questionava seu companheiro.

— Tem certeza que ela tá nesse trem, Favaro? — perguntou, cruzando os braços.

Favaro Martines, um loiro com roupas que lembravam um vaqueiro, riu, confiante.

— O que é, Claire? Acha que eu ia arrastar vocês todos até aqui sem certeza?

— Acho, sim — responderam Claire, Isaac e Enies, em uníssono, trocando olhares céticos.

Isaac Soltone, o mais sério do grupo, suspirou.

— Se for verdade, temos que recuperar a todo custo. Não podemos deixar a Cidade de Metal fazer experimentos com aquilo. O mundo não precisa de mais imortais.

Enies Gloven, com os olhos fixos no trem, parecia enxergar além do metal. Sua atenção estava cravada no vagão onde o cofre blindado guardava artefatos misteriosos.

— O Éter tá vibrando lá dentro — disse ela, quase em transe. — É ela. August der Sünde… Agosto do Pecado. Tudo que sei é que foi feita por um mago louco, com um fragmento de uma arma do apocalipse. Se for uma arma, o que me preocupa é se pode ser usada contra nós.

O grupo ficou em silêncio, o peso das palavras de Enies pairando no ar.

— Bom, com sorte, ninguém mais no trem sabe que ela existe, né? — tentou Favaro, com um sorriso forçado.



Mas o destino parecia rir do comentário. Perto de um pilar, isolada da multidão, uma garota de cabelos negros com mechas vermelhas observava tudo em silêncio. De repente, crianças correndo esbarraram nela. A mãe delas correu até o local, pedindo desculpas.

A garota se abaixou, acariciando a cabeça da criança com um sorriso gentil.

— Tá tudo bem. A vida tá só começando, aproveitem pra se divertir — disse, tirando algumas moedas da saia e entregando à criança. — Vão comprar algo pra comer, mas brinquem longe dos trilhos, tá? Podem se machucar.

As crianças saíram correndo, felizes, enquanto a mãe agradecia.

— Muito obrigada, senhorita. Desculpe-me mesmo.

— Já disse, não foi nada… — A garota parou, como se algo a tivesse distraído. Seus olhos se fixaram em algo atrás da mulher. — Por acaso… tem alguém próximo a você doente?

A mãe hesitou, surpresa com a pergunta.

— Como você… — Ela observou a garota, notando sua presença quase magnética. — Minha mãe tá meio doente. Vim ajudar, mas preciso voltar pra casa.

A garota inclinou a cabeça, pensativa.

— Sabe, se ela tá doente, talvez seja melhor você ficar por aqui. Tá frio lá fora, e tenho certeza que seu marido vai entender. É melhor não se arrepender depois, pensando que podia ter ficado.

As palavras, ditas com uma calma desconcertante, abalaram a mulher. Ela já estava em dúvida, e algo na presença da garota — talvez uma intuição, talvez algo mais — a convenceu.

— Acho que você tem razão… Vou ligar pro meu marido e dizer que pego o próximo trem.

— Boa escolha — respondeu a garota, com um leve sorriso.

Enquanto a mulher se afastava, ela se virou uma última vez.

— Desculpe, mas… quem é você?

A garota piscou, como se a pergunta a pegasse desprevenida. Por um momento, pareceu refletir. Um nome? Ela nunca precisara de um. Mas, após uma pausa, seus olhos se suavizaram.

— Meu nome… é Nero.

O apito do trem soou novamente, e o vapor envolveu a plataforma. Nero caminhou até a porta de um vagão, sua presença quase dissolvendo-se na névoa. Um cavalheiro próximo, sem perceber, viu seu relógio de bolso parar de funcionar.



— Tá vendo isso, Simon? — sussurrou Eleanor Hawthorne enquanto embarcavam, os olhos brilhando com curiosidade. — Parece que todos os vilões e heróis do seu próximo livro decidiram tirar férias juntos.

Simon ajeitou os óculos, tentando ignorar a sensação de que estavam entrando numa armadilha.

— Não enche, Ellie. Só quero chegar na Cidade de Metal, entregar o relatório e tomar algo que não tenha gosto de pólvora.

O último apito ecoou. As portas do Expresso Elysium se fecharam com um silvo, selando o destino dos passageiros. O trem começou a deslizar, deixando para trás a névoa e a sujeira de Nova Verezzi.

Na plataforma, agora quase vazia, Sofia observava o trem sumir nos trilhos, o rosto ainda molhado de lágrimas. Sua avó a abraçou, murmurando uma oração silenciosa por aqueles que haviam embarcado naquela viagem fatídica.

Parte 8

20 de agosto de 20018, 11:00 - Vagão-Restaurante, Expresso Elysium

Duas horas após deixar a fuligem de Nova Verezzi para trás, o Expresso Elysium cortava uma paisagem de penhascos escarpados e o azul infinito do oceano, que desfilava pelas janelas panorâmicas como uma pintura viva. No vagão-restaurante, o tilintar de talheres de prata contra porcelana fina e o murmúrio de conversas educadas criavam uma ilusão de normalidade. Passageiros riam, brindavam com taças de cristal, e tentavam, com um otimismo frágil, ignorar o peso dos segredos que carregavam — segredos tão afiados quanto as facas escondidas em bolsos e bainhas.

A grandiosidade do trem era inegável. Seus interiores, com painéis de mogno polido, lustres de cristal e detalhes dourados, eram um testemunho da engenhosidade humana, um marco que prometia unir o reino. Mas, nas pausas entre risadas forçadas e goles de vinho, uma sombra pairava. A memória do Titanic, a aeronave colossal que se despedaçara em sua viagem inaugural, era um espectro silencioso. Ninguém o mencionava em voz alta, mas o medo era um passageiro clandestino, espreitando em cada canto.



Naquele momento de calmaria, Leona entrou no vagão-restaurante com a desenvoltura de quem não dá a mínima para convenções. Suas roupas — uma regata gasta, shorts curtos e botas — eram um contraste gritante com os ternos de seda e vestidos de alta costura ao redor. Ela escolheu uma mesa isolada, sentou-se com as pernas abertas, a postura desafiadoramente relaxada, e tirou do bolso do casaco o pequeno Fuligem, seu gato preto de olhos brilhantes. Colocou um pires na mesa e despejou um pouco de creme, observando o bichano lamber com entusiasmo, alheia ao mundo que a encarava com uma mistura de curiosidade e desaprovação.

A beleza crua de Leona, com seus cabelos brancos desgrenhados e olhos dourados que pareciam capturar a luz, atraía os olhares. Favaro Martines, sentado a algumas mesas de distância, sentiu uma faísca de interesse. Ele se levantou, ajeitando o colete de couro que lembrava trajes de um velho oeste, e aproximou-se com um sorriso charmoso, mas calculado.

— Uma dama com essa… presença não deveria jantar sozinha — disse, a voz suave como um licor envelhecido. — Posso te oferecer uma taça do melhor vinho de Manchini? É o mínimo que alguém com esses olhos dourados merece.

Leona ergueu o olhar por um breve instante, avaliando-o com uma expressão que misturava indiferença e leve irritação. Sem dizer uma palavra, voltou a atenção para Fuligem, que ronronava satisfeito.

Favaro, imune ao desprezo, insistiu, apoiando-se na mesa.

— Sabe, seus olhos me lembram o ouro perdido de Elsynthar, uma civilização que eu mesmo procurei, anos atrás. Uma história fascinante, se me permite contar.

O único som que ele recebeu foi o ronronar de Fuligem, que lambeu o pires com ainda mais entusiasmo.



A porta do vagão se abriu, e a atmosfera mudou como se uma corrente de ar frio tivesse invadido o espaço. Mikaela entrou, guiada por Diego Santoni, cuja mão repousava em suas costas com uma posse que beirava a arrogância. Ele falava com a confiança de quem está acostumado a ser ouvido.

— …e é por isso que eu estaria mais do que disposto a ajudar, com sua busca pela verdade sobre o assasinato de seu pai — dizia Diego, o sorriso impecável, como se esculpido em mármore. Eles se sentaram a poucos metros de Leona.

Mikaela, com o rosto corado de desconforto, tentava manter a compostura de uma nobre. No canto do vagão, Salomé Baldini, a “outra mulher” de Diego, estava sentada sozinha, os olhos fundos e apagados fixos em um copo intocado. A audácia de Diego, flertando tão descaradamente enquanto Salomé definhava, revirava o estômago de Mikaela. Mas sua criação a obrigava a manter a fachada de elegância, mesmo que sua vontade fosse esvaziar a taça de vinho no rosto dele.

Foi então que Miriam surgiu na porta, seus olhos varrendo o salão até encontrarem Leona. O alívio inicial de localizá-la transformou-se em puro horror. Lá estava Leona, parecendo uma forasteira em um baile de gala, brincando com seu gato no meio de magnatas e nobres. E, para piorar, um homem claramente rico — Favaro — tentava cortejá-la.

— Leona! — chamou Miriam, aproximando-se com passos rápidos. — O que você tá fazendo aqui? Nosso vagão tem comida, vem comigo!

Leona ergueu uma sobrancelha enquanto era puxada —, Mikaela aproveitou a interrupção como uma tábua de salvação.

— Com licença, preciso me retirar — disse ela, levantando-se com uma graça ensaiada.

Diego inclinou a cabeça, um brilho divertido e quase cruel nos olhos.

— Já vai, querida? — perguntou, a voz melíflua. — Nem tive a chance de contar sobre a Historia desse gigantesco trem, é sobre sua suposta maldição.

A palavra “maldição” fez Miriam congelar. Ela virou-se lentamente, os olhos estreitados.

— Que história é essa? — perguntou, tentando soar casual, mas a tensão em sua voz a traiu.

Diego se inclinou para a frente, baixando a voz num tom conspiratório que atraiu os olhares das mesas próximas.

— Dizem que o coração de metal do Elysium foi forjado com um artefato amaldiçoado. Um fragmento de algo antigo, proibido. A lenda diz que, se a história da maldição for contada a bordo durante a viagem, o trem se tornará um caixão sobre trilhos. Um por um, todos a bordo encontrarão um fim terrível antes do amanhecer.

Um calafrio percorreu a espinha de Miriam. Ela conhecia o Efeito Espelho da Fé — uma crença compartilhada por muitos poderia, em certas circunstâncias, tornar-se real. Se os passageiros começassem a acreditar naquela história, o medo coletivo poderia desencadear algo muito pior que uma lenda. Seu peito apertou, e ela abriu a boca para desmentir.

— Isso é ridículo… — começou, mas sua voz saiu fraca, quase um sussurro.

Naquele exato momento, o Expresso Elysium mergulhou na escuridão de um túnel. As luzes do vagão piscaram uma vez e se apagaram, mergulhando todos numa escuridão absoluta. O silêncio foi quebrado pelo som de talheres caindo e suspiros assustados.

O pânico tomou conta de Miriam. Um grito agudo escapou de seus lábios, ecoando no vagão como um alarme. Ela agarrou o braço de Leona, o coração disparado.

Um segundo depois, as luzes de emergência se acenderam com um zumbido. Todos os olhos estavam cravados em Miriam, que sentiu o rosto queimar de vergonha.

Leona, com uma calma surpreendente, colocou a mão no ombro de Miriam, um gesto raro de conforto, quase maternal.

Favaro soltou uma risada rica, quebrando a tensão.

— Calma, menina. Não precisa surtar por causa de uma historinha boba.

Mas sua risada foi interrompida por outro grito — desta vez, de Mikaela.

Todos se viraram. Diego Santoni estava caído sobre a mesa, a camisa branca imaculada agora manchada por um vermelho escuro que se espalhava rapidamente. Cravada em seu peito, uma faca de aço com cabo ornamentado refletia o brilho vermelho das luzes de emergência.

O caos explodiu. Gritos ecoaram, cadeiras foram arrastadas, e os passageiros se afastaram em pânico. Mikaela, paralisada, olhava para Diego com uma expressão de horror puro, as mãos tremendo.

Fávaro foi o primeiro a se mover. Ele se aproximou do corpo, ajoelhando-se ao lado de Diego, só de olhá-lo com atenção ele percebeu que o homem caído em sua frente era um vampiro, assim ele ficou confuso Tocou a faca, franzindo a testa, e murmurou para si mesmo:

— Doloroso, mas não fatal. Não pra alguém como ele. Ele deveria estar se levantando agora, rindo dessa palhaçada.

Mas Diego não se moveu. A mancha de sangue continuava a crescer, e sua pele adquiria uma palidez cinzenta, diferente da brisa sobrenatural que exibia em vida. Favaro tocou seu pescoço, procurando um pulso. Nada. Frio. Morto.

— Impossível… — sussurrou Favaro, levantando-se lentamente. Pela primeira vez em séculos, sentiu um vazio no estômago. Seus olhos varreram o vagão, encontrando rostos aterrorizados.

A maldição era uma história. Mas o assassinato era real.


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