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The Fall of the Stars: Capítulo 3 - Rainha Branca

  • Foto do escritor: AngelDark
    AngelDark
  • 3 de ago.
  • 65 min de leitura

Volume 6: Antologias do Destino

Parte 1

O universo não se moveu; foi dobrado ao meio, como uma página num livro pop-up macabro. A transição não foi um piscar de olhos, mas o som de um rasgo cósmico sendo costurado com uma agulha de pesadelo e um fio de gritos. Para os seres de poder fabuloso reunidos na sala de Da Vinci, a sensação foi de uma vertigem anímica, como se a gravidade que prendia suas almas tivesse sido subitamente revogada e substituída pelas regras de um conto de fadas sussurrado ao contrário por um relógio de cuco com o coração partido.

Quando a realidade se assentou com um estalo úmido e definitivo, eles não estavam mais nos corredores assépticos de Marte. Estavam num tribunal saído de uma febre.

O salão era uma blasfêmia arquitetônica. As paredes eram sebes vivas de rosas negras, cujos espinhos gotejavam um néctar que cheirava a promessas quebradas e poeira de sótão, sussurrando as inseguranças mais íntimas de quem se atrevia a escutar. O teto era um firmamento de veludo rachado, onde o Chapeleiro Maluco e a Lebre de Março, com olhos de botão costurados e sorrisos de linha desfiada, valsavam uma dança tonta e perpétua entre constelações que choravam lágrimas de luz fria. E no lugar do juiz, empoleirada num trono absurdamente alto feito de bules de chá lascados e pedaços de espelhos que refletiam não rostos, mas medos — de onde vazava um silêncio gritado por almas presas —, sentava-se Alice Lindell. A coroa de ouro retorcido, com seu coração pulsante, agora repousava em seus cabelos, que flutuavam como se submersos em sangue invisível. Seus olhos brilhavam com o poder arbitrário e absoluto de uma criança arrancando as asas de uma mosca. Ela era a Rainha de Copas, a juíza, o júri e a canção de ninar antes da guilhotina.

No banco dos réus, para sua fúria engarrafada, estavam Vlad, Carmilla e Susano. Não havia barras, apenas videiras espinhosas que se enroscavam em seus tornozelos, pulsando com uma luz doentia e apertando um pouco mais a cada pensamento rebelde, como se provassem o gosto de sua teimosia. Os outros líderes — Lu Bu, Argus, Wu Zetian, Da Vinci, Niklaus — foram relegados às galerias, sentados em cadeiras de cogumelos que se contorciam desconfortavelmente e, por vezes, soltavam esporos de um bocejo contagioso de desesperança.

O júri era uma cacofonia de pesadelo: um Dodo de peruca empoada que anotava tudo com uma pena de flamingo num pergaminho de pele humana; um exército de cartas de baralho do naipe de copas que afiavam suas lanças de alabarda em seus próprios corpos de papelão, produzindo um som de unhas arranhando uma lousa; e uma fileira de flores falantes que fofocavam maliciosamente sobre os métodos preferidos de execução. Guardas, delicados origamis de cartas de pôquer, permaneciam imóveis, suas espadas de papel afiadas com a lógica de um paradoxo, capazes de cortar o próprio ar.

E então, a advogada de acusação materializou-se num rezingar de listras roxas e rosas, num galho de árvore que brotou do nada acima dos réus. Era uma garota com orelhas de gato, cabelos vermelhos listrados e um sorriso tão largo e dentuço que parecia prestes a deslocar a própria mandíbula.

— Ordem no tribunal! — a voz de Alice ecoou, um som de sinos de cristal e vidro se estilhaçando. — O julgamento vai começar! Gata de Cheshire, apresente as acusações!

A Gata de Cheshire bocejou, um som que se espreguiçou preguiçosamente pelo salão. — Miau. Os réus aqui presentes são acusados de serem terrivelmente, insuportavelmente... maçantes. — Ela apontou uma garra espectral para Vlad. — Este, por excesso de seriedade num universo que é, por natureza, uma piada. — A garra flutuou até Carmilla. — Esta, por se esconder na penumbra quando as cores berrantes são muito mais divertidas. — E por fim, para Susano. — E este... por ter um cabelo que desafia a gravidade de uma maneira esteticamente monótona. A pena para crimes de tamanha monotonia? — Seu sorriso se esticou um milímetro a mais, numa curva impossível. — Cortem-lhes as cabeças!

— CORTEEEEM-LHES AS CABEÇAS! — guincharam as cartas de baralho em uníssono, batendo suas lanças no chão com um som oco e final.

Lu Bu, na galeria, bufou, um som de puro desdém. — Que farsa. Se hei de morrer, que seja em batalha, não por decreto de uma criança que brinca com o poder como se fosse uma casa de bonecas.

— Silêncio, General — murmurou Wu Zetian ao seu lado, os olhos fixos em Alice, frios e calculistas. — Esta "criança" está a usar a própria realidade como seu brinquedo. Seu poder é uma lição. Observe.

Alice ignorou a comoção. Seu olhar, contudo, não era o de uma juíza. Era o de uma contadora de histórias faminta, uma criança à beira de um conto de ninar febril.

— No entanto... — disse ela, e a sala se afogou em silêncio. — Sou uma rainha de misericórdia volúvel. Ofereço-lhes uma troca. Suas vidas... por uma história.

Seu olhar se fixou em Carmilla, a mais antiga, aquela cujas veias frias guardavam os segredos mais empoeirados.

— Você, Rainha da Noite. Você viu o nascer e o morrer das eras. Conte-nos. Conte a todos a verdade sobre os seus iguais. A origem dos Reis Demônio e os segredos que você tranca a sete chaves sobre Lúcifer.

Carmilla, até então um monumento de silêncio glacial, ergueu o queixo. Seus olhos vermelhos colidiram com os de Alice, um choque entre poder ancestral e caos primordial.

— Você brinca com caixas de música que não sabe fechar, criança — a voz de Carmilla era um sussurro de gelo e pó de túmulo.

— Oh, eu sei perfeitamente — replicou Alice, seu sorriso se alargando. — Eu sei que toda história precisa de um "era uma vez". E a sua está prestes a ser arrancada de você. Comece.

Carmilla suspirou, o som de folhas secas sendo esmagadas sob um pé. Ela conhecia as regras daquele lugar de lógica torta: uma mentira e a gata sorridente a denunciaria, e sua cabeça rolaria, imortal ou não. A morte ali era definitiva. Ela varreu o olhar pelos rostos na sala — deuses, monstros, guerreiros, todos marionetes naquele teatro do absurdo. E então, ela começou a falar, sua voz tecendo uma tapeçaria de tempos esquecidos, um conto de fadas sombrio para uma rainha louca.

"Era uma vez, numa era manchada de ferrugem e esquecimento," a voz de Carmilla preencheu o silêncio, "quando o universo era jovem e o éter cantava canções de ninar sobre a criação, uma ferida se abriu no veludo do vácuo. Não uma estrela, mas um soluço de sombra que fez o nada coalhar. Foi o nascimento de um rei. No vazio entre as galáxias, Lúcifer, o Portador da Luz, irrompeu na existência, o primeiro e mais terrível dos Reis Demônio."

Na galeria, Argus soltou uma baforada de fumaça com cheiro de enxofre. "Um rei nascido do nada. A arrogância dos novatos é sempre a mais barulhenta."

Carmilla continuou, impassível. "Ele desceu à Terra não como um salvador, mas como uma praga de perfeição. Seu objetivo era simples e medonho: ser a única luz. Todas as outras chamas — vida, esperança, a alma do mundo — eram, para ele, imperfeições, vermes, uma sujeira a ser varrida para que apenas seu brilho restasse. Orgulhoso demais para se sujar com a matança, ele foi a Umbra, onde os demônios originais, filhos do puro caos(Astreus), se arrastavam em formas amorfas. Ele não os viu como aliados, mas como argila. Numa única noite, ele lhes deu forma e propósito, torcendo seus gritos em hinos e seu caos em uma legião, e declarou guerra a toda a criação."

"Foi um massacre," a voz de Carmilla baixou, tornando-se íntima, um segredo venenoso. "O mundo gritou. Onde sua sombra tocava, a vida se desfazia em pó e lamento. Os seres vivos eram insetos sob sua bota dourada. E então, quando a esperança parecia um conto para tolos, eles apareceram."

"Os Kami," sussurrou Da Vinci, os olhos faiscando com o fascínio de um cientista diante de uma anomalia sublime.

"Sim," confirmou Carmilla. "Eles eram a própria falha gloriosa, a beleza da imperfeição(Astreus) tornada fúria. Ouviram os gritos, mas não vieram por piedade. Vieram pelo desafio. E com sua força, o jogo se equilibrou. Mas Lúcifer... Lúcifer era absoluto. Um deus contra crianças brincando com fogo."

"Até que outra criança apareceu," disse Carmilla, e seu olhar encontrou o de Vlad por um átimo. Ele se enrijeceu, os nós dos dedos brancos. "Um menino humano. Um acaso, um sussurro de poeira e teimosia. Seu nome era Arthur. Ele não tinha poder, mas o mundo, em seu desespero, lhe deu um presente. Os anões e gigantes arrancaram do coração gelado de Gaia um metal que chorava lágrimas de éter primordial. Os dragões o forjaram com seu sopro febril. E as fadas, em seu último ato de fé, teceram um milagre em seu aço. Assim nasceu Excalibur, a primeira Arma do Apocalipse, o soluço final de um mundo feito de lâmina."

"Uma espada," bufou Lu Bu, cruzando os braços. "A salvação foi uma lâmina? Meus punhos teriam sido mais eficientes."

"Não era apenas uma lâmina, General," retorquiu Carmilla, com um fio de aço na voz. "Era a vontade de um mundo moribundo. Com ela, Arthur reuniu companheiros — incluindo minha mestra, Kaleid — e forjou a Távola Redonda, um juramento que acorrentou suas almas a um carrossel de morte e renascimento, para que pudessem lutar, morrer e lutar de novo, e de novo."

"Finalmente," continuou Carmilla, "a maré virou. A esperança, aquela erva daninha teimosa, vicejou. E Lúcifer, transbordando de um ódio puro e ofendido, desceu de seu trono para esmagar o menino pessoalmente. A batalha deles não rasgou o mundo; ela o desfez. Foi tão violenta que a realidade se partiu, e eles foram arrastados para o Void, o vazio não mapeado. Lá, longe dos olhos dos mortais, o herói e o demônio travaram sua guerra final."

"Arthur venceu. Mas a vitória teve o gosto de cinzas. Com Excalibur, ele perfurou o coração de Lúcifer, mas ao fazê-lo, a lâmina se estilhaçou. O corpo do anjo caído foi desfeito, mas sua essência... sua vontade... perdurou. Nem a morte podia tocar o eterno. Em seu último ato, Arthur, moribundo, semeou um caco da lâmina quebrada no âmago de Lúcifer, um espinho de luz para envenenar sua escuridão por toda a eternidade. Então, ele o lançou. Pela fissura que sua batalha criara, ele arremessou o torso do anjo caído no centro da Terra, criando uma tumba de fogo perpétuo. Um lugar onde Lúcifer não poderia jamais se refazer, condenado a arder no núcleo etéreo do planeta, sonhando sonhos de vingança em uma agonia sem fim."

Um silêncio pesado e poeirento caiu sobre o tribunal. As flores pararam de fofocar. As cartas pararam de se afiar. Até o sorriso da Gata de Cheshire pareceu murchar por um instante.

Alice, em seu trono de bules, inclinou a cabeça, os olhos brilhando com uma nova e terrível curiosidade. A história fora contada. E agora, ela queria mais.

Parte 2 

Enquanto o drama existencial se desenrolava no tribunal de Alice, a realidade em Hortus Parvus — na distante e agora silenciosa cidade de Threshold — era bem menos psicodélica e muito mais frustrante. Ceto e Maicon olhavam para o céu, onde Marte deveria brilhar como um ponto vermelho familiar, mas agora não havia nada. A conexão de Niklaus com a Horizon e com o universo... fora cortada.

— Então é isso? — Ceto chutou uma pedra solta, com a frustração evidente na voz. — Viramos babás desta bagunça toda enquanto a verdadeira festa acontece em outro planeta? Não sei o que Alice fez, mas, se cortou nossa comunicação, significa que não podemos relatar o que está acontecendo aqui.

Maicon, com seu sorriso cínico habitual, apenas deu de ombros.

— Relaxe, pequena estrategista. O caos é a ordem natural das coisas. Tenho certeza de que, seja o que for que Niklaus esteja planejando, a ausência de nossas notícias apenas adicionará uma variável interessante à equação dele.

— "Interessante" não paga as contas nem cumpre a missão! — retrucou Ceto. Ela olhou para o céu vazio, uma prece silenciosa nos lábios. — O que quer que esteja acontecendo, espero que resolvam logo. Preciso de ajuda aqui.

De volta ao País das Maravilhas, a perseguição era uma sinfonia de desespero. Adam corria pelas paisagens distorcidas, com o ar a lhe rasgar os pulmões, mas os cultistas em fuga, Amira e seu parceiro, mostravam-se como espectros, sempre um passo à frente. Eles eram rápidos, mas Adam era um predador movido por pura teimosia, encurtando a distância a cada batida furiosa de seu coração.

Foi quando o ar se partiu com um estalo agudo, como o de um chicote de trovão.

Não foi um borrão; foi uma fratura na realidade. Uma figura, envolta numa mortalha crepitante de éter vermelho, agora corria em paralelo a Adam, seus pés mal tocando o chão surreal. O deslocamento de ar que criava era uma força física, e Adam sentiu uma familiaridade perturbadora naquele poder.

De repente, ele ouviu uma voz calma e precisa murmurando algo tão complexo quanto um relatório de batalha, como se fosse a coisa mais comum do mundo.

— "Análise de combate em andamento. Alvo primário: artefato de origem desconhecida. Portadores: dois fugitivos, velocidade atual Mach 0.8. Perseguidor: um indivíduo não identificado, em estado de exaustão. Trajetória de interceptação calculada. Probabilidade de sucesso na recuperação do artefato: 97.8%."

Antes que o cérebro de Adam pudesse sequer formular uma pergunta, a execução começou. A figura não acelerou; ela simplesmente deixou de estar lá para surgir mais à frente. Ela não correu, ricocheteou entre as árvores disformes daquela paisagem como um projétil vivo.

O primeiro impacto não foi um golpe, mas uma onda de choque. Dani passou por Amira tão rápido que o vácuo momentâneo a desequilibrou, forçando-a a tropeçar. O parceiro de Amira girou, erguendo o braço como um escudo, mas estava reagindo a um fantasma. No instante em que ele se moveu, Dani já usava seu movimento contra ele.

Com uma agilidade que parecia coreografada pela própria física, ela deslizou por baixo do braço estendido dele. Em um único e fluido movimento ascendente, seu pé atingiu o cotovelo do cultista — não com força bruta, mas com a precisão de um bisturi, para travar a articulação. Ao mesmo tempo, seus dedos tocaram três pontos de pressão distintos no antebraço dele em menos de um piscar de olhos. O espasmo foi instantâneo. A mão do homem se abriu, e [o item que ele carregava] foi lançado ao ar, numa queda em câmera lenta aos olhos dos cultistas.

Para Dani, no entanto, não havia câmera lenta. Ela completou seu giro, impulsionando-se no chão e saltando no exato vetor que sua mente calculara segundos antes. Enquanto o artefato atingia o ápice de sua parábola, ela o arrancou do ar com uma calma desconcertante, aterrissando a vinte metros de distância e já se virando para observar a cena. Tudo em menos de dois segundos.

Adam parou, ofegante, seu cérebro tentando processar a cascata de eventos impossíveis que acabara de testemunhar. Não foi uma luta; foi uma equação resolvida com violência e graça.

— Quem... é você? — ele conseguiu perguntar, a voz rouca.

A garota de cabelos vermelhos se virou, seus olhos — um azul e o outro de um vermelho intenso — fixos nele, desprovidos de emoção. Sua voz, embora humana, carregava a mesma clareza fria e metálica de sua análise mental.

— Meu nome é Dani Scarlune — ela respondeu, firme. — Vim recuperar uma propriedade roubada. E você, indivíduo desconhecido? Qual é a sua intenção?

O sorriso de Adam era uma mistura de animação e interesse predatório. Ele olhou para a jovem de cabelos vermelhos, depois para o “Braço” que ela segurava com uma firmeza surpreendente.

— Não sou companheiro daqueles ladrões — disse Adam, sua voz um trovão baixo que parecia vibrar no ar distorcido do País das Maravilhas. — Mas, por certos motivos, preciso levar esse "objeto" de volta.

Dani Scarlune inclinou a cabeça, seus olhos azuis analisando Adam com a velocidade de um supercomputador. A aura dele era densa, selvagem, completamente diferente da dos cultistas.

— Entendido — ela respondeu, a voz calma e precisa. — Classificação alterada de "ladrão" para "inimigo hostil". O objetivo permanece o mesmo: proteger o item.

— Hahaha! Gosto da sua confiança! — Adam gargalhou, batendo um punho contra a palma da outra mão. — Vamos ver se você é tão resistente quanto é rápida!

Ele explodiu em movimento, o chão se partindo sob o impulso de seus pés. Seu punho, envolto em uma aura de calor palpável, avançou como um meteoro. Mas Dani não estava lá. Com uma fluidez que desafiava a física, ela se inclinou para trás, o punho de Adam passando a milímetros de seu rosto, o vento do golpe chicoteando seus cabelos vermelhos. Ela usou o próprio movimento dele para girar e se reposicionar a metros de distância.

Adam parou, um brilho de reconhecimento em seus olhos.

— É verdade... "Scarlune" — ele murmurou, um sorriso lento se espalhando por seu rosto. — A garota com os chutes fortes que enfrentei no navio... Levy, ela também tinha esse sobrenome. Por acaso, ela é sua prima?

Dani apenas o observou, a expressão indecifrável, enquanto desviava de outra investida de Adam, desta vez um chute lateral que teria partido uma árvore ao meio. Seus movimentos eram econômicos, precisos, quase como se ela estivesse dançando entre os ataques brutais dele.

— Pode ser — ela respondeu, sua voz calma contrastando com a fúria da batalha.

O confronto tornou-se um balé de opostos. Adam era a força bruta, um berserker Dragoniano cujos golpes abriam crateras no chão psicodélico. Dani era a precisão cirúrgica, um borrão crono-elétrico que se movia como se o tempo e o espaço fossem meras sugestões. Ela não tentava bloquear; ela fluía ao redor dele, cada esquiva uma análise, cada reposicionamento um cálculo. Uma aura sutil e crepitante a envolvia, e a cada vez que Adam passava perto demais, ele sentia uma leve paralisia, um atraso de milissegundos em seus músculos que era o suficiente para que ela escapasse.

— Pare de fugir e lute, garota! — ele rosnou, frustrado.

— Eu estou lutando — ela respondeu, e desta vez, ela contra-atacou. Agachando-se sob um soco, ela tocou em um pedaço de entulho do chão. Com um movimento rápido, ela o imbuiu com seu éter. O fragmento de rocha disparou, não como uma pedra arremessada, mas como um projétil de railgun, zunindo pelo ar.

Adam, confiando em sua Couraça Dracônica, ergueu o antebraço para bloquear. O impacto foi muito mais forte do que ele esperava, fazendo-o recuar um passo, uma marca de queimadura agora visível em suas escamas.

— Interessante... — ele disse, genuinamente impressionado.

A batalha se intensificou, um espetáculo de poder e precisão que pintava a paisagem insana do País das Maravilhas com novas cores de destruição. Adam, agora levando a sério, começou a liberar mais de seu poder. O chão ao redor dele rachou e ferveu, a paisagem de sonho começando a se deformar sob o calor de sua fúria. Cada soco seu agora deixava rastros de ar superaquecido, cada chute levantava ondas de terra e grama derretida.

Dani, no entanto, parecia florescer no caos. Sua dança evasiva transformou-se em uma ofensiva fluida. Ela começou a misturar chutes altos e baixos, movimentos que lembravam uma fusão impossível de Taekwondo e Capoeira. Ela usava as próprias ondas de choque dos ataques de Adam para se impulsionar, girando no ar para desferir um chute descendente que forçava Adam a bloquear, abrindo sua guarda.

Com um piscar de olhos, ela usou sua Marca Temporal, desaparecendo de sua posição no ar e reaparecendo instantaneamente atrás dele, o calcanhar já em movimento para atingir a parte de trás de seu joelho. Adam rugiu, surpreso pela tática, e conseguiu girar a tempo de evitar o golpe incapacitante, mas o ataque o desequilibrou.

Enquanto ele recuperava a postura, Dani, com uma graça letal, materializou uma katana de éter puro em sua mão, a lâmina vibrando com uma luz azulada. Com um movimento rápido, ela fez um corte no ar à sua frente. O corte não produziu som, nem pareceu ter efeito. Apenas uma fina linha trêmula, como uma distorção no ar, permaneceu por um instante antes de desaparecer.

— O que foi isso? Um truque de salão? — zombou Adam.

— Corte o Tempo: Lacre Temporal — ela respondeu, a voz calma.

A pressão sobre Adam aumentou. Ele sentia que precisava terminar aquilo rápido. A velocidade e a precisão dela eram irritantes, quase sobrenaturais. Ele decidiu que era hora de parar de brincar.

— Chega de dançar, Scarlune! — ele bradou, e o chão ao seu redor explodiu para cima. — FORJA DA REVANCHA!

O País das Maravilhas recuou. O chão sob seus pés tornou-se uma grelha de rocha rachada, de onde rios de magma borbulhavam. Do magma, armas incandescentes começaram a emergir: uma lança de gelo negro, uma espada de sombras, e a alabarda de Lu Bu. Eram as memórias de suas batalhas mais difíceis, forjadas em sua própria resiliência.

Adam agarrou a réplica da alabarda de Lu Bu, a arma pulsando com um calor que faria a mão de qualquer outro virar cinzas.

— Eu sobrevivi a isto uma vez. Você não terá a mesma sorte! — ele rugiu, preparando-se para replicar o ataque mais devastador que já recebera.

Mas, no instante em que ele canalizou seu poder máximo, no momento em que sua aura atingiu o pico, Dani sorriu.

— Tarde demais.

Ela estalou os dedos.

O Lacre Temporal que ela havia criado no ar, momentos antes, ativou-se. Não onde estava, mas diretamente sobre o punho de Adam que segurava a alabarda. A fina linha de distorção se expandiu, e o tempo naquela pequena área congelou. A aura explosiva de Adam, o poder que ele estava prestes a liberar, foi contido, sufocado, impedido de se manifestar. Sua técnica suprema foi neutralizada antes mesmo de nascer.

A surpresa no rosto de Adam foi absoluta.

— Como...?

— Desde o início — a voz de Dani ecoou, agora ao seu lado, a katana de éter pressionada contra seu pescoço. — Eu não estava apenas lutando contra você, Adam. Eu estava lendo você. Cada movimento, cada flutuação em seu éter, cada pico de raiva. Eu sabia qual arma você escolheria. Sabia qual ataque usaria. E sabia exatamente quanto poder você precisaria para ativá-lo. Eu não impedi seu poder máximo. Eu apenas o impedi de alcançá-lo.

O olhar de Adam se moveu para o “Braço” que ela ainda segurava com a outra mão, ileso. A batalha inteira... a perseguição, os desvios, os contra-ataques... tudo foi uma distração. Ela nunca esteve em perigo.

Desde o início, não era uma luta. Era ela o manipulando, guiando-o passo a passo para sua própria ruína.

Parte 3

Algumas semanas atrás

A câmara era fria, escura e silenciosa. Dentro dela, apenas o barulho de goteiras e de uma cachoeira ao fundo era ouvido, um esquife de silêncio e sombras parido nas entranhas de um covil esquecido da Horizon. As paredes, de um metal fúnebre, pareciam beber a própria luz. A pequena e única claridade espectral emanava de um mapa holográfico de Hortus Parvus, flutuando no centro.

Layla Azael, ou Velvet, acabara de retornar de sua jornada pela Classe-13, trazendo consigo informações sobre o Avatar do Astreus da Vida. Sua presença, mesmo após as provações do labirinto, era a de um predador adormecido. Assim, ela caminhou e juntou-se aos outros, um panteão de poder e sussurros reunido sob o globo trepidante de luz.

Priscilla, a Rainha de Raven, rosto público e máscara da organização, mantinha-se de pé. Sua postura régia era uma afronta à selvageria contida de Adam e à quietude de navalha de Kali, que a flanqueava. Seus olhos, no entanto, estavam fixos na figura entronizada à cabeceira, o verdadeiro líder e comandante daquele lugar.

— Niklaus — a voz de Priscilla, embora calma, era como o estalar de gelo fino sobre um abismo —, a União da Rosa-Cruz entregou um convite para a reunião que ocorrerá em Marte. Parece que vários Reinos e potências do mundo foram convocados.

Niklaus, que até então fitava o holograma com um interesse quase cirúrgico, ergueu o olhar. Seus olhos, que guardavam a placidez de um oceano e a profecia de sua fúria, varreram cada alma presente.

— Entendo... — murmurou, seu barítono fazendo vibrar o próprio ar estagnado. — Se as minhas previsões estiverem certas, essa reunião será sobre os Astreus, um fato que eles não podem mais esconder. Ainda assim, não me parece motivo suficiente para fazer a Rosa-Cruz convocar uma reunião bem em seu quartel, ao invés de algum lugar de Elysium. Realmente parece algo que devemos observar. Mas o tempo é um luxo que não nos pertence. A próxima Reunião dos Scarlune em Nocturia também se aproxima. E com ela, nossa chance de reclamar a Caixa de Pandora.

Ele, então, recostou-se em seu trono, os dedos entrelaçados como as raízes de uma árvore antiga.

— Não posso ir para ambos os locais ao mesmo tempo, mas perder uma das reuniões, sem dúvida alguma, seria um erro.

Um sorriso lento repuxou seus lábios.

— Acho que é a oportunidade perfeita para ouvir o que vocês têm a dizer.

Todos os olhares se vergaram para as duas mulheres no canto da sala.

Ceto, a jovem estrategista meio tubarão, sentiu um calafrio que era uma agulha de gelo na espinha, o peso da expectativa, mas sabendo que era seu dever. Abriu a boca para desdobrar seu plano, um bordado de riscos e certezas, mas antes que a primeira palavra pudesse nascer, a outra se moveu.

Irene LaBlanc, a "Senhorita Mistério", ergueu-se com uma graça líquida, a um só tempo sedutora e letal. Seus cabelos de um roxo profundo pareciam um vácuo que devorava a luz da sala, e seus olhos, rubis incandescentes, cravaram-se em Niklaus.

— Se não podemos perder nenhum dos eventos, meu caro Niklaus, só temos que comparecer a ambos — sua voz era um veludo sussurrante, tecido com uma autoridade que não se podia questionar.

Ceto encolheu-se, um movimento quase imperceptível. O pavor que Irene inspirava não era o temor de um poder bruto como o de Adam ou da letalidade silenciosa de Kali. Era algo mais antigo, mais... profano. Era como estar na presença de um vácuo que sorri, de uma escuridão que promete segredos enquanto lhe devora a alma.

— A resposta é bem simples quando pensamos um pouco — continuou Irene, seus passos lentos ao redor da mesa, um eco solitário no silêncio. — Você, Niklaus, e nossa querida rainha Priscilla irão a Marte. Vossa presença é necessária para o grande teatro. Deixem a charada em Nocturia para a nossa pequena e faminta tubarãozinha.

Lançou um olhar divertido, banhado em condescendência, para Ceto.

— Ela já tem dentes suficientes para uma pequena reunião de família, não é?

Ceto engoliu em seco. Sentia o olhar de Irene sobre si como o de uma aranha tecendo a seda ao redor da mosca paralisada. Odiava a familiaridade predatória com que Irene a tocava com as palavras.

Niklaus arqueou uma sobrancelha. — E você, Irene? Que papel representará enquanto nosso palco se divide?

O sorriso de Irene alargou-se, um brilho agourento dançando em seus olhos vermelhos.

— Oh, eu? — ela riu, um som baixo e melódico, como sinos de vidro num mausoléu. — Eu recebi um convite para uma festa do chá. No País das Maravilhas.

A confusão no rosto de Niklaus foi genuína. — O País das Maravilhas? Qual o enigma?

— Digamos apenas que, se as peças da fábula se moverem como prevejo... — Irene deteve-se, a voz saindo agora como um veneno doce — ...você entenderá quando chegar a hora.

Assim, ela começou a caminhar em direção à saída dos fundos, no canto mais escuro e mais profundo da sala, sua silhueta elegante se desvanecendo nas sombras até que fosse como se jamais tivesse existido.



Presente. O Tribunal da Rainha de Copas.

O ar no País das Maravilhas tresandava a rosas negras e a lógica em decomposição. Niklaus, sentado numa galeria de cogumelos fosforescentes, observava o julgamento grotesco com uma calma sobrenatural. Seu olhar pousou em Alice, a criança-deusa em seu trono de bules de chá, e depois em Carmilla, a rainha vampira, forçada a desenterrar segredos milenares sob a luz de um sol demente.

Um sorriso lento, um reconhecimento antigo, tocou seus lábios.

— "Digamos apenas que, se as peças da fábula se moverem como prevejo, você entenderá quando chegar a hora" — ele sussurrou para o nada, as palavras de Irene ecoando em sua mente como um refrão esquecido.

Ele finalmente compreendia. Irene não viera ao País das Maravilhas por capricho ou loucura.

— Então, minha cara Irene... — pensou ele, e havia um brilho de genuína e terrível admiração em seus olhos. — Você já sabia o final desta história desde o começo, não é? Sendo assim, o que planejou para nós?

A peça estava em andamento. E a Senhorita Mistério, de algum ponto cego nas sombras daquele mundo insano, movia os fios de todos eles.

Parte 4


O julgamento prosseguia no estrambótico País das Maravilhas, e a Rainha Alice, sentada em seu trono feito de bules tilintantes, demonstrava uma voracidade insaciável por contos sombrios. Observando que sua Majestade ainda não estava plenamente entretida, Carmilla, com seus olhos como poços noturnos, deu continuidade à sua narrativa.

— A lenda de Lúcifer e Arthur nunca seria esquecida e, obviamente, achou uma forma de se fixar na História, dando origem ao conceito de Rei Demônio.

Da Vinci, a anfitriã, que escutava com atenção toda a conversa, murmurou para si mesma sem perceber:

— Isso bate com o que a União descobriu. — Um brilho de reconhecimento relutante dançou em suas íris.

No mesmo instante, como um espectro de listras, a Advogada, a Gata de Cheshire Kitty, materializou-se ao lado de Da Vinci. Sua forma física se desfez em um segundo, restando apenas seus olhos dourados flutuando no ar rarefeito e um sorriso que parecia talhado na própria escuridão.

— Miau... Desenvolva essa sua explicação para nós, prezada engenhoca humana — sibilou a Gata, sua voz um ronronar aveludado que continha a promessa de tormentos caso a verdade fosse ultrajada.

Da Vinci curvou a cabeça em um aceno mecânico, aceitando o centro do palco.

— Em nossas investigações sobre a Origem de Lúcifer, descobrimos ruínas cósmicas de sua origem, encontramos uma abominação em uma galáxia distante. Um sistema solar inteiro... reduzido a cinzas. E no epicentro desse cataclisma, detectamos uma assinatura de éter residual, uma marca colossal, a mesma encontrada nas implosões de um Rei Demônio. — Ela olhou em volta para confirmar que todos conseguiam acompanhar.

— Implosão? — Gid Lovecraft questionava no canto.

— Ela está falando das explosões que acontecem quando alguém vira rei demônio — respondia Vodka.

Nessa conversa, aqueles mais afastados do sobrenatural e do oculto acabaram decidindo ficar mais quietos em seu canto a tentar entrar na conversa. De qualquer forma, sabiam que Alice не teria nada a lhes perguntar, embora Gid prestasse uma atenção mórbida a tudo. Por que logo o rei do reino que repudiava o sobrenatural prestaria tanta atenção em conversas sobre ele?

— "Oficialmente", o que separa os Reis Demônios dos demais da existência mundana — explicou Da Vinci, como se tivesse decidido ajudar Gid e os que não entendiam — é o processo de "Eclosão". Seu corpo aquece o Éter a um nível tão extremo que a água evapora por completo. Se o corpo resistir e não se destruir nesse processo, ele se transforma em um rei demônio.

Galantine, o gigante, olhava à sua volta, pensando se realmente não tinha como sair daquele lugar, quando percebeu que alguns convidados haviam virado bonecos.

— O que está acontecendo aqui? — gritou Galantine.

— Não há nada a temer, meu senhor. Alice é uma rainha benevolente. Ela não aprisiona em seu mundo quem não esconde nada dela; apenas aqueles que esconderam algo ligado à conversa atual ou que tenham interesse nas mesmas respostas que ela estão no tribunal. Os demais foram colocados para dormir e, assim que o tribunal acabar, para eles parecerá que o tempo nem passou — falava Samuel Mathers, o advogado de Defesa.

Da Vinci então levantou a sobrancelha, percebendo o risco que corria. Mesmo que não fosse uma das julgadas, entendeu que Alice saberia que ela estava escondendo algo, caso não contasse e, com isso, não saciasse sua fome. Assim, ela decidiu continuar:

— Compreendemos, então, que Lúcifer não apenas se transformou naquele sistema solar longínquo; ele o queimou por completo no processo.

Carmilla retomou o fio da narrativa, sua voz um eco sepulcral na atmosfera carregada:

— As criaturas daquela era, aterrorizadas por tal poder apocalíptico, passaram a intitular todos que passavam por uma transformação similar de "Reis Demônios". Não por possuírem qualquer laço sanguíneo com os demônios de Umbra, mas como uma herança de terror, uma cicatriz para o poder que o primeiro deles exibiu. Apenas Lúcifer, em verdade, reinou sobre as legiões infernais. Os outros... nós apenas portamos o estigma.

Alice, em seu trono instável de porcelana rachada, inclinou sua cabeça adornada com fitas desgrenhadas. Seus olhos, duas luas famintas, brilhavam com uma sede insaciável.

— Devemos prosseguir. Agora, quem devo questionar? — A voz, de Alice, um tilintar de sinos quebrados, que ecoavam pelo salão do tribunal, onde o silêncio era uma coisa palpável, espesso como veludo empoeirado e pesado com o aroma enjoativo de chá. Era um silêncio que aguardava, faminto.

Foi então que, como uma aparição etérea tecida de névoa e pesadelos, uma mulher de cabelos roxos e olhos vermelhos, trajando um vestido branco imaculado e uma coroa branca igual a da rainha, deslizou para a existência.

— Acredito que seu interesse primordial tivesse sido na criança da destruição, Não é mesmo, minha rainha? — sua voz um fio de seda sobre uma lâmina. Ao seu surgimento, a sala estremeceu.

Os olhares de Da Vinci, Nicklaus, Priscilla, Argus, Carmilla e Helena se cravaram nela, cada um um punhal de surpresa e desconfiança.

— Espere, o que ela está fazendo aí? Ela é Irene, um membro da Horizon! — Helena bradou, sua voz não apenas rasgando o ar, mas estilhaçando-o como um vidro fino. Cada sílaba era aguda, banhada em um desespero que beirava a insanidade. 

O grito ecoou e depois foi engolido pela quietude, deixando um zumbido fantasmagórico nos ouvidos de todos. No fundo da sala, Bedivere sentiu uma serpente de gelo deslizar por sua medula. Não era um simples arrepio, mas um presságio gélido do desastre iminente. A ingenuidade de Helena era uma ferida aberta em um mar infestado de tubarões, e ele, amordaçado pela própria discrição, só podia assistir. Ele sentiu o gosto metálico da impotência na boca.

Alice virou-se para a aparição, seu sorriso de boneca não vacilando. Seus olhos de porcelana se voltaram, primeiro para a mulher de branco — agora identificada como Irene —, e depois para Helena. A irritação em seu olhar era uma promessa de dor, fria e precisa.

— Mystery, você a conhece? — a voz de Alice saindo doce, mas era a doçura nauseante da cicuta disfarçada em mel, uma melodia que fazia os pelos da nuca se arrepiarem em um misto de fascinação e pavor.

—Não, Ali, nunca a vi — respondeu Irene, sua serenidade uma anomalia, uma blasfêmia contra o pânico que começava a sufocar a sala. Era a calma do olho de um furacão. — mas acho que ela deve ser uma conhecida dos meus amigos

— Ela está mentindo! — Helena gritou inconformada. 

— Silêncio. —  A ordem de Alice foi um sussurro, mas não precisou de volume para impor um vácuo absoluto. Foi como se o próprio som tivesse medo dela. O tilintar caprichoso dos bules e xícaras em seu trono de louça cessou abruptamente, como se tivessem se transformado em chumbo. — Eu não lhe dei permissão para gritar. E Alice já sabe quem é sua Irmãzona Mystery.

A revelação não caiu como uma pedra; ela se insinuou na mente de cada um, uma semente de horror que germinava em solo fértil, suas raízes se enroscando nos corações dos presentes.

— Ela é minha amiga — continuou Alice, e um brilho perigoso, a luz de uma estrela moribunda, dançou em suas pupilas. — Irene vem brincar comigo no País das Maravilhas há muito, muito tempo. Foi ela, dias atrás, que me fez um grande favor. Ela me fez perceber como os outros reinos me tratam como uma criança tola, escondendo seus segredinhos de mim.

As peças do quebra-cabeça estalaram em seus lugares na mente de todos, não formando uma imagem, mas sim um mosaico de pesadelo. Aquele tribunal, aquela fome insaciável por verdades... tudo foi semeado por aquela mulher de branco, que permanecia intocada pelo caos que criara.

— Ela está manipulando você, Majestade! — A voz de Helena era um fiapo, o pânico a estrangulando. — Ela a usou para criar este caos!

A palavra "manipulando" pairou no ar por um instante e depois detonou.

O próprio tecido da realidade gemeu. O ar engrossou, tornando-se difícil de respirar, pesado como água. As cores vibrantes do salão começaram a sangrar e a escorrer umas nas outras, como aquarelas macabras em papel encharcado de lágrimas. O chão sob seus pés tornou-se instável, ondulando como a superfície de um lago febril, provocando uma vertigem nauseante. O trono de Alice se ergueu, flutuando sobre a loucura, e os bules e xícaras agora soavam como um dobre de finados em meio a uma tempestade invisível. A realidade se curvava, se quebrava, diante da fúria da pequena rainha.

IRENE... — A voz de Alice não era mais de uma criança. Era uma legião, uma cacofonia de ecos ancestrais e gritos infantis emanando de um único ponto, vasta e distorcida. Era o poder de uma divindade capaz de esfacelar a criação por um capricho. — A MINHA QUERIDA IRMÃZONA... ESTARIA MENTINDO... PARA MIM?

A pressão na sala era esmagadora, uma força gravitacional que ameaçava transformar ossos em pó. Mesmo sob esse peso que poderia desintegrar estrelas, Irene não vacilou. Ela se mantinha tranquila e sorridente no epicentro de um terremoto. Ela encontrou o olhar incandescente de Alice e sua calma era um escudo.

— Ali, me diga, você. Sabe como eu detesto a mentira mais do que qualquer coisa, então olhando nos meus olhos responda, acha que mesmo assim eu mentiria ? — Ela gesticulava com as mãos enquanto falava com sua voz sedutora — Para provar irei reiterar aqui no centro do Tribunal se necessário, Apenas compartilhei o que estava em meu coração, mas meu objetivo como sempre foi de brincarmos.

Como uma chama sendo subitamente apagada, a fúria de Alice se dissipou. O mundo estalou de volta à sua forma bizarra e "normal", um som seco e violento como um osso que volta ao lugar. Ela sorriu, e desta vez, o sorriso alcançou seus olhos, genuíno e terrível em sua sinceridade.

— Eu sei.

Helena abriu a boca para protestar, um último ato de desespero, mas as palavras morreram em sua garganta. Ao seu lado, o sorriso da Gata de Cheshire se materializou antes do resto de seu corpo, uma fenda carmesim e aguçada flutuando na penumbra, um corte de navalha no próprio ar.

— Miau... — sibilou a Advogada, a voz como o farfalhar de seda sobre uma lâmina. — Uma acusação tão grave contra uma amiga da corte... certamente vem acompanhada de provas, não é mesmo?

Samuel Mathers, o Advogado de Defesa, complementou com uma formalidade que era mais fria que o toque de um túmulo. — A corte exige fundamentos, ou considerará a acusação uma ofensa direta à Rainha. Você tem alguma prova, algum segredo que possa corroborar sua alegação?

O sangue de Helena não apenas gelou; pareceu se transformar em cacos de vidro em suas veias. Ela olhou para os olhos vermelhos de Irene, que brilhavam com uma vitória silenciosa e cruel na penumbra. A armadilha era perfeita, suas mandíbulas de lógica perversa se fechando sobre ela com uma precisão matemática. Revelar suas provas significaria trair segredos de estado, expor as pesquisas do trono de Deus na frente dos outros reinos, uma sentença de morte e abandono de seu Deus. Negá-las seria mentir para a divindade faminta que a observava com uma curiosidade predatória, o que por sua vez significava a aniquilação garantida. O ar ao redor dela parecia rarefeito, a esperança se esvaindo como fumaça.

Uma resignação amarga, o sabor de cinzas e derrota, preencheu sua boca. Seus olhos encontraram os de Gid Lovecraft, uma última e silenciosa transmissão de dever e condenação.

— Gid... quando retornar a Gaia... informe ao Trono de Deus que preparem minha substituta.

Ao ouvir aquilo, o rosto de Alice se tornou uma tela em branco, desprovida de qualquer emoção, o que era infinitamente mais aterrorizante que sua fúria anterior.

— Você sabe de algo, Helena? — perguntou ela, a voz terrivelmente simples, a pergunta final de um deus entediado. — Sim... ou não?

Helena fechou os olhos, o mundo se reduzindo à escuridão atrás de suas pálpebras. Um último suspiro, um véu de névoa no ar frio, escapou de seus lábios.

— Não.

Houve um som sutil, quase delicado, um sussurro úmido como o de um tecido de seda sendo rasgado com precisão cirúrgica. A cabeça de Helena tombou para o lado com um estalo suave e depois rolou pelo chão quadriculado, parando a poucos centímetros do sapato de Gid Lovecraft. Seu corpo desabou com a flacidez de uma marionete cujas cordas foram cortadas, e uma poça crescente de sangue carmesim começou a se espalhar, uma nova e terrível flor desabrochando no jardim da Rainha.

Gid Lovecraft observou a cabeça com um interesse clínico por um momento, e então soltou uma risada, um som seco e divertido como o de folhas mortas sendo esmagadas.

— Que descuido. Esqueceu-se de recomendar um sucessor.

Longe dos olhares, a mão de Bedivere se fechou com uma força que poderia triturar aço. A fúria era um sol branco e incandescente confinado em sua mão, os nós dos dedos estalando sob a pressão, enquanto ele lutava para manter a máscara de indiferença.

— Viram? — disse Alice, com o tom de enfado de quem limpa uma sujeira do chão. — É por isso que eu odeio mentirosos. Só fazem bagunça.

Ela então se virou para Irene, seu sorriso doce retornando como se o cadáver no chão não passasse de uma miragem.

— Para me desculpar por duvidar de você, irmãzona, vou aceitar seu conselho.— Ela sorria enquanto os soldados de origami limpavam o tribunal — Então me diga, General Divino Susano... — A voz de Alice era pura e cristalina, a clareza de um fragmento de gelo. — Qual é a verdade por trás da Criança da Destruição?

Parte 5

Enquanto a poeira da batalha entre Gaap e os Argonautas assentava, o silêncio que se seguiu era mais ameaçador que o próprio combate. Gaap, encharcada de sangue e adrenalina, estava pronta para o segundo round, um sorriso selvagem e faminto no rosto. Mas o jogo havia mudado de forma irrevogável.

Zero reapareceu, não com a fanfarra de um guerreiro, mas com a calma casual de quem volta de uma caminhada. Ele olhou para Wukong, que se preparava para lançar um novo ataque devastador, e simplesmente apontou um dedo.

— Bang.

Não houve som, nem luz, nem explosão. Onde Wukong estava, a realidade pareceu... piscar. Por um instante, ele se desfez em pixels, como se tive-se virado um jogo 8 bits, e então, simplesmente... desapareceu.

Gaap virou-se para Zero, a fúria de uma tempestade em seus olhos. — Por que fez isso?! Ele era meu! 

— Eu avisei — a voz de Zero era desprovida de emoção, quase entediada. — Assim que eu voltasse, a brincadeira acabaria. Eu só saí para comprar uma camisa para um amigo.

Kael, vendo seu companheiro e mentor ser apagado da existência, explodiu. Uma aura violenta, uma tempestade de pura fúria e dor, irrompeu dele, o chão rachando e a realidade se distorcendo sob a pressão de seu poder. — O QUE VOCÊ FEZ?! ONDE ELE ESTÁ?!

— Vai saber — Zero deu de ombros, um gesto de puro e absoluto desdém. — Talvez ele esteja vivo por aí. 

Zoe tentou segurar Kael, mas era tarde demais. O líder dos Argonautas avançou sobre Zero, cego pela raiva, pronto para se autodestruir em uma tentativa de vingança. Mas ele foi impedido.

— Ainda não e hora, Lider…

Uma fissura no tecido da realidade se abriu ao seu lado, e dela saiu um homem com os olhos perpetuamente fechados, segurando uma lâmina que parecia cortar a própria luz, absorvendo-a em sua borda.

— Neitan — Zero reconheceu, sem um pingo de surpresa.

— Mestre Zero — o homem, Neitan, inclinou a cabeça respeitosamente. — Vim levar meus companheiros. A missão de Kael por hoje acabou.

— O décimo caçador do ranking — Zero comentou, um brilho de genuíno interesse em seu olhar. — Essa sua lâmina... é a arma do mês? Interessante.

— Sinto-me honrado por ser lembrado pelo número um — Neitan sorriu, um sorriso que não alcançava seus olhos fechados. — Quanto à lâmina... digamos que ela tem seus segredos.

Kael, ainda lutando como um animal enjaulado, tentou se soltar. — Me solte! Eu vou matá-lo! Eu vou...

Com uma facilidade desconcertante, Neitan o atingiu com um golpe preciso na nuca. Kael desabou instantaneamente, inconsciente.

— Por quê? — perguntou Zoe, a voz trêmula de choque e confusão.

— Ele exagerou. Deixou a raiva consumi-lo. — Neitan respondeu calmamente. — E não se preocupe com Wukong. Eu consegui resgatá-lo.

Zero sorriu, um sorriso genuíno e curioso pela primeira vez. — Ah... Então, você sabe a verdade sobre minha habilidade.

— Tenho umas ideias — disse Neitan, evasivo. — O suficiente para saber que não se deve ficar na frente dela.

Gaap, impaciente com a conversa, saltou para atacar, suas garras prontas para rasgar Neitan. Mas ele já estava em movimento. Com uma velocidade anormal, ele agarrou Zoe e o corpo inerte de Kael, recuando para uma distância segura em um piscar de olhos.

— Por hoje, isso será tudo que temos a oferecer, Rainha Demônio — ele disse, sua voz calma contrastando com a fúria dela. — Mas não se preocupe. Outro dia, eu deixo você brincar com meu líder de novo. Prometo.

Com um corte de sua lâmina que não fez som algum, ele rasgou a realidade novamente, criando um portal cintilante e passando por ele com os dois Argonautas, desaparecendo sem deixar vestígios.

Zero ficou sozinho, observando o local onde eles sumiram.

— Os espiões no Reino dos Números... eram mais do que eu contei no início. Aquele homem e sua espada devem ser o motivo. Ele consegue entrar e sair deste País das Maravilhas à vontade com ela.

Ele riu, um som baixo e animado, caminhando de volta para a sala de reunião enquanto Gaap encarava o lugar por onde Neitan desapareceu meio irritada. 

Parte 6

A batalha de Kali contra os cultistas era uma dança mortal, coreografada com precisão glacial. Ela se movia com uma economia de movimentos que beirava o insulto, e cada arco de sua lâmina negra era um epitáfio escrito em aço.

— Tema seus fracassos! Sinta o peso de ser abandonada! — a voz de Faustus ecoou em sua mente, tentando tecer uma tapeçaria de pesadelos com seus medos mais profundos.

Mas a mente de Kali era uma cidadela de gelo impenetrável. As ilusões, retratos de seu pai, o Rei Dragão, virando-lhe as costas, estilhaçaram-se contra a muralha de sua indiferença forjada.

Mira, desesperada, urrou e lançou contra ela um golem de doces endurecidos. Foi então que os cultistas perceberam uma área negra emergindo da terra e cercando todo o lugar. Ao notar aquilo, Kali também parou de se mover. Eles perceberam tarde demais e, usando o máximo de velocidade, tentaram se afastar, mas foi quando uma enorme explosão aconteceu no meio deles, que já estavam cobertos de pólvora e cinzas negras. A única que conseguiu se afastar a tempo foi Kali, que era, sem dúvidas, a mais rápida entre eles. Voando com suas asas de éter, ela observava tudo do céu, até que, de repente, começou a descer sobre os destroços do campo de batalha.

Foi então que uma nova presença se manifestou: uma aura de poder contido e arrogância milenar que cortou o ar como uma lâmina.

— Que decepcionante. Achei que os cães de Lúcifer ofereceriam mais entretenimento.

Kali virou-se lentamente, sua lâmina ainda pingando o xarope negro do golem. Oda Nobunaga estava parada ali, o leque de ferro negro cobrindo um sorriso zombeteiro, seus olhos faiscando com um tédio perigoso.

— Eu reconheço você — disse Nobunaga, o leque se fechando com um estalo seco que soou como um osso se quebrando. — A princesa abandonada do Reino dos Dragões. Kali, não é?

Kali olhava para Oda, percebendo a provocação, mas sabia que não podia atacar.

— Diga-me, o que Niklaus, o Calculista, oferece que seu próprio sangue lhe negou? Poder? Um propósito? Ou apenas uma coleira mais bonita?

Enquanto conversavam, elas de repente sentiram uma perturbação no éter, distante, mas inconfundível: a energia de Adam explodindo em fúria em sua Forja da Revancha e a assinatura cronoelétrica de um novo e poderoso combatente. A situação havia escalado perigosamente. Ela precisava ir. Precisava ajudar.

— Parece que seu amigo está precisando de ajuda, não é? — Nobunaga olhava na direção de Adam e soltava um largo sorriso zombeteiro. — Acho que vai ter que ir lá ajudá-lo, certo? Se você atacar desta distância, acho que um de nós vai morrer. Está preparada?

Kali travou, sem conseguir reagir. Ela sabia que a pessoa à sua frente não era alguém com quem se devia brigar.

Os cultistas, que se fingiram de mortos na explosão, levantaram-se, vendo a concentração de Nobunaga em Kali como uma abertura. Os três enfiaram as mãos dentro do corpo de Nobunaga e, como uma medida desesperada para lidar com a maior ameaça, decidiram explodir seu éter interno em uma explosão máxima de éter instável.

Mas, antes que explodissem, todos, incluindo Kali, tiveram a certeza de que, nos cinco segundos antes de tocarem em Nobunaga, a viram sorrir como se já tivesse imaginado aquilo, em vez de ter ficado surpresa.

— Corta!

Isso foi tudo que se ouviu enquanto uma explosão de éter fulminante acontecia. Kali se afastava o mais rápido possível. A explosão foi gigantesca, mas, assim que o brilho se desfez, Kali abriu os olhos apenas para ver o local completamente normal. Nobunaga estava parada no mesmo lugar, sem um único arranhão. Além disso, nenhum dos prédios à volta havia sequer arranhado, e os corpos dos cultistas misteriosos haviam desaparecido.

— É verdade, esqueci que tinha um braço para buscar.

Ouvindo aquilo, Kali percebeu um perigo ainda maior do que o que Adam estava enfrentando. Se aquela mulher de cabelos azuis, olhos vermelhos e roupa militar era um perigo anômalo, o que poderia ser ainda mais arriscado? Assim, ela se moveu em alta velocidade com sua katana pronta para desferir um corte, mas, no minuto em que sua lâmina atingiria a garota, novamente viu um sorriso e, por reflexo, recuou para o mais longe possível.

— O que foi? Não vai atacar? — Nobunaga olhava para ela, decepcionada. — Acho que não tem jeito, dragões têm um instinto muito bom.

Dito isso, ela parou de olhar para a princesa dragão, fixando o olhar diretamente para onde Adam e Dani estavam lutando.

Enquanto Dani estava concentrada na luta contra Adam, não percebeu que os cultistas haviam corrido em sua direção e começaram a se esticar para pegar o braço. Vendo os movimentos deles, ela apenas recalculou seus próximos passos, pronta para se defender. De repente, todos escutaram um som de metal, como um leque se fechando, e, num piscar de olhos, estavam todos entre Nobunaga e Kali, sem conseguir entender como. Até mesmo Dani demorou para saber como reagir.

Antes que pudessem fazer qualquer coisa, a General Divina agora estava com o rosto a centímetros do de Dani, o frasco contendo o braço misterioso seguro em sua mão como se sempre lhe pertencesse. Um sorriso zombeteiro brincava em seus lábios.

Do alto de um prédio em ruínas, Kali observava, seus olhos vermelhos analisando cada detalhe. "Não foi manipulação do tempo", ela pensou. "Se ela tivesse parado o fluxo, eu teria sentido a perturbação no Éter. Isso foi... outra coisa."

Sua audição aguçada captou um sussurro urgente vindo de dentro do mesmo prédio.

— Kali, não se meta. Arcanum e Katsuragi também estão aqui. Tentar lutar agora é suicídio. Não podemos vencer um General Divino. — A voz era de Layla, baixa e precisa.

— Bem que eu estava me perguntando onde você estava. As ordens de Niklaus foram para você espionar os cientistas da União e se reunir conosco assim que a reunião começasse — disse Kali com uma voz irritada, mas logo viu que não era o momento para isso. — Além do mais, se fugirmos, ela só terá que nos caçar.

— Então a única escolha é matá-la — retrucou Layla.

Kali franziu a testa.

— Isso é uma contradição.

— Você vai entender — prometeu Layla.

Enquanto isso, no chão, Amira e Roven procuravam desesperadamente pelos outros membros de seu grupo.

— Onde eles estão? — murmurou Amira.

— Ah, eles! — disse Nobunaga, sem tirar os olhos de Dani. — Foi mal, peço desculpas. Acontece que eles se mataram tentando me tocar.

A provocação foi a faísca que acendeu o barril de pólvora. A raiva de Amira ferveu, mas antes que pudesse agir, sentiu uma vibração sob seus pés. O chão rachou e, com uma erupção violenta, Mira — a cultista que deveria ter sido desintegrada na explosão anterior — emergiu, cuspindo um jato de magma superaquecido diretamente em Nobunaga.

Nobunaga, pela primeira vez, demonstrou uma fração de segundo de surpresa, saltando para trás para evitar o ataque. O magma sibilou onde ela estava, derretendo o asfalto.

— Você cometeu um erro — disse Mira, a voz rouca e cheia de ódio. A cultista que explodiu era uma cópia, uma isca criada com seu poder de consumir e alterar a matéria, enquanto a verdadeira esperava pacientemente sob a terra. — Você já se mostrou suscetível a esse tipo de engano antes. Eu apenas aproveitei a oportunidade.

Nobunaga recompôs-se, e o sorriso perigoso voltou.

— Inteligente. Muito bem. Agora são cinco contra uma. Talvez agora vocês tenham uma chance. — Ela olhou para cada um deles, seus olhos faiscando. — Aproveitem. Mas faço uma previsão sombria: se realmente atacarem, um de nós morrerá aqui.

A ameaça pairou no ar por um instante antes de se estilhaçar.

A batalha explodiu. Nobunaga começou a correr, não para fugir, mas para escolher o terreno. Adam, com um machado de guerra incandescente arrancado de sua Forja da Revancha, a acompanhava pela direita, cada passo seu quebrando o concreto. Pela esquerda, Dani era um borrão cronoelétrico, sua velocidade sobre-humana a mantendo lado a lado com a General.

Com um gesto fluido, Nobunaga girou. De sua mão, um chicote de cinzas e pólvora negra se materializou, estalando no ar com um som sinistro. Ela o brandiu contra o prédio mais próximo, e o chicote cortou o aço e o concreto como se fossem manteiga. A estrutura gemeu e começou a desmoronar. Sem hesitar, os três mergulharam pelas janelas estilhaçadas do andar térreo, transformando a estrutura em colapso em sua arena pessoal.

Dentro do prédio, a luta era um balé caótico de destruição. Dani desferia uma saraivada de chutes que poderiam quebrar ossos, mas Nobunaga criava escudos instantâneos de pólvora endurecida que absorviam os impactos. Adam balançava seu machado em arcos baixos, tentando cortar as pernas da General, mas ela saltava sobre os ataques com uma agilidade felina, usando as paredes e o teto como apoio.

O prédio inclinou-se perigosamente. Com um movimento acrobático, Nobunaga saltou por uma janela quebrada, invertendo seu corpo no ar. A batalha continuou do lado de fora da estrutura que caía, com os combatentes desafiando a gravidade na lateral do arranha-céu em queda livre.

Do chão, Mira rugiu e moldou a terra derretida. Um colossal dragão de lava surgiu, batendo asas de fogo e magma, e voou em direção a Nobunaga. O impacto a arrancou da parede do prédio e a arremessou violentamente contra um edifício vizinho, onde ela desapareceu em uma nuvem de poeira.

De dentro da nova cratera, dezenas de projéteis de pólvora foram disparados como uma metralhadora, rasgando o ar e colidindo com o dragão de lava, que explodiu em uma chuva de rocha derretida.

O primeiro prédio finalmente atingiu o chão com um estrondo ensurdecedor, incendiando-se devido à pólvora que Nobunaga deixara em seu interior. A fricção gerou faíscas, causando uma explosão de pó. As chamas consumiram os destroços, e uma espessa fumaça negra subiu aos céus, transformando tudo em mais cinzas, mais combustível para Nobunaga.

Da fumaça, ela emergiu. Duas asas maciças, feitas de pura pólvora e cinzas, a impulsionaram em uma velocidade vertiginosa. Ela apareceu diretamente na frente de Adam, que havia perdido seu machado no impacto anterior. Mas antes que Nobunaga pudesse atacar, Dani, do outro lado do campo de batalha, estendeu a mão. Uma aura cronoelétrica crepitou ao redor dela, e o machado de Adam, caído a metros de distância, tremeu. Com um pulso eletromagnético, a arma voou pelo ar e se encaixou perfeitamente na mão de Adam.

No exato instante em que ele segurou o machado, Dani já estava em outro lugar. Ela agarrou um vergalhão de aço dos escombros, e seu Éter o envolveu, comprimindo o tempo e o espaço ao redor do metal. Ela o disparou. O vergalhão se tornou um projétil de railgun, cortando o ar com um zunido agudo.

Nobunaga sentiu o ataque duplo. Ela girou, sua Katana da Mó Perpétua subindo para bloquear o machado de Adam, enquanto se inclinava para desviar do projétil de Dani. O ataque coordenado a forçou a recuar pela primeira vez. O vergalhão passou raspando por seu rosto e se cravou profundamente em um prédio atrás dela.

Antes que ela pudesse contra-atacar, Roven, o cultista que ficara para trás, agiu. Das sombras dos prédios em ruínas, ele criou correntes espectrais que surgiram, envolvendo os tornozelos e pulsos de Nobunaga. Foi um ataque sutil, uma armadilha tecida com desespero e precisão, projetada não para ferir, mas para criar uma abertura de um milissegundo.

Foi o suficiente.

Kali e Dani atacaram simultaneamente. As duas katanas colidiram com a de Nobunaga, e o ar se encheu com o som de centenas de golpes por segundo. Sozinha, ela enfrentou as duas, sua lâmina única um borrão negro contra os arcos de luz branca e cronoelétrica.

— Vamos lá! Até que para a primeira luta em equipe de vocês não está nada mal. Não me decepcionem agora!

Com um movimento calculado, Nobunaga quebrou as correntes de sombra e recuou, atraindo-as para dentro de outro prédio. Sala após sala, ela as separava, usando a arquitetura para forçar duelos individuais. Quando teve a abertura que queria, encheu todo o andar com uma fina e quase invisível camada de pólvora. Com um estalar de dedos, ela detonou tudo em uma explosão de pó fulminante que engoliu o andar inteiro.

Lá embaixo, em meio ao caos crescente, Amira viu a verdade. Eles não estavam vencendo. Estavam apenas adiando o inevitável. Com uma decisão fria, ela agarrou Mira.

— Vamos embora!

— E o Roven?! — gritou Mira, enquanto era arrastada.

— Ele será a isca! — cuspiu Amira, desaparecendo nas sombras no limite da zona de combate.

Das chamas da explosão, Nobunaga emergiu, ilesa, mas Dani e Kali foram arremessadas para fora, feridas e separadas.

Roven apareceu com suas correntes mais uma vez, prendendo os braços de Nobunaga para que ela não pudesse usar sua katana.

— Mira, agora! Acaba com ela!

Ele gritou, mas não teve resposta. Nobunaga soltou sua katana no chão e a chutou com a perna, reforçando-a com éter. A lâmina voou em alta velocidade na direção do cultista, atravessando sua garganta. Mas ela não estava feliz. Nobunaga percebeu a fuga das cultistas e virou-se para ir atrás delas, agora que as correntes haviam sumido. No entanto, a Dani caída se moveu para interceptá-la. Sentindo a intenção dela com sua pólvora, que conseguia prever os movimentos de todos envoltos nela, Nobunaga se virou, puxou Dani pelo pescoço com a mão direita, enquanto na esquerda criou uma faca de pólvora negra e começou a desferir várias estocadas na velocista, enfiando e tirando a faca em segundos, da perna até o peito. Depois, chutou-a. Quando Dani se levantou, com um movimento desdenhoso, Nobunaga a atingiu com a coronha de um rifle, e a duelista cronoelétrica caiu no chão, inconsciente.

No instante seguinte, Adam, ignorando sua ferida terrível, acertou um soco dracônico no rosto de Nobunaga que a fez recuar um passo. Simultaneamente, a lâmina de Kali surgiu do nada, um arco de fogo de sua mão que rasgou o ar e atingiu Nobunaga em cheio.

A dor pareceu apenas divertir a General.

— Finalmente! Por essa eu realmente não esperava — ela rugiu, sua aura explodindo. Com uma velocidade impossível, ela se puxou com seu chicote de pólvora amarrado na perna de Adam, criando sua katana novamente assim que chegou na frente dos dois. Em segundos, desferiu dois cortes com sua Katana da Mó Perpétua. Um atingiu Adam no peito, quase o partindo em dois. O outro pegou Kali, lançando-a violentamente contra os escombros.

Ambos caíram, gravemente feridos. Foi então que Nobunaga percebeu a ausência da katana de Kali em sua mão. Sem que ela notasse, Kali a havia lançado antes de saltar para atacá-la. E agora, a lâmina girava no ar antes de começar a cair, imbuída com uma enorme quantidade de éter, e sua trajetória era diretamente para a cabeça de Nobunaga.

Infelizmente, a General sentiu a intenção assassina através da fina camada de pólvora que cobria tudo e sorriu.

— Nada mal. Inteligente, mas previsível. — Ela deslizou para o lado, um movimento fluido para se esquivar da lâmina que caía.

Mas Kali, ou melhor, Layla também havia previsto isso.

Escondida nos escombros, acompanhando toda a batalha frenética, mas com os olhos focados, Layla mirava sua pistola. Não havia intenção assassina em seu disparo, nenhuma hostilidade para Nobunaga detectar. Era um cálculo frio. No exato momento em que Nobunaga se moveu para desviar da katana, Layla atirou.

A bala não era para Nobunaga.

O projétil atingiu a lateral da lâmina da katana que caía. O som do ricochete foi um estalo agudo, quase perdido no barulho da destruição. A trajetória da bala mudou, redirecionada pelo aço da espada.

Nobunaga, no meio de sua esquiva, não teve tempo de reagir. A bala ricocheteada atingiu-a na lateral da cabeça com um impacto surdo. Seus olhos se arregalaram em choque genuíno, e então ela caiu, seu corpo batendo no chão com um baque pesado.

O som de outro prédio, que tinha sido incendiado ao fundo, foi o primeiro barulho a ser ouvido depois disso, já que todos observavam, incrédulos, que haviam conseguido.

— Espera... Nós conseguimos? — ofegou Adam, tentando se levantar.

— CORRAM! AGORA! — a voz de Layla soou, não mais um sussurro, mas um grito desesperado enquanto ela corria para fora do prédio. — Não vai demorar para ela levantar!

Eles olharam para o braço, caído ao lado do corpo de Nobunaga. Arcanum apareceu ao lado de Layla.

— Esqueçam o braço! Se o pegarmos, ela nos caçará até o fim do mundo. Não é hora de comprar uma briga com Sakura!

Como se para provar seu ponto, os dedos de Nobunaga se contraíram.

Naquele momento, todos que estavam ali recuaram.

Alguns segundos depois, Nobunaga se levantou lentamente, um sorriso largo e genuinamente feliz estampado no rosto, o buraco em sua cabeça se fechando.

— Magnífico… — ela disse, a voz cheia de admiração. — Que batalha maravilhosa.

Seu olhar passou pelos destroços do campo de batalha e pousou no corpo inconsciente de Dani e no frasco ao lado dela. Ela o pegou.

— Preciso voltar para a minha reunião. — Ela olhou para o horizonte, na direção para onde eles deveriam ter corrido. — Espero que nos encontremos novamente em breve. Venham logo resgatar a membra que capturamos, Horizon.

Com isso, ela se virou e caminhou calmamente para longe, deixando para trás um campo de batalha arruinado.

Parte 7 

Enquanto confusões aconteciam no País das Maravilhas, o mundo ainda era impactado pela comoção sobre os Astreus e o Continente Negro. Contudo, a repercussão não se limitou ao mundo conhecido. A informação bombástica, mantida em segredo por vinte anos, viajou muito mais longe ao ser revelada.

Aqueles que se mantinham neutros e afastados do mundo, por força de antigos tratados, sentiram-se traídos, como se alguém os tivesse passado para trás. Ao perceberem que uma reunião tão interessante estava acontecendo sem que fossem convidados, decidiram enviar seus próprios "convites".

Assim, um dos representantes caminhou em direção a uma porta na escuridão que parecia ligada ao nada. Ao abri-la, porém, um mar de estrelas sem fim surgiu do outro lado.

Enquanto isso, a outra representante observava o céu anuviado sobre um mar repleto de icebergs. Ao tocar o próprio reflexo na água, o mundo mudou de eixo. Era como se seu barco navegasse de cabeça para baixo, mas, ainda assim, ela não se molhava. Olhando em volta, notou que estava em um oceano comum, o que provava que o lugar anterior era o anormal. Ela então se levantou, fitando o céu, no ponto onde o planeta vermelho deveria estar.

Sem que o mundo percebesse, duas forças estranhas a ele acabavam de invadi-lo. Uma vinha de um lugar oculto que, paradoxalmente, se conectava com tudo: distante, mas perto; a poucos passos, mas inalcançável. A outra vinha de uma distância infinita, de um lugar tão bizarro, escuro e sombrio que só poderia ser descrito como o Impronunciável.Parte 8

O julgamento continuava. Conforme o tempo passava, o Chapeleiro, no teto, transformava estrelas em constelações. A Lebre o acompanhava, e ambos começaram a dançar. Mas, ignorando a loucura e aceitando-a como parte do normal, Alice escutava Susano se explicar. Ele sabia que havia chegado a sua vez de contar uma história. A senhorita Mystery se aproximava para ouvir, e todos novamente se calaram. O homem, sentindo a pressão dos olhares, então falou.

— Antes do incidente de vinte anos atrás, nosso país, que era contra as guerras e fechado para as outras “nações”, foi na verdade vítima de todos os demais. Durante as guerras de Lúcifer, sofremos ataques. Durante a caçada aos vampiros em Aincrad, nosso povo foi atacado pelos refugiados. Humanos de Gaia invadiram as terras sem lei, desconectadas dos demais, e escravizaram nossas crianças e youkais, vendendo-os no Terminal Cinza. E me digam, o que vocês fizeram? Diga-me, rainha, que já não é mais criança há muito tempo, por acaso levantou um dedo para nos proteger? — Susano não hesitou, falou sem qualquer ressalva ou medo. Se havia chegado a esse ponto, a única coisa que ele poderia fazer era agir como acreditava ser o certo.

Aquilo foi totalmente inesperado. Todos ficaram pasmos, sem acreditar. Ele estava realmente fazendo isso, logo agora, desafiando a divindade-criança diante de seus olhos?

— Isso é muita coragem. Tem certeza de que deveria falar com nossa rainha assim, deus da espada? — a gata risonha falou, dando voltas ao redor dele em sua forma espectral.

— Por que não deveria? Nenhuma de minhas palavras foi mentira. Se tivesse sido, agora mesmo minha cabeça teria sido cortada — ele continuou, desafiando a gata e olhando-a nos olhos.

Todos apenas encaravam, se perguntando: “O que aconteceu no reino de Sakura?”.

As mudanças foram maiores do que eles poderiam esperar. O pequeno reino havia se declarado armamentista e até dito que agora eram governados por um Astreus, mas nunca que algum deles esperasse que as mudanças fossem tão drásticas, não só nas leis e no funcionamento daquele reino, mas na alma e nos corações de seus habitantes. Vinte anos atrás, Nobunaga não passava de uma criança perdida, sem rumo e sem lar, um meio-deus caído, meio-youkai, que vagava entre os homens sem parecer ter um propósito. Mas, desde o início dessa reunião, eles facilmente perceberam a mudança.

— Foi como eu havia imaginado. A conexão de estar próximo a um Astreus é um fator que altera sua própria essência, algo que remolda todo o seu eu. Apenas por conviverem com o Astreus, eles ganharam uma nova chama em seus olhos, uma nova coragem — ela então lambia os dedos, sentindo uma fome voraz por mais conhecimento. — É bom que meu outro eu não deixe Dante escapar antes de estudá-lo bem. Eu não posso perder a chance de entender como isso funciona.

— Então, realmente não tem a intenção de responder à nossa estimada rainha, Susano? — Irene perguntou de seu lugar.

O clima estava pesado. Alice o encarava, e o exército de cartas cochichava. Ainda assim, mesmo com o leve zumbido dos sussurros, o silêncio era predominante. Sozinho, ele criava uma tensão tão fina que apenas uma palavra de Susano poderia cortá-la.

— Nosso reino estava para acabar, para morrer, mas ninguém, nenhum de nossos aliados, estendeu a mão para nos ajudar. Mas ela, nossa Shogun, apareceu e nos deu algo. Não simples ajuda, mas força para percebermos que apenas nós mesmos poderíamos nos salvar. Provou-nos como éramos fortes, e eu não irei largar essa força, nem mesmo perante a deusa do País das Maravilhas — ele falou, resoluto em sua resposta, sem intenção de mudar.

Naquele momento, Zero e Nobunaga entraram na sala batendo palmas, retornando para a reunião.

— Ei, Da Vince, eu quebrei esse seu brinquedo. É melhor consertar — disse Nobunaga, arrastando o corpo de Dani Scarlune.

— Ei! O que você estava pensando?! — Da Vince saiu de sua cadeira e correu até a porta do tribunal.

Gid olhava para Zero enquanto fazia carinho no boneco de Cezar. — Hum, ele não parece ter sofrido nem mesmo um mísero arranhão. Então, essa é a verdadeira força do Número 1?

Enquanto Gaap, toda suja de sangue, entrava, reparou em Carmilla presa e soltou uma pequena risada. Já Nobunaga caminhava lentamente, mostrando o frasco no braço: o item que havia alcançado.

— Entenda, rainha, ele não está a enganando. Como viu, a cabeça dele não voou. Ele não a vê como uma criança, e por isso se recusa a dar informações para alguém que poderia se tornar seu inimigo. Se a rainha for realmente alguém tão grandiosa e estimada quanto ele imagina, obviamente não irá puni-lo por isso. Afinal, júri de defesa, se não estou enganada, esta corte foi preparada e os reis, acusados sob o pretexto de serem "chatos", uma vez que consideravam Alice uma criança, não é? — ela falou sem hesitar, usando sua sabedoria sem qualquer receio. Nobunaga havia lutado uma batalha física, mas agora era uma envolvendo palavras; suas ações eram como movimentos em um tabuleiro.

— Está correta em sua afirmação — disse Samuel, sentando-se e pegando uma xícara de chá que um soldado de carta segurava para ele.

Kitty, a gata, sentiu-se pressionada e se afastou. A defesa de Nobunaga foi perfeita, mas se ela deixasse terminar assim, as coisas se complicariam para o seu lado. — Bom, mas mesmo que isso se aplique a ele, você ainda tem um lugar a ocupar em sua cadeira, Nobunaga. Afinal, você sabe esse segredo, assim como ele, e não vejo você tratando a senhorita Alice como alguém tão estimada.

De repente, a cadeira de Susano se abriu, deixando-o sair junto de Carmilla e permanecendo aberta para Nobunaga se sentar. Nobunaga encarava o lugar enquanto Susano a encarava. Ela sabia que, diferente dele, não sairia tão fácil caso se sentasse ali, mas ainda não entendia muito bem as regras daquela complexa "black box" com várias seções. Um passo errado, como "não sentar", poderia trazer um destino ainda pior.

— O que foi, Nobunaga? De repente ficou bem quieta... Por acaso o gato comeu a sua língua? — Kitty falou novamente, sorrindo. Alice e os jurados observavam Nobunaga, como se aguardassem sua decisão.

— Para começo de conversa, não há muito o que se fazer nessa decisão além de obedecer, não é? Se ela não se sentar, será morta, e caso minta, também. Então, por que essa indecisão? — disse Vodka, observando Nobunaga.

— Não é tão simples assim, eu acho — Gid respondeu, observando ainda mais atento, com um olhar de criança curiosa em seu rosto.

Paracelso e Gawain, que estavam no fundo, escutaram o rei e acharam curioso como o homem da terra "sem sobrenatural" parecia ter entendido facilmente a análise de especialista que Nobunaga estava fazendo. Teria ele falado aquilo por instinto ou...?

— “Ordem e Justiça: Impedem a criação de leis perfeitas e inquebráveis que governem a todos. Sempre haverá brechas, exceções e formas de subverter as regras criadas por um Shaper” — Paracelso falou como se estivesse recitando um livro, baixo o suficiente para que apenas eles no fundo ouvissem. — Em outras palavras, graças aos territórios dos nossos queridos criadores, nada é definitivo. Mesmo que as regras do País das Maravilhas de Alice pareçam perfeitas, deve existir uma forma de quebrá-las e escapar de seu julgamento. É exatamente nisso que Nobunaga está pensando agora — a cientista Scarlune sorria, analisando todo aquele embate silencioso como uma animada partida de xadrez.

— A única questão agora era se Nobunaga seria capaz de descobrir essa brecha e escapar de seu destino — completou Da Vince, que estava afastada, murmurando como se tivesse pensado a mesma coisa que Paracelso acabara de falar.

— Também tem a questão de saber: é possível usar essa brecha ou abertura mesmo após ter sido acorrentada, ou somente é possível escapar caso seja a pessoa que não está sendo julgada? É exatamente por isso que ela está hesitando tanto antes de agir. Um movimento errado poderia significar xeque-mate, e ela sabe bem disso — disse Vlad, o único que ainda estava preso.

— Então, o que você irá decidir, Nobunaga? O tempo para pensar acabou. Irá se sentar e ser julgada ou prefere agir contra as leis? — Kitty falou, ciente da situação difícil em que Nobunaga se encontrava.

Zero ajeitou seus óculos, empurrando-os para trás, quando de repente olhou para cima, como se estivesse vendo algo que ninguém mais via. O mais estranho é que, naquele momento, ele estava no fundo do tribunal, ou seja, era quase impossível que as pessoas reparassem naquela ação. No entanto, quatro pessoas notaram. Pessoas que deveriam estar prestando atenção na decisão de Nobunaga, mas que, sem qualquer causa aparente ou compreensível, decidiram olhar para trás, diretamente para Zero.

Uma dessas pessoas era Gaap, um rei-demônio conhecido por já ter lutado contra Zero e que, por isso, conhecia bem suas “peculiaridades”, tendo a mania de sempre ficar de olho nele. O outro era Nicklaus, a raposa velha que sempre desconfiava e analisava tudo; mesmo sabendo que a próxima parte daquele julgamento era de seu interesse, já que a possível identidade do Astreus de Sakura poderia ser revelada, ele optou por não tirar os olhos de Zero desde o minuto em que ele entrou. O terceiro a fazer o mesmo era completamente diferente: não tinha um sentido aguçado para as estranhezas de Zero como Gaap, nem era uma raposa preocupada que seu plano fosse por água abaixo por causa de um certo Número 1. Ele era somente um humano sem poder, vindo de uma terra que abominava o sobrenatural. Ali, no momento de adrenalina máxima, quando os espectadores se recusavam a piscar para acompanhar o julgamento, Gid virou seu rosto totalmente e ficou encarando apenas o Número 1. A última pessoa a notar foi a única que percebeu a ação de Gid: Paracelso. Ela não se virou para encarar Zero, mas sim para encarar Gid, a pessoa que, de repente, havia chamado muito a sua atenção.

— Está certo, então. Farei isso para podermos voltar logo para o foco da reunião — disse Nobunaga, jogando o frasco de volta para Da Vince, que o pegou poucos segundos antes de cair no chão.

— Pois bem, agora diga-nos: afinal, quem é a Criança da Destruição? — Kitty perguntou, resoluta da vitória.

“— A criança da Destruição é Kyouka. Kurokami Kyouka, uma garota nascida na província de Heian.”

Todos ficaram em choque. As palavras foram ditas, e nenhuma cabeça foi arrancada. Mas o choque não foi com o teor das palavras, nem com o fato de a cabeça não ter voado, e sim com a fonte delas. A pessoa que falara não estava ali até então. Sentada em um trono que antes não existia, agora estava uma garota de cabelos loiros e vestes vermelhas.

— Quem ousa atrapalhar o julgamento? — a gata Kitty falou, mas foi como se a voz dela a tivesse desagradado.

Tec.

Um estalar de dedos foi ouvido e, de repente, a boca da gata desapareceu.

— Vocês são realmente corajosos, fazendo uma reunião tão divertida sem a intenção de nos convidar.

Ninguém a havia visto chegar, nem o trono aparecer. Talvez por isso, demoraram para processar e perceber quem estava sentada na cadeira. Quer dizer, quase todos. Para ser exato, cinco pessoas perceberam: Zero e os demais que o observavam.

— Então, acabamos recebendo a visita da Imperadora do "Outro Lado" em pessoa? — disse Da Vince, começando a suar frio.

— Não foi somente Kallen quem resolveu aparecer. A União do Caos também quis dar uma "visitinha" — uma outra "Coisa" se aproximava: uma figura feminina com roupas extremamente reveladoras e olhos sombrios, que mais parecia querer imitar um humano.

Assim, naquele momento, naquela sala, as três maiores organizações do mundo se reuniram: a União da Rosacruz, a organização formada por todos os seres vivos do mundo mapeado e conhecido de Hortus Parvus, gerenciada pela Escola do Conhecimento — os Filósofos do Reino 77 —, tendo como sua principal representante Da Vince, o Legado Eterno; a Cabala da Cruz Dourada, a organização formada pelos “Seres” de outras dimensões ou camadas que existiam acima e abaixo do mundo, gerenciada pelos Coroados — aqueles que venceram nos jogos contra os Deuses —, tendo como sua representante Kallen Astrologos, a God Slayer; e a União do Caos, a organização formada pelos Seres que existiam além das estrelas e muito mais distante, gerenciada pelos sAiontg, tendo como sua principal representante Key, o Arauto da Verdade.

— Então, posso saber o motivo da visita? — disse Da Vince, em uma óbvia tentativa de amenizar o clima.

— Conversaremos sobre isso logo, assim que a reunião começar — Kallen, a jovem sentada em seu trono, falou. — Mas antes, vamos acabar com esse jogo para podermos continuar.

Todos ficaram quietos, sem saber como reagir, sentindo que, por algum motivo, o clima havia mudado. Zero, sorrindo, foi o único a se mover. Com um sorriso no rosto, caminhou até o boneco de Catherina enquanto assistia à garota com atenção, como se estivesse vendo um espetáculo verdadeiramente imperdível.

— Sinto muito em dizer isso, mas devo pedir que os de fora do caso se mantenham neutros até que o julgamento se encerre, por gentileza — Samuel falou, enquanto a gata tentava falar, até que Alice devolveu sua boca.

— Exato! Os de fora não devem se intrometer! — Kitty reclamou, verdadeiramente irritada.

— De fora? Não me faça rir. Quer me pegar com um jogo fácil assim? — Kallen falava, mas ninguém na plateia entendia. Era como se ela estivesse páginas à frente na história e, por isso, sem um contexto mais explicado, eles não eram capazes de compreender.

— Eu agora declaro que irei explicar as regras desta "black box" e deste julgamento! — ela falou, e por algum motivo, suas palavras pareciam ter um peso diferente, quase palpável. — Escutem, pois a resposta já foi entregue, e as regras deste jogo já foram explicadas. Dentro deste tribunal, estamos no jogo da verdade. Apenas a verdade pode ser dita, mas, para ser justo, apenas os jogadores que tenham uma noção dessa verdade podem participar, pois, se não, seria impossível para eles dizerem essa verdade. É por isso que parte dos convidados para a reunião virou boneco, e a outra não.

De repente, todos perceberam que ela tinha razão. Aquilo já havia até mesmo sido explicado para Samuel; não foi um segredo.

— Logo, o que importa não é se alguém é ou não "de fora", e sim se possui ou não o conhecimento. Isso é o que define se essa pessoa está apta para ser um jogador, como confirmado por Nobunaga, que estava "de fora" do tribunal, mas pôde falar à vontade e até foi convidada a se sentar como uma "acusada".

Novamente, ela estava certa. Kallen não havia sido a primeira "de fora" a participar do julgamento, mesmo não estando lá desde o início. Eles só não pensaram nessa opção, pois consideraram que ela contava como alguém "dentro" da black box. Mas, quando foi dito que "lá fora" estava sob as regras do julgamento, quem poderia garantir que lá fora não se podia mentir? Era como a caixa de Schrödinger: para eles, "de dentro", as afirmações "ela mentiu" e "ela falou a verdade" eram verdadeiras ao mesmo tempo. Logo, não dava para dizer que Nobunaga fazia parte do julgamento até entrar na sala do tribunal. Sendo assim, Kallen também estava apta para jogar, já que, após entrar, não virou um boneco, o que significava que ela sabia de algo relacionado à verdade que Alice queria saber, o que a tornava uma jogadora.

— Já a segunda regra desta "black box": não há como definir uma "Verdade" como objetivo a ser alcançado. Sendo assim, a regra só pode estar limitada a uma "verdade" escondida na pergunta de Alice. Simplificando, Alice não tem como saber o que ela quer saber, por isso é impossível que a resposta seja exata. Ela só quer uma resposta. Eu não preciso dizer que Astreus seria o Astreus da guerra por exemplo; apenas preciso dizer "Quem é a Criança da Destruição", exatamente como eu fiz ao revelar o nome humano da garota que supostamente virou o receptáculo.

Todos ficaram em choque. Tudo o que ela estava dizendo se encaixava. A resposta agora parecia óbvia. Quando eles começaram a pensar que só poderiam sair dali depois de dizer aquilo que não queriam contar? Eles estavam sendo influenciados por sua insegurança de guardar o próprio segredo. Mas, se Alice não sabia qual era esse segredo, ela não podia dizer se eles estavam contando tudo o que sabiam ou escondendo algo. A única coisa que não podiam fazer era mentir, mas nada foi dito sobre ocultar.

— E a terceira regra, como encerrar este jogo, é mais simples ainda, pois ela fez questão de nos dizer: mesmo que todos os participantes do tribunal tenham conhecimento ou parte da verdade que ela deseja obter, apenas três foram levados para as cadeiras de acusado. — Na hora em que Kallen esticou a mão, apontando para Alice, que começava a abaixar a cabeça, todos na sala começaram a entender exatamente onde ela queria chegar. — Ela fez apenas três perguntas e deseja apenas três verdades sobre essas perguntas. Contanto que elas sejam ditas, o tribunal pode se encerrar.

Era simplesmente inacreditável. Como se estivesse com a peça do cavalo em sua mão, Kallen moveu sua peça de novo e de novo, encurralando as peças de Alice até que estivesse com seu rei ao seu alcance.

Xeque-mate.

— O mago que atualmente ocupa o posto de Diretor em Babylon é um mago que surgiu após sua morte, causada por sua própria filha, Alaya.

Assim, após ela terminar de falar, o mundo piscou novamente. No vácuo do espaço, o planeta vermelho reapareceu. As pessoas na sala que haviam virado bonecas começaram a voltar ao seu estado normal, e novos domos de vidro começaram a se erguer para tampar os buracos causados nas batalhas que ali aconteceram.

Parte 9 

A tensão na sala, antes um nó cego e palpável, começava a se desatar. O eco do caos recente ainda pairava no ar, mas a confusão tomava o lugar do pânico. Rostos de convidados, antes contraídos em medo, agora se mostravam perdidos, tentando processar a cascata de eventos surreais. Sagan e Newton, pilares da razão agora abalados, olhavam em volta com expressões atônitas, como se tivessem sido arrancados de sua realidade e jogados em outra. Com uma calma forçada, Da Vinci já se movia, sua voz sendo um farol na névoa da incerteza, orientando seus assessores a verificarem o estado dos feridos e a formarem uma barreira de informações contra a horda de repórteres que tinha do lado de fora.

— É impossível acalmá-los, e nem adianta tentar convencer os repórteres! — dizia Sagan, a voz beirando a histeria, gesticulando para o tumulto. — A notícia sobre os Astreus já abalou o mundo. A declaração de guerra, somada ao desaparecimento de Marte, deve ter paralisado cada continente!

— Relaxe, Sagan. Eu sei como resolver. — Da Vinci pousou a mão no ombro da cientista. — Para ofuscar uma notícia bombástica, basta dar a eles uma maior ainda. Você só precisa anunciar que uma reunião de emergência entre as três uniões centrais será realizada. Agora.

Ela tentava injetar tranquilidade em suas palavras, mas uma microtensão em sua mandíbula a traía, revelando o peso monumental que carregava.

Seguindo a diretriz, os representantes começaram a se acomodar ao redor da grande mesa de reuniões. Mesmo confusos com o caos de Alice, eles tiveram que aceitar a falta de explicação ao verem as duas novas participantes que se sentariam à mesa para a Reunião, o silêncio preenchido pela expectativa do que viria. Com um gesto deliberado, Da Vinci retirou a cadeira da cabeceira, posicionando-a na lateral. Ela conhecia a peça que estava por vir. E, como previsto, Kallen Astrologos empurrou seu próprio trono com a ponta da bota. A cadeira ornamentada girou com uma precisão absurda, parando exatamente no centro vago. Com a agilidade de um predador, ela saltou sobre o encosto e sentou-se, dona do espaço.

— Bom, agora que todos estão presentes... — começou Da Vinci, a voz carregada com o peso de uma revelação iminente, mas foi silenciada antes que pudesse continuar.

— Permita-me poupar seu fôlego, anfitriã. — A voz de Kallen cortou o ar, não com arrogância, mas com um divertimento cristalino estampado no rosto. Ela reclinou-se em seu trono improvisado, e seus olhos varreram a sala como se lessem as peças de um tabuleiro. — Você planejou esta reunião sob o pretexto de discutir uma expedição para o Void. Mas, para justificar tal empreitada, precisava antes revelar a existência dos Astreus em nosso mundo, uma verdade que, como água represada, já não podia mais ser contida.

Todos os olhares se cravaram nela, tentando decifrar que tipo de reação ela e Key, a enigmática representante do Caos, teriam àquela exposição.

— É verdade, fiquei bem magoada de não terem me incluído nessa fofoca — disse Key, sua voz um murmúrio sedoso, enquanto observava a todos através de um monóculo improvisado que fez com a mão.

Kallen sorriu, ignorando a interrupção. — Sua intenção original, ao não nos contar, mas não se importar em compartilhar com os líderes deste "mundo conhecido", era óbvia. Você queria encontrar uma forma de controlar e utilizar os Avatares como armas. Um novo arsenal para fortalecer suas posições contra as "ameaças" que vocês percebem em nós: a Cabala e a União do Caos.

Um silêncio chocado e pesado desceu sobre a sala. Os líderes se entreolharam, a verdade nua e crua exposta com uma precisão cirúrgica. Key permaneceu imóvel, simplesmente baixando a mão e retirando-a do rosto. Mas então, um som baixo, um clique quase inaudível, escapou de sua garganta, como uma peça de relógio se encaixando no lugar. O gesto, tão sutil e aberrante, enviou um arrepio pela espinha de quem estava perto o suficiente para ouvir.

“Ela não está errada na afirmação”, pensou Da Vinci, escutando-a em silêncio. “Mas o motivo principal para não convidar Kallen é óbvio: eu sabia que ela transformaria tudo em um jogo aberto e justo. E eu temia, e ainda temo, a completa imprevisibilidade de Key.”

— Você descobriu algo no Void, não estou correta? — Kallen continuou, jogando uma peça de xadrez de marfim para o alto e pegando-a com perfeição.

Da Vinci não demonstrou surpresa, apenas uma resignação cansada. A genialidade de Kallen era, de fato, um evento da natureza.

— Sim — admitiu ela, a voz baixa, mas ressoando com a gravidade da confissão. — Você está correta.

Ela fez um gesto, e o holograma no centro da sala mudou. A imagem agora exibia uma selva escura, trêmula e distorcida, dominada por uma árvore colossal cujas raízes pareciam sangrar pura sombra líquida.

— Por séculos, o Void tem sido nosso maior enigma e nosso maior cemitério. Deuses, heróis, caçadores... todos que ousaram desbravar seus mistérios foram devorados, retornando como monstros, como pragas, ou simplesmente desaparecendo. Nosso próprio planeta guarda um território vasto e desconhecido; setenta por cento de sua superfície é um abismo que nos repele. Mas, recentemente, algo mudou. A árvore que servia como barreira para a rota mais segura até o Void, um cálculo teórico feito há anos pela Aliança dos Filósofos, repentinamente desapareceu após o incidente da Torre Dates. Nossos drones confirmaram: a barreira psíquica ao redor da árvore desapareceu junto com a parte superior de seu tronco. E pela primeira vez na história, uma porta para o Void se abriu.

A atenção na sala era absoluta. Lu Bu inclinou-se para a frente, o tédio completamente evaporado de sua expressão. Argus soltou uma lenta baforada de fumaça, seus olhos ancestrais brilhando com uma nova luz.

— Nossas primeiras sondas fizeram uma descoberta que reescreveu tudo o que sabíamos. — A imagem holográfica focou em algo semi-enterrado sob as raízes da árvore. Era um braço. Um braço decepado, envolto em uma armadura negra e dourada, que ainda pulsava com um poder residual tão intenso que fazia os sensores enlouquecerem. — O braço de Lúcifer. Intacto, desde sua lendária batalha com Arthur.

— E este seria o braço que você guarda dentro desse jarro, estou certa? — perguntou Kallen, e pela primeira vez, um brilho de genuína surpresa cintilou em seus olhos.

— Sim — confirmou Da Vinci. — E foi por isso que planejei esta reunião. A descoberta do braço e a abertura do Void mudaram completamente o objetivo. Não se trata mais de usar os Astreus. Trata-se de algo infinitamente maior. Trata-se de explorar o último grande mistério. E para isso... — ela olhou para cada líder na sala, seu olhar detendo-se em cada um deles — ...eu preciso de todas as forças deste mundo reunidas em prol de uma única causa.

O silêncio foi quebrado por uma gargalhada. Pura, cristalina e cheia de um deleite avassalador. Kallen se levantou, não em seu trono, mas sobre a própria mesa de obsidiana, seus olhos brilhando com a alegria de uma criança que acaba de receber o quebra-cabeça mais complexo e fascinante do universo.

— MARAVILHOSO! — Sua voz ecoou, não como a de uma rainha, mas como a de uma exploradora diante do mapa do tesouro final. — Por eras, a humanidade rastejou sobre uma fração de seu próprio planeta, com medo da escuridão em seu quintal! Nós mapeamos as estrelas, teorizamos sobre outras dimensões, tocamos os limites da realidade, mas o nosso próprio mundo permaneceu um enigma. Um jogo que éramos incapazes de resolver!

Ela abriu os braços, um gesto que parecia abraçar a sala, o planeta, o universo inteiro.

— Mas essa era de ignorância acabou! A porta se abriu! O desafio foi lançado! E o verdadeiro jogo, enfim, começou! Chegou a hora de a humanidade parar de rastejar e ousar conhecer a si mesma! Chegou a hora de desvendar os segredos que nosso próprio planeta esconde!

Seu carisma era uma força da natureza, uma onda que varreu a sala e contagiou a todos. A cobiça nos olhos de Vodka, a curiosidade nos de Paracelso, a ambição crua nos de Nobunaga... todos foram unificados por aquele chamado irresistível à glória e ao desconhecido.

— Assim, eu declaro! — A voz de Kallen tornou-se um decreto, soando como se fosse a própria voz do destino. — Daqui a um ano, a maior expedição da história começará!

A nova era havia sido declarada. Não por uma rainha em seu trono, mas por uma jogadora diante do maior e mais perigoso tabuleiro que já existiu.

Parte 10 

As palavras de Kallen Astrologos não foram um mero anúncio; foram a primeira fissura em uma represa que continha um oceano de destinos. Naquela sala em Marte, o futuro, antes um rio de curso previsível, fragmentou-se em mil afluentes de caos e oportunidade. Acordos foram forjados na urgência daquele momento, promessas sussurradas nas sombras da desconfiança mútua. Cada líder, ao deixar o planeta vermelho, carregava não apenas a memória do que fora revelado, mas o peso do mundo que eles próprios iriam, inevitavelmente, moldar. A contagem regressiva para o ano profético havia começado.



E enquanto as naves cortavam o vácuo, partindo em direções opostas como sementes de uma nova era, os fios do destino começavam a ser tecidos, um por um.

A bordo da nau capitânia da frota dracônica, Argus, o rei de escamas de bronze, parou diante da grande janela de observação. Seus olhos, antigos como as montanhas, fixaram-se em um ponto solitário na superfície de Marte. Lá, no topo de um arranha-céu avariado pela batalha recente, uma silhueta feminina o encarava de volta. Mesmo àquela distância colossal, os olhares se cruzaram — o dele, uma tempestade de dor e confirmação; o dela, pertencente a Kali, era um abismo de tristeza profunda e resignada.

— Então, o que ele disse era verdade... — A voz de Argus era um trovão contido, um tremor que vibrou pelo convés. — Você realmente está com eles, Kali.

A nave acelerou, deixando o planeta para trás. A ordem do rei foi clara e gélida como o espaço profundo.

— Contatem Wise. Assim que chegarmos, tenho um relatório urgente sobre a Princesa da Ruína.



No coração da União da Rosa-Cruz, o silêncio do laboratório de Da Vinci era quebrado apenas pelo zumbido suave das máquinas. Ela observava o braço de Lúcifer, agora seguro em um container de contenção, sua mente uma teia complexa de cálculos e probabilidades. A aliança seria mantida, ou a ganância levaria os reinos a uma corrida suicida e autodestrutiva para o Void? Sua análise foi interrompida por um detalhe ínfimo, uma anomalia que seu olhar treinado, inacreditavelmente, não havia notado antes: uma marca minúscula de agulha no braço ancestral, uma picada recente que não deveria estar ali.

— Para ter pedido que eu ficasse, devo entender que o experimento ainda precisa ser aperfeiçoado. — A voz de Violet, a autônoma, soou atrás dela, sua presença quase fantasmagórica.

— Agradeço por ter ficado, Violet — respondeu Da Vinci, sem se virar. Ela a conduziu para uma sala adjacente, onde a penumbra era cortada pela luz de uma incubadora de alta tecnologia. Lá dentro, flutuando em líquido amniótico sintético, estava o corpo adormecido de Dani Scarlune, inúmeros fios e tubos conectados à sua pele pálida. — Precisamos aperfeiçoá-la.

Naquele exato momento, a porta do laboratório se abriu com um estrondo. Paracelso irrompeu pela entrada, o rosto uma máscara de indignação.

— Da Vinci! Que história é essa de "Projeto D. Scarlune"?! Pode me dizer o que motivou a Rosa-Cruz a construir um autômato a partir de um Scarlune?! E ainda mais um do…



Longe dali, o caos da reconstrução de Marte era o disfarce perfeito. No dormitório de Kali, Irene LaBlanc fazia seu relatório.

— Peço desculpas. Minha brincadeira com Alice não rendeu as informações que esperava.

Niklaus riu, um som perigosamente divertido.

— Quem disse que não foi útil, Irene? Agora sabemos o nome da "Criança da Destruição". Sabemos a identidade do receptáculo do Astreus e testemunhamos em primeira mão a força dos Generais Divinos de Sakura. Quem disse que isso não é uma informação de valor inestimável?

Irene compreendeu, e um sorriso cúmplice iluminou seu rosto.

— Adoro sua linha de raciocínio.

O momento foi quebrado quando um portal de água rodopiante se abriu no meio do quarto. Dele emergiu Ceto, a urgência estampada em sua face.

— Mestre Niklaus! Há um imprevisto em Threshold! Preciso informar algo urgente!



Em Gaia, a noite caía sobre a capital de aço e vidro. Duas freiras de hábito imaculado acompanhavam Gid Lovecraft até seus aposentos.

— A troca por Helena deve ser providenciada imediatamente — dizia ele, a voz firme e sem emoção. Ao entrar em seu escritório panorâmico, Neitan, o Caçador, já o aguardava nas sombras.

— Os Argonautas não tiveram sucesso completo — relatou Neitan.

Gid soltou uma risada, um som seco e desprovido de humor. Ele caminhou até sua janela, dispensando as freiras com um gesto, e observou as luzes da cidade. Com um movimento rápido e casual, esmagou um mosquito contra o vidro blindado.

— Tem certeza? — Ele se virou, os olhos brilhando com um fanatismo frio. — Eu acho que o sucesso foi maior do que o esperado. Agora, a história dos "Heróis da Humanidade" foi semeada. E nossos guerreiros ganharam a experiência de lutar contra os mais fortes do mundo.

— Nunca consigo decifrar o que se passa em sua cabeça, Lorde Lovecraft — admitiu Neitan.

Gid abriu os braços, como se abraçasse seu próprio reflexo no horizonte urbano.

— É óbvio. A única coisa em que estou sempre pensando é Gaia.



Nos salões ancestrais dos gigantes, a voz de Galantine ecoava como o ranger de placas tectônicas.

— As palavras de Susano abriram meus olhos! Nós, que um dia abalamos o mundo com nossos passos, agora vivemos de auxílio, dispersos, desaparecendo! Chega! Se não tomarmos nosso poder e nossas terras de volta, quem o fará por nós?!

Ao longe, sob um céu de nuvens pesadas, um exército de gigantes começava a se mover, seus passos fazendo a terra tremer. Pareciam esperar por aquele dia há muito tempo.



Em Sakura, Nobunaga e Susano se ajoelharam diante de seu Shogun. A figura, uma jovem de cabelos brancos como a neve e chifres vermelhos como sangue, observava-os com uma expressão sonolenta, mas um sorriso sutil brincava em seus lábios.

— Meus irmãos já estão agindo... Logo, chegará a hora de começar os meus preparativos também.

— Também preciso relatar sobre as informações que conseguimos da Horizon e do garoto em que a senhorita estava de olho, "Dante Scarlune" — disse Nobunaga, a voz formal e respeitosa, irreconhecível da garota impetuosa da reunião. — De fato, tudo indica que ele realmente se tornou o avatar de um Astreus com consciência. E, como o senhor Susano disse, não é de nenhum Astreus conhecido.

— Isso é realmente interessante... O que será que esse tal Dante planeja fazer com o mundo? — murmurou a Shogun, limpando os olhos como se acabasse de acordar.

— A senhorita acha que precisa mesmo ficar de olho nele? Até onde fiquei sabendo, ele não tem poderes nem autoridade divina como seus outros irmãos — interveio Susano, levantando um pouco o olhar.

No instante em que o fez, ele congelou. O olhar incinerante que o encarava de volta o fez baixar a cabeça imediatamente, um suor frio percorrendo sua espinha.

— Não seja tolo. — A voz dela estava desperta agora, afiada e irritada. Ela se virou para a janela, contemplando um jardim de cerejeiras. — Não importa se ele demonstrou sua autoridade ou não. Eu senti. Ele é um Astreus, e todos chegaram a essa conclusão. Se isso é um fato, não importa se ele pode usar seu poder agora ou se ainda não tem controle. O que importa é que ele é uma das peças mais perigosas do tabuleiro. E o fato de não termos a menor ideia de qual é sua autoridade e seu domínio só o torna ainda mais perigoso. Lembre-se, Susano: um único peão não vigiado pode facilmente causar o xeque-mate de uma partida.



As ondas de mudança se espalhavam, cada uma um prelúdio para a tempestade que viria.

A cena final se dissolve em um lugar fora da autoridade dos reinos conhecidos. Uma ilha flutuante, suspensa no céu crepuscular, onde o próprio ar vibrava com poder puro. Figuras belas e jovens, com cabelos de todas as cores do cosmos, asas de éter e penas brotando de suas costas e cinturas, e aros de luz pairando sobre suas cabeças, observavam a grande arena no centro.

Lá, duas figuras se encaravam.

Uma, sentada em um pequeno trono que parecia ter sido arrastado para ali de forma casual, era Kallen Astrologos.

A outra, imponente em um trono colossal esculpido em pedra estelar, como uma montanha viva, era o Rei de Todos os Serafins, Karlaios.

— Posso saber o que traz a Matadora de Deuses aos meus domínios? — A voz do rei transbordava de éter e poder, cada sílaba um decreto.

— Bom, eu descobri que um certo Ryu Scarlune, o exilado, era filho de um Scarlune com uma Serafim. Por isso, vim em busca de um pouco mais de clareza sobre ele, já que ouvi dizer que, antes de partir em sua jornada, ele passou um tempo frequentando esta ilha. — Kallen puxou uma xícara de chá de um espaço pessoal que apenas ela parecia ver, o vapor do café quente subindo em espirais. — Esse engraçadinho resolveu invadir o Olimpo e está causando uma grande comoção por lá. Como encarregada de gerenciar a situação, pensei em passar aqui para descobrir um pouco mais sobre ele antes de ir resolver as coisas. Sabe, descobrir que tipo de jogo ele gosta de jogar... cartas ou dados. — Seu tom era quase cômico, como se estivesse brincando.

— Isso pode até ser verdade. Mas diga-me, pequena formiga humana, que obrigação teríamos nós em compartilhar qualquer informação com o macaco que decidiu invadir nosso reino e nos confrontar? — O desprezo nos olhos do rei era absoluto, e ao seu redor, todos os outros serafins começaram a irradiar seu poder, o ar tornando-se pesado e elétrico.

Kallen levantou-se de forma extravagante, e os serafins imediatamente a cercaram, formando um círculo de poder avassalador. O rei também se ergueu de seu trono.

— Acho que não temos outra escolha, meu caro rei. — Um anel de éter dourado materializou-se em seu braço, e na palma de sua mão, ela criou uma peça de xadrez, um cavalo vermelho com detalhes dourados. — Para decidir esse impasse... acho que vamos ter que jogar.

Fim.

Entrelinhas: 

As cortinas de mais um show se fecharam, e o palco, antes um pandemônio de revelações e declarações, agora se esvaziava lentamente. O eco das promessas e ameaças ainda pairava no ar, denso e vibrante como o ozônio após uma tempestade. Um silêncio expectante, aquele que precede uma grande virada ou um cataclismo inevitável. Mas, para mim, era apenas o fim de mais um capítulo delicioso.

"O que acharam desta história, meus queridos leitores? Gostaram do espetáculo?"

A figura de Alpha agora era visível, de volta àquele quarto aveludado que misturava o conforto com o sombrio. Ele já não estava sentado, mas em pé, servindo-se de uma taça de vinho tinto que parecia tão escuro quanto a noite. Um sorriso divertido, quase cúmplice, brincava em seus lábios.

Confesso, a reunião em Marte superou todas as minhas expectativas. Que performance! Kallen Astrologos, aquela jogadora inveterada, transformou uma cúpula de conspiração e poderio militar em um festival global de exploração. Ah, a ironia! Pobre Da Vinci, seus planos de usar os Avatares de Astreus como baterias particulares para o "mundo conhecido" foram por água abaixo.

E agora, o mundo tem um ano. Um ano inteiro. Trezentos e sessenta e cinco dias de preparativos, de treinamento, de alianças sendo forjadas nas sombras e traições sendo planejadas à luz do dia. Um ano para que todos os reinos, todos os heróis e todos os vilões se preparem para a maior aventura de suas vidas. É o tipo de calmaria antes da tempestade que eu simplesmente adoro. Tantas possibilidades, tantos caminhos que podemos seguir...

Ele levou a taça aos lábios, os olhos fixos em você, como se pudesse ler seus pensamentos através das palavras que está lendo.

O que me diz? Para onde direcionamos nosso olhar agora?

Deveríamos dar um salto no tempo e espiar os preparativos para a grandiosa expedição ao Vazio? Tentar vislumbrar as maravilhas e os horrores indizíveis que se escondem no coração de nosso próprio mundo?

Ou talvez seja melhor voltarmos para o nosso protagonista favorito? Descobrir o que Dante Scarlune anda fazendo durante esse tempo?

Ou... quem sabe... — Alpha fez uma pausa, girando o vinho na taça. — ...não seguimos a trilha de um certo braço roubado? Apenas para ver quem eram os misteriosos ladrões e qual antigo poder eles pretendem despertar.

Ele deu um gole, o sorriso se alargando.

Tantas histórias, tantos fios soltos nesta tapeçaria magnífica.

Então, me diga... qual será a história que iremos vislumbrar agora?


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