The Fall of the Stars : Capítulo 4 - A Garota
- AngelDark

 - há 6 dias
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Volume 7: Contra-Ataque
Parte 1
27 de agosto de 20018, 00:30 da Noite - Ilha Flutuante Apocalypse (Teto do Dormitório dos Corvos)
No alojamento do Circle of Ravens, o silêncio era uma anomalia, um intruso indesejado. Durante o dia, a casa pulsava com o caos frenético de um campo de batalha: gritos de guerra, explosões que faziam as paredes tremerem, discussões acaloradas sobre o último pedaço de pão ou quem havia quebrado a janela da sala de treino. Mas à noite, uma quietude profunda, quase sobrenatural, tomava conta, como se a própria casa prendesse a respiração. O único som era o zumbido distante da cidade flutuante, um murmúrio mecânico que pairava no ar como o eco de um sonho esquecido. O contraste era tão absoluto que o silêncio parecia gritar, mais opressivo que a algazarra diurna.
Anna Lighthart, com sua alma inquieta, durante as noites escapava para o único refúgio onde a paz era garantida: o teto.
Chamar o lugar de "dormitório" era um eufemismo. A base dos Corvos era uma mansão decadente, que o grupo havia comprado com sacrifícios financeiros que ninguém mencionava em detalhes. Estrategicamente posicionada perto da entrada da academia, mas isolada o suficiente para garantir autonomia, a casa exalava uma aura de mistério, com suas janelas tortas e corredores que rangiam. O teto, com suas áreas planas e desgastadas pelo tempo, tornava-se à noite o observatório particular de Anna. Ali, com os fones de ouvido desligados, os cabelos dançando ao sabor do vento gélido, ela se entregava ao espetáculo das estrelas. A lua, pálida e cheia, banhava a ilha flutuante com uma luz prateada, transformando o céu num oceano de tranquilidade que contrastava com o hospício que ela chamava de lar.
Naquela noite, enquanto seus olhos vagavam pelo firmamento, traçando constelações imaginárias, um movimento furtivo no pátio abaixo quebrou sua contemplação. Cinco figuras, envoltas em capas negras que pareciam engolir a luz, moviam-se em uma formação tão precisa que lembrava um ritual. Cada uma carregava uma maleta de prata, cujas superfícies polidas capturavam o brilho da lua, faiscando como faróis em meio à escuridão. Eram sombras vivas, espectros que deslizavam indo em direção ao campus com uma determinação silenciosa.
Anna inclinou-se ligeiramente, o coração acelerando sem motivo aparente. Com as aulas agora obrigatórias, a vida de um caçador na academia tornara-se um quebra-cabeça logístico. Muitos acumulavam turnos extras para liberar um dia da semana, outros usavam os fins de semana onde não tinham aula, e havia aqueles que reservavam as missões para os horários menos convencionais. Mas aquele grupo escolheu a hora mais improvável: a calada da noite, quando até os ventos pareciam sussurrar que estavam com sono.
Ela os observou, fascinada, hipnotizada pelo mistério que emanava deles. Talvez fosse a sincronia quase sobrenatural de seus passos, ou a maneira como as capas esvoaçantes se fundiam às sombras, tornando-os quase indistintos do cenário. Ou talvez fossem as maletas, reluzindo como estrelas caídas, pontos de luz prateada que pareciam deslocados, vagando pela terra em vez de pertencerem ao céu.
No instante em que seus olhos piscaram, uma ventania súbita e cortante varreu o pátio, levantando poeira e folhas secas em um redemoinho fantasmagórico. As capas do grupo chicotearam violentamente, e uma das figuras, como se estivesse atraída pelo olhar de Anna, virou o rosto em sua direção. O capuz caiu para trás, revelando o que havia por baixo.
Anna prendeu a respiração, o ar preso em seus pulmões como se o tempo tivesse parado. Era uma garota, frágil e etérea, com uma beleza tão perfeita que parecia esculpida em porcelana. Seus cabelos longos, de um branco quase prateado, dançavam ao vento, refletindo a luz da lua como fios de cristal líquido. O rosto, pálido e delicado, era emoldurado por traços que pareciam desenhados por um artista. Mas o que roubava o fôlego de Anna não era a perfeição. Eram os olhos — vermelhos, vívidos, brilhando como brasas na escuridão, carregados de uma intensidade que parecia perfurar a alma. E, mais perturbador ainda, as manchas de sangue. Espalhadas pelo rosto, pescoço e gola de sua roupa, elas formavam um padrão macabro, como se a garota tivesse emergido de um pesadelo. O contraste entre sua beleza angelical e o sangue seco era tão dissonante que fazia o coração de Anna disparar, dividido entre fascínio e um arrepio.
Naquele instante, os olhos de Anna e da garota se cruzaram através da distância. O mundo ao redor dissolveu-se — o vento, o zumbido da cidade, o próprio pulsar do tempo. Havia apenas aquele olhar, uma ponte silenciosa entre a observadora no telhado e a caçadora manchada de sangue no chão.
A quietude então foi estilhaçada por uma voz rouca vinda do grupo encapuzado.
— Ei, Kirino. Vai ficar aí até quando?
A garota, Kirino, não desviou o olhar imediatamente. Um sorriso enigmático, quase imperceptível, curvou seus lábios, um gesto que parecia ao mesmo tempo uma provocação e uma confissão. Então, com uma lentidão deliberada, ela puxou o capuz de volta, mergulhando o rosto na escuridão. Sem uma palavra, virou-se e seguiu os outros, os passos silenciosos como os de um espectro.
Anna permaneceu petrificada, os olhos fixos no ponto onde Kirino desapareceu, indo para dentro dos portões da academia. Lentamente, ela levou a mão ao peito, onde o coração batia acelerado. Ela sentia algum sentimento difícil de nomear, uma mistura de fascínio e melancolia, um arrepio que parecia percorrer sua espinha. Era como se o olhar de brasas e o sorriso da boneca manchada de vermelho, tivesse deixado uma marca invisível, um fio vermelho que agora as conectava através da escuridão e do segredo.
A noite avançou, e a lua, indiferente, cedeu lugar às primeiras luzes do amanhecer.
Parte 2
Com o primeiro raio de sol cortando as cortinas puídas da mansão dos Corvos, a agitação voltou a reinar, como se a luz da manhã tivesse dado um chute na porta do silêncio noturno. A quietude sagrada da noite, tão rara e quase opressiva, foi estilhaçada não por um despertador, mas por um grito que já era a marca registrada da casa, um galo de briga mais eficaz que qualquer relógio.
— EU NÃO ACREDITO QUE VOCÊ FEZ ISSO DE NOVO, SEU IDIOTA! — A voz de Yuki, carregada de eletricidade, ecoou pelos corredores, fazendo as paredes de madeira rangerem.
Anna Lighthart, ainda enroscada nas cobertas, abriu os olhos com um suspiro resignado. O som era tão familiar que ela já sabia exatamente onde encontrar o epicentro da confusão. Levantou-se, ignorando o frio do piso sob os pés descalços, e espiou pela porta do quarto. Lá estava: Yuki, com os cabelos crepitando faíscas azuis, encurralando Dante contra a parede, que exibia um misto de culpa e desdém. Era uma cena tão rotineira que Anna nem se deu ao trabalho de reagir. Bocejando, seguiu direto para o banheiro, desviando de um vaso que milagrosamente sobrevivera à última briga.
No banheiro, o ritual matinal já estava em pleno andamento. Ludmilla e Vivian, de frente para o espelho da pia, escovavam os dentes em uma sincronia. Anna pegou sua escova e se juntou a elas, os três pares de olhos se cruzando no reflexo em um silêncio confortável, quebrado apenas pelo som das cerdas contra os dentes.
Ludmilla cuspiu na pia, enxaguando a boca com precisão. — Parece que a Mirai deu um jeito de entrar no quarto do Dante de novo — disse, com um tom que misturava diversão e exasperação. — Essa manhã, quando a Yuki foi procurar por ela, a encontrou lá, toda esparramada na cama dele.
Vivian, cuspindo em seguida, riu com a boca ainda cheia de espuma. — Eu não entendo por que ela insiste nessas brincadeiras. Provocar o Dante é divertido, claro, mas não fica meio... repetitivo? — Ela jogou água no rosto, esfregando as bochechas com vigor.
As duas saíram do banheiro, deixando Anna sozinha com seus pensamentos. Ela sabia a verdade, algo que nem Ludmilla nem Vivian pareciam perceber. Mirian não estava apenas "brincando". Como agente do misterioso Trono de Deus, sua missão era se aproximar de Dante, extrair informações, talvez até manipular suas decisões. Anna, no entanto, não se preocupava tanto. Dante, por trás de toda a arrogância e infantilidade, não era tão ingênuo assim. Ou pelo menos era o que ela queria acreditar.
Seu olhar desviou-se para a janela do banheiro, que dava para o corredor. Lá fora, Dante ainda enfrentava as broncas de Yuki, a cabeça baixa, mas com um brilho distante nos olhos, como se sua mente estivesse em outro lugar. De repente, uma sensação estranha invadiu Anna — um calor súbito nas bochechas, seguido por um pensamento que não era dela: "...acho que acabei tocando em algo macio quando virei de lado."
O pensamento, carregado de uma excitação confusa, vinha diretamente de Dante. Sobre Mirian. Era um vazamento mental, um efeito colateral da conexão estranha que Anna compartilhava com ele, uma habilidade que às vezes parecia mais uma maldição. A irritação ferveu em seu peito como uma chaleira esquecida no fogo. Sem pensar duas vezes, ela abriu o armarinho do banheiro, pegou uma barra de sabão e, com a precisão de um atirador, arremessou-a pela janela. A barra voou em um arco perfeito e acertou Dante em cheio na testa, arrancando um gemido de surpresa.
— Retiro o que eu disse — murmurou Anna, os dentes cerrados. — Esse idiota vai cair.
— MAS O QUE FOI ISSO AGORA?! — gritou Dante, esfregando a testa, onde uma marca vermelha começava a se formar.
— O QUE VOCÊ FEZ COM ELA, SEU PERVERTIDO?! — berrou Yuki, a aura elétrica crepitando ainda mais, como se estivesse pronta para fritá-lo.
Anna saiu do banheiro com a calma de quem acabou de cumprir uma missão sagrada, ignorando os dois e seguindo para a cozinha. Dante, com toda sua pose, não fazia ideia de que seus pensamentos e sentimentos às vezes vazavam para ela, como uma rádio mal sintonizada. E Anna não tinha a menor intenção de explicar.
A cozinha do Circle of Ravens era o coração pulsante da casa, um caos organizado onde o cheiro de café fresco, panquecas douradas e mortadela recém-fatiada se misturava ao som de pratos tilintando e vozes competindo pelo domínio. Kintoki, com sua jaqueta de couro descolada, estava sentado de forma impossível, o corpo inclinado para trás, a cadeira equilibrada em duas pernas contra a parede, formando um “Y” perfeito, os pés ainda tocando o chão como se desafiassem a gravidade. No canto oposto, Asuna e Charlotte, as novatas do grupo, pareciam dois filhotes de passarinho tentando entender as regras de uma selva particularmente barulhenta.
— Se quiser, eu posso fazer o café da manhã — ofereceu Charlotte, com um tom hesitante, mas genuíno, tentando encontrar seu lugar na bagunça.
— ESQUECE ISSO E FICA SENTADA AÍ! — rosnou Kai, virando panquecas na frigideira com uma agressividade que parecia mais adequada para um duelo do que para cozinhar. — Não vai ser fazendo comida que você vai ganhar minha aprovação, sua idiota!
Ao lado dele, Sophi coava o café com a calma de um monge, os movimentos precisos contrastando com o caos ao redor. — Do jeito dele — traduziu ela, sem tirar os olhos do coador —, ele está dizendo que não precisa se preocupar. É só sentar e aproveitar.
Charlotte esboçou um sorriso, meio forçado, enquanto Asuna, ainda agarrada ao seu braço como se Kai fosse o próprio bicho-papão, parecia à beira de um colapso nervoso.
— Compramos pão e mortadela! — anunciou Kurokawa, entrando pela porta da cozinha com um sorriso triunfal, seguida por Luck e Beatrice, que carregavam sacolas de compras abarrotadas.
— EI, SEUS MERDAS! NÃO ACHAM QUE COMPRARAM COISA DEMAIS?! — gritou Kai, empilhando uma torre de panquecas na mesa com a precisão de um engenheiro furioso.
— Foram só umas coisas que estavam faltando, relaxa — retrucou Luck, jogando uma sacola sobre o balcão. — Não precisa berrar como se fosse o fim do mundo.
— TÁ, MAS ESQUECERAM QUE O DINHEIRO AINDA TÁ CURTO DEPOIS DE COMPRAR ESSA CASA, MALDITOS?! — Kai apontou a espátula para Luck, como se fosse uma arma. — DEVERÍAMOS MODERAR ATÉ FAZERMOS ALGUMAS MISSÕES!
— Dinheiro é uma preocupação mundana — declarou Kintoki, ajustando a jaqueta com um ar de superioridade. — Alguém grandioso como eu não precisa se prender a esses detalhes.
— VOCÊ CALA A BOCA! — berrou Kai, a espátula agora apontada para Kintoki.
— Está tudo bem — interrompeu Beatrice, sua voz calma cortando a discussão como uma lâmina de seda. Ela organizava as compras com uma eficiência, colocando potes e pacotes nos armários. — A Mio, a Hyori e a Leona conseguiram uma boa taxa com as aulas extras e liberaram a manhã para algumas missões. Estamos finalmente encaixando os horários. Não vamos passar por nenhum sufoco.
Anna, que já havia vasculhado a sacola de Luck como uma fuinha faminta, pegou um pacote de rosquinhas açucaradas. Sentou-se à mesa, ignorando o olhar fulminante de Kai, e deu uma mordida exagerada, o açúcar brilhando nos lábios. — Grita tanto pela manhã... até parece uma babá reclamando — murmurou, a voz abafada pela comida.
Kai, com sua audição sobrenatural para insultos, girou nos calcanhares, as veias saltando na testa. — TÁ CHAMANDO QUEM DE BABÁ, MALDITA?! E QUE IDEIA É ESSA DE COMER DOCES LOGO CEDO? DEIXA ESSA MERDA PRA DEPOIS E COME ALGO DECENTE!
Anna, sem se abalar, deu outra mordida na rosquinha, os olhos brilhando com desafio. — Viu só? — disse, de boca cheia, apontando para ele com o doce.
— DANTE, SEU IDIOTA! VEM CÁ E COLOCA JUÍZO NESSA MALDITA ANTES QUE EU A EXPLODA! — gritou Kai, já à beira de um colapso.
Dante, que acabara de entrar na cozinha com o rosto parcialmente enfaixado (cortesia do sabão de Anna), deixou-se cair na cadeira ao lado de Kintoki, o corpo exaurido como se tivesse enfrentado um exército. — Desista, Kai — disse, com um suspiro dramático. — Separar a Anna dessas rosquinhas é mais difícil que matar um Rei Demônio.
A risada de Kintoki ecoou pela cozinha, misturando-se ao tilintar de pratos e ao chiado do café no fogão. Aos poucos, os outros membros do Circle foram se juntando à mesa, cada um trazendo sua própria energia caótica. Asuna, ainda colada a Charlotte, começou a relaxar ao ver a pilha de panquecas sendo devorada. Sophi serviu o café com um sorriso tranquilo, enquanto Beatrice distribuía fatias de mortadela com a precisão de uma general. Até Yuki, que voltou ao ambiente com os cabelos ainda faiscando, acabou cedendo e pegando uma panqueca, resmungando algo sobre “pervertidos idiotas”.
O café da manhã dos Corvos era um espetáculo de caos e afeto, uma sinfonia desajeitada de gritos, provocações e risadas. O cheiro de café quente e pão fresco preenchia o ar, enquanto o sol da manhã entrava pelas janelas, iluminando rostos cansados, mas estranhamente contentes.
27 de agosto de 2018, 08:30 da Manhã - Ilha Flutuante Apocalypse (Caminho para a Academia)
O caos matinal dos Corvos dissipou-se com a rapidez de uma tempestade de verão, deixando para trás apenas o eco de gritos e o cheiro persistente de café e panquecas. Após o café da manhã, o grupo se dispersou em uma diáspora desorganizada, tão característica quanto o próprio pandemônio da casa. Alguns, saíram correndo para não perder a primeira aula. Outros, caminhavam com a calma insolente de quem não se importava com atrasos, enquanto um terceiro grupo — formado por aqueles que, como sempre, inventavam algo para fazer — sumia em direções incertas, provavelmente em busca de problemas ou diversão. Anna, por sua vez, acabou no grupo mais tranquilo, caminhando ao lado de Ludmilla, Beatrice e Vivian, os passos sincronizados pelo hábito de quem já compartilhava o mesmo caminho há meses.
A academia fervilhava com a energia elétrica do Jogo das Coroas, um evento que transformava o campus em um tabuleiro vivo de estratégias e rivalidades. Por todos os lados, Anna via grupos de alunos reunidos em círculos apertados, cochichando planos como conspiradores em um romance de intriga. Alianças recém-formadas desfilavam em bandos protetores, os membros trocando olhares desconfiados com qualquer um que passasse perto demais. O ar parecia carregado, não apenas de Ether, mas de ambição, tensão e a promessa de glória ou derrota.
— Faltam só quatro dias para a nova lista dos Top 10 ser publicada — murmurou Vivian, os olhos perdidos no horizonte enquanto chutava uma pedra solta no caminho. — Fico me perguntando que mudanças teremos dessa vez.
Ludmilla, com um sorriso malicioso curvando os lábios, lançou um olhar de lado. — Você quer saber se o Kai finalmente vai entrar na lista, não é? — provocou, a voz carregada de um tom que misturava diversão e desafio.
Vivian, com a elegância de quem já estava acostumada à provocação, ergueu o queixo e continuou andando, ignorando-a com uma graça ensaiada. — E você, Bea? Acha que consegue um lugar entre os dez?
Beatrice, sempre prática, deu de ombros, os cabelos castanhos balançando ao vento matinal. — Andei fazendo alguns desafios para testar meu potencial, mas é difícil prever — respondeu, o tom neutro, como se estivesse discutindo o clima. — O ranking não é só força bruta. Depende de estratégia, timing... e um pouco de sorte. — Ela virou-se para Anna, os olhos brilhando com curiosidade. — E o Dante? Ele também está caçando coroas?
Anna assentiu, a imagem de Dante voltando à mente com uma clareza quase irritante: ele, no dia anterior, retornando de um "duelo de intervalo" coberto de poeira e arranhões, mas com um sorriso tão convencido que parecia iluminar o campus. — Sim — confirmou ela, a voz tingida de um leve sarcasmo. — Ele está apostando alto nos desafios de ‘vale tudo’. Se perde, entrega todas as coroas e a posição no ranking. Se ganha, fica com tudo do oponente.
— Que radical — exclamou Vivian, os olhos arregalados, uma mistura de admiração e incredulidade.
— É o jeito dele de treinar — acrescentou Anna, com um meio sorriso.
— Então acho que sou eu quem ficou para trás — suspirou Ludmilla, chutando uma folha seca que voou pelo caminho. — Até o Daemon está se matando na caça às coroas, e eu aqui, dividida entre treinos e... — Ela hesitou, o tom ficando mais pesado. — A investigação sobre a Mirian.
A menção ao nome da garota desaparecida caiu como uma sombra sobre o grupo, apagando momentaneamente o brilho da manhã. Ludmilla, normalmente tão vibrante, apertou a mandíbula, os olhos fixos no chão. — Os outros membros da Osdra estão na busca a todo vapor — disse, a voz tensa, como se cada palavra doesse. — Assim que tiverem uma pista sólida, vão me avisar. A Leona e eu já estamos prontas para o resgate, se for preciso.
O peso daquelas palavras trouxe à tona uma memória vívida na mente de Anna. Ela voltou a àquele dia caótico em Babylon. Quando Ela, Dante, Mio e Beatrice, voltaram de Threshold acompanhados de Tenma e Hyori, todos em busca de pistas sobre o Astreus da Vida. Foi quando cruzaram com Ludmilla, com um objetivo próprio: encontrar o Astreus da Morte. Anna ainda podia ver o choque no rosto de Dante ao ouvir que Ludmilla havia de fato encontrado o avatar da morte que se auto proclamava “Nero”. Para Dante, o nome era como uma provocação do destino, um eco de algo que ele carregava como uma ferida aberta. Ele quis partir atrás de Nero na mesma hora, os punhos cerrados, a aura crepitando de raiva e determinação. Mas a descrição dos poderes de Nero o fez recuar. Ele sabia que ainda não estava pronto. Precisava treinar.
Naquela mesma época, Ludmilla mencionou sobre Mirian, a garota que se envolveu no incidente no trem onde nero havia aparecido, e que junto a ela no final de tudo desapareceu, Ludmilla jurou a si mesma que a encontraria, custasse o que custasse. As poucas pistas que tinham apontavam para um rastro de Ether estranho, uma fusão profana de essência demoníaca e humana, possivelmente ligada ao reino sombrio de Umbra. Mas invadir Umbra, como estavam agora, era uma missão suicida. E mesmo que conseguissem chegar lá, resgatar Mirian seria como tentar arrancar uma estrela do céu com as mãos nuas. O grupo, dividido entre seus próprios objetivos e a busca por Mirian, seguia em frente, carregando o peso daquele mistério.
— É estranho ver a academia assim — murmurou Beatrice, arrancando Anna de seus pensamentos. Seu olhar varria o campus, onde grupos de alunos se moviam como peças em um jogo de xadrez. — Tantos bandos, tantas alianças... Antes, isso era raro. Agora, parece que o Jogo das Coroas transformou todo mundo em estrategistas ou paranoicos.
— Ou os dois — completou Vivian, com um riso leve, tentando dissipar a tensão.
Elas chegaram à sala de aula, onde a energia vibrante do campus parecia convergir em um único ponto. Ryunosuke, o professor, já as esperava, de pé junto à mesa, a postura mais ereta que o habitual.
— Bom dia — disse ele, a voz clara e firme, silenciando o burburinho da sala. — Como sou o primeiro a dar aula hoje, não preciso me preocupar com vocês exaustos de outros professores. Então, sem moleza. O tópico de hoje: Cristais de Ether e Relíquias.
Ele começou, projetando hologramas que dançavam no ar. Explicou como o Ether não era apenas a fonte de poder dos caçadores, mas a espinha dorsal da economia global. Cristais Naturais, minerados em dungeons traiçoeiras, eram vendidos a preços exorbitantes, enquanto Cristais Sintéticos, criados por Magos habilidosos, alimentavam um mercado de feitiços prontos, como poções em frascos brilhantes.
— Mas o verdadeiro tesouro para qualquer caçador — continuou Ryunosuke, sua voz ganhando um tom quase reverente — são as Relíquias Fantasmas. — Ele projetou imagens de artefatos magníficos: uma espada que pulsava com luz azulada, um anel que parecia sussurrar segredos, uma armadura que refletia o ambiente como um espelho vivo. — Esses artefatos podem mudar o rumo de uma batalha... ou de uma vida.
— Professor! — A voz de Shimura Daiki cortou o ar, cheia de uma esperança quase infantil. Ele ergueu a mão, os olhos brilhando. — Existem relíquias que podem ajudar até pessoas sem poderes, a realizar missões?
Ryunosuke sorriu. — Não é impossível, Daiki. Existem relíquias com habilidades tão variadas que poderiam fazer um novato enfrentar um dragão. Mas lembre-se: uma arma poderosa nas mãos de alguém despreparado é como uma lâmina cega. O verdadeiro poder está no usuário que sabe extrair seu potencial.
— E como transformar um item comum numa relíquia? — perguntou Chuya, recostado na cadeira, um cigarro apagado pendurado nos lábios. — Tipo, como eu faço pra esse meu cigarro se tornar infinito ou se acender sozinho quando coloco na boca?
A sala explodiu em risadas, e até Ryunosuke deixou escapar um riso abafado.
— Receio que você está sonhando alto demais, Chuya — respondeu, o Professor. — Apenas Magos podem imbuir habilidades em itens para criar relíquias de forma deliberada. Como um Gifted, sua única chance seria infundir seu Ether nesse cigarro por anos, torcendo por uma Alteração Espontânea. Mas sem garantias. Ele poderia acabar ganhando pernas e fugindo de você.
A sala riu novamente, o clima leve contrastando com a seriedade do tema. Anna, atenta, absorvia cada palavra, a mente girando com possibilidades. A menção às relíquias trouxe à tona pensamentos sobre o Jogo das Coroas e os desafios que esperavam o Circle. Mas sua concentração foi interrompida quando Ryunosuke projetou uma nova imagem: doze armas magníficas, cada uma brilhando com uma aura única, como se fossem fragmentos de um mito.
— E então, temos as lendas — anunciou ele, a voz carregada de gravidade. — As Doze Armas dos Meses, o legado de Excalibur, forjadas pelo nosso próprio diretor, Aleister Crowley. Não são Armas do Apocalipse, mas, para um usuário compatível, seu potencial é quase ilimitado.
A aula mergulhou em uma imersão profunda no mundo dos artefatos que moldavam não apenas batalhas, mas a própria sociedade. Enquanto Ryunosuke explicava, Anna trocou olhares com Beatrice, que tomava notas com uma concentração feroz. Ludmilla, ao seu lado, tamborilava os dedos na carteira, o pensamento claramente dividido entre a aula e a busca por Mirian. Vivian, por sua vez, parecia perdida em devaneios.
E assim o tempo passava.
Parte 3
Após a aula de Ryunosuke, a Sala -13 se dispersou como uma nuvem de fumaça ao vento, cada aluno seguindo seu próprio caminho no intervalo. A praça central da academia, um oásis de gramados bem aparados e árvores frondosas, pulsava com a energia frenética do Jogo das Coroas. Anna caminhou em direção ao núcleo de uma pequena reunião. Sob a sombra de um carvalho antigo, Dante estava recostado, a pose relaxada contrastando com a intensidade nos olhos. Perto dele, Luck, Kurokawa, Beatrice e Charlotte ocupavam um banco de pedra, imersos em uma conversa que parecia carregada de peso. Anna aproximou-se em silêncio, os passos leves sobre o cascalho, e ficou à margem, ouvindo.
— ...e esse é o cerne do problema — dizia Charlotte, a voz trêmula de frustração, mas firme em sua convicção. — O sistema está quebrado, podre até a raiz. O Jogo das Coroas deveria ser uma competição justa, uma chance para os melhores se destacarem, mas virou um campo de batalha onde os fortes esmagam os fracos sem consequências. E os Juízes do Crepúsculo, que deveriam ser os guardiões da imparcialidade, são cúmplices dessa injustiça.
Seus olhos brilhavam com uma mistura de raiva e determinação, e Anna sentiu o peso de cada palavra. Charlotte não estava apenas apontando falhas; ela carregava o fardo de uma visão maior, de um desejo de reformar um sistema que esmagava os mais vulneráveis sob o pretexto de mérito.
— Certo, mas qual é o seu plano, exatamente? — perguntou Luck, girando uma moeda entre os dedos com uma destreza quase hipnótica, o tom leve mascarando a curiosidade genuína.
Charlotte respirou fundo, como se estivesse reunindo coragem para verbalizar o impossível. — Eu ainda não tenho um plano detalhado, passo a passo — admitiu, a honestidade crua em sua voz. — Mas sei onde começar. A reforma precisa vir do topo: os Juízes do Crepúsculo. Eles deveriam garantir que as regras sejam justas, mas estão corrompidos, cheios de membros que favorecem alianças específicas, que fecham os olhos para abusos. Precisamos desafiar o líder deles, Azuki, e substituí-la. Só assim poderemos reescrever as regras e devolver a equidade ao jogo.
— E quem assumiria o lugar dele? — perguntou Kurokawa, os olhos escuros fixos em Charlotte, analisando-a como se tentasse medir sua determinação.
— Inicialmente, eu — respondeu Charlotte, sem hesitar, a voz carregada de uma certeza que parecia desafiar o próprio destino. — Pelo menos até reorganizar o sistema por dentro, garantir que as regras sejam aplicadas com justiça. O Jogo das Coroas, por mais brutal que seja, nos dá essa chance. É uma oportunidade de mudar tudo, de proteger aqueles que estão sendo esmagados.
Um silêncio pesado caiu sobre o grupo, o peso de suas palavras ecoando na brisa matinal. Beatrice, sempre a voz da razão, inclinou-se para a frente, os braços cruzados. — Não será fácil — disse, a voz calma, mas cortante como uma lâmina. — Azuki é intocável, não porque seja invencível, mas porque tem Emilia Bellasartes como cão de guarda. Ela é a oitava no ranking dos Top 10, dois degraus acima do Dante. E não é só força bruta; ela é astuta, implacável. Subestimá-la seria um erro fatal.
Beatrice fez uma pausa, conectando os pontos com precisão cirúrgica. — E não espere convencê-la a mudar de lado. Azuki está namorando o irmão mais velho dela, Elijah, o novo líder do Comitê de Disciplina. Se desafiarmos os Juízes, estaremos declarando guerra ao Comitê inteiro.
Charlotte, no entanto, não recuou. Seus punhos cerraram-se, e sua voz ganhou um tom de fogo contido. — Eu sei dos riscos. Sei que é uma guerra quase impossível. Mas não podemos ficar parados enquanto grupos exploram brechas nas regras para aterrorizar os mais fracos. Kagami não foi o primeiro, e não será o último, se não agirmos. Os Juízes veem esses abusos e viram as costas, porque estão comprados, porque pertencem às mesmas alianças que lucram com essa injustiça. Se não garantirmos que as regras sejam respeitadas, que tipo de caçadores seremos? Que tipo de mundo estamos construindo?
A paixão em sua voz era como uma chama, aquecendo o grupo mesmo sob o peso de suas palavras. Anna sentiu um arrepio, não de medo, mas de admiração. Charlotte não queria apenas vencer; ela queria justiça, um ideal que parecia maior que a própria academia.
Dante, que até então apenas ouvia, recostado contra a árvore com sua habitual pose de desdém, deu um passo à frente. Um sorriso confiante, quase desafiador, curvou seus lábios. — Eu concordo — disse, a voz firme, carregada de uma energia que parecia incendiar o ar. — Não há por que hesitar. Por esta semana, Charlotte, nós seguimos você. É sua chance de ouro. Bote seu plano em ação. E, se for preciso enfrentar Emilia, pode deixar comigo. Só nos mostre o caminho.
Charlotte piscou, surpresa, como se não esperasse apoio tão imediato. O sorriso de Dante, tão cheio de confiança e lealdade inabalável, pareceu dissolver as dúvidas que pesavam em seus ombros. Anna viu um brilho de alívio nos olhos dela, como se, por um momento, o fardo de sua missão tivesse se tornado mais leve.
Foi então que o ar sibilou, um som agudo e letal cortando a manhã.
Uma bola de beisebol, envolta em uma aura crepitante de Ether, voou em alta velocidade na direção de Dante, com a clara intenção de matar. O ângulo era traiçoeiro, e o tempo que Dante levou para virar a cabeça tornou a esquiva completa impossível. Ele saltou para o lado, instinto puro, tentando ao menos evitar um golpe fatal. Mas a bola, desafiando as leis da física, redirecionou-se no ar, agora mirando diretamente sua cabeça.
— DANTE! — gritou Anna.
Uma explosão de poeira e energia engoliu a praça, o impacto reverberando pelo chão. O grupo, em choque, tentou enxergar através da cortina de fumaça, os corações disparados. Quando a poeira assentou, a cena era quase surreal. Shiranui Tenma, com sua presença imponente, estava lá, segurando Dante contra seu peito com um braço protetor, como se ele fosse uma criança assustada. No outro, sua mão, coberta por uma manopla de metal negro com garras afiadas, segurava a bola de beisebol, que zumbia com o Ether contido. Com um aperto leve, quase desdenhoso, ela esmagou a bola, reduzindo-a a fragmentos inofensivos que caíram como cinzas.
Das sombras entre as árvores, um grupo de atacantes emergiu, rindo com uma arrogância que fez o sangue de Anna ferver. Eram cinco, todos com uniformes impecáveis, mas com olhares que destilavam malícia.
— Não precisava disso, Tenma — disse Dante, a voz abafada contra o peito generoso de Shiranui, o rosto vermelho de constrangimento. Ele tentou se soltar, mas ela o segurava com firmeza. — Se queriam minha posição no ranking, era só me desafiar como homens.
— Não somos idiotas — retrucou o líder do grupo, um garoto de cabelos loiros e um sorriso cortante. — Você é o décimo do Top 10. Jamais o venceríamos em um duelo justo. O próprio Aleister Crowley confirmou sua força. Mas... — Ele fez uma pausa, o sorriso se alargando. — Se você morrer em um “acidente”, alguém precisa ocupar seu lugar, não é?
— Vou denunciar isso ao Comitê de Disciplina — disse Charlotte, a voz gélida, os olhos faiscando com uma raiva contida.
O líder deu de ombros, ainda rindo. — Fique à vontade. Mesmo que nos expulsem, nosso líder entrará no ranking. E, com a autoridade dele, pode nos trazer de volta com um estalar de dedos. É melhor não ficarem tão distraídos, Corvos. — Eles se viraram, as risadas ecoando enquanto desapareciam entre as árvores.
Dante estalou o pescoço enquanto observava o logo Rule Breakers, escrito na roupa de seus atacantes, o rosto ainda vermelho, mas agora de irritação. — Que patético — murmurou, os olhos estreitados. — Acham mesmo que um ataquezinho desses poderia me matar?
Shiranui, no entanto, não compartilhava de seu desdém. Ela o encarou, a expressão séria, notando um filete de sangue escorrendo de seu nariz, um sinal de que o ataque, por pouco, não fora tão inofensivo quanto ele queria acreditar. — Fique quieto — disse ela, a voz baixa, mas firme, enquanto se aproximava para inspecionar o ferimento.
Dante, vendo o rosto dela se aproximar, com o decote proeminente preenchendo sua visão periférica, entrou em pânico. — E-ei, calma aí! — gaguejou, tentando recuar, mas a árvore atrás dele bloqueava qualquer fuga. Shiranui, alheia ao seu desconforto, continuou avançando, o rosto a centímetros do dele, a preocupação genuína em seus olhos contrastando com a tensão cômica da cena.
Os outros Corvos observavam, alguns com sorrisos mal disfarçados, outros com sobrancelhas erguidas, claramente curiosos para ver onde aquela interação levaria. Luck, em particular, parecia a segundos de tirar uma foto para chantagear Dante depois.
E Anna, conectada à mente de Dante, sentiu tudo. O pânico, o rubor, a onda de excitação confusa, as imagens absurdas que passaram pela cabeça dele — nenhuma delas particularmente inocente. A irritação explodiu dentro dela como uma granada. Esse idiota!, pensou, os dentes cerrados.
No instante em que o rosto de Shiranui estava perigosamente próximo do de Dante, Anna agiu. Com um salto que desafiava sua própria estatura, ela lançou um chute voador com precisão letal, mirando o estômago de Dante. Shiranui, com reflexos de uma predadora, esquivou-se com graça, girando para o lado como uma dançarina. Dante, no entanto, não teve a mesma sorte.
O chute acertou em cheio, arrancando um gemido gutural dele. Seus olhos se arregalaram, o ar fugiu de seus pulmões, e ele deslizou pela árvore até o chão, inconsciente, a expressão congelada em uma mistura de choque e dor.
O grupo ficou em silêncio, os olhares fixos em Anna, que ajeitava a roupa com uma calma fingida, como se nada tivesse acontecido. A pergunta não dita pairava no ar: Ciúmes? Mas Anna, sabendo que explicar o vazamento mental de Dante seria inútil — e talvez até mais constrangedor —, apenas bufou, cruzou os braços e deu as costas, os cabelos esvoaçantes como uma cortina de indignação.
Os Corvos se reuniram em torno do corpo inerte de Dante, uma mistura de choque, diversão e resignação no rosto de cada um.
— Será que dessa vez ele morreu de verdade? — perguntou Luck, cutucando Dante com a ponta do pé, um sorriso travesso nos lábios.
— Duvido — respondeu Kurokawa, agachando-se para checar o pulso dele. — Esse idiota é resistente demais. Mas, nossa, Anna, que chute! Você já pensou em entrar para o time de futebol?
— Não foi ciúmes! — exclamou Anna, girando nos calcanhares, o rosto vermelho de frustração. — Ele só... ele só mereceu, tá bom?!
Charlotte, ainda processando a cena, deixou escapar uma risada abafada, que logo contagiou os demais.
Parte 4
27 de agosto de 2018, Entre 10:40 e 14:30 - Ilha Flutuante Apocalypse (Babylon)
Enquanto a maioria dos alunos de Babylon se movia sob o sol escaldante, imersa em um frenesi de treinos, duelos e aulas, uma outra academia pulsava, invisível aos olhos comuns, oculta nas dobras da luz. O Jogo das Coroas havia, de fato, arrastado para a superfície muitos dos males que antes se escondiam, dando-lhes a desculpa da “competição” para justificar sua crueldade. Mas os predadores mais perigosos não eram os que exibiam suas garras no centro da arena, rugindo por atenção. Eram os que deslizavam pelas sombras, onde as máscaras de normalidade usadas durante o dia eram descartadas, revelando intenções tão escuras quanto a noite sem lua. Suas ações, livres de represálias, eram sussurros de veneno que envenenavam o coração da academia.
Naquele dia, entre o burburinho do meio-dia e o crepúsculo que se aproximava, alguém que caminhava por essas sombras decidiu que era hora de organizar o caos. Um maestro invisível, movendo peças em um tabuleiro que poucos percebiam, deu o primeiro passo para tecer uma teia de intrigas que mudaria o destino de Babylon.
Cartas, seladas com um monograma simples, “R.C.”, gravado, foram entregues com uma precisão quase sobrenatural. Através de um mensageiro conhecido pelo codinome de Hermes, quando ele trabalhava, nem som de passos, nem sombra de quem as deixou eram vistos. Para aqueles a quem se destinavam, elas simplesmente apareceram — sobre uma escrivaninha em um dormitório trancado, o trinco intocado; dentro de um livro fechado, as páginas marcadas como por um espectro; ao lado de um prato de comida intocado, o garfo ainda reluzente; enfiada no bolso de um casaco pendurado, como se o tecido tivesse conspirado para guardá-la. Cada envelope, idêntico, carregava a mesma instrução, escrita em uma caligrafia elegante e fria: "Abra apenas quando a noite cair."
Ninguém se surpreendeu, afinal, Hermes era o mensageiro mais conhecido por toda Babylon. Diferente dos juízes, ele sim poderia ser visto como completamente imparcial, acima do conceito de bem e mal. Era usado até mesmo pelo colégio para enviar mensagens ou notificações a caçadores que estavam em missões em outros continentes, com uma habilidade excepcional. Seja para o bem ou para o mal, ninguém jamais era capaz de contestar suas habilidades ou viver sem ele, o deixando na favorável posição de neutralidade e dando a capacidade de aproveitar o melhor de ambos os lados.
E, finalmente, quando as primeiras sombras da noite se alongaram pelo campus, esticando-se como dedos famintos sobre os gramados e corredores, os envelopes foram abertos. O papel, de um branco quase luminescente, parecia brilhar na penumbra, e as palavras, traçadas em tinta negra, eram um sussurro de poder que seduzia os descontentes:
"Para os corajosos que não se curvam aos Juízes ou ao Comitê de Disciplina,Suas ações, embora admiráveis, são frágeis como ondas quebrando contra uma muralha inabalável. Agindo separadamente, vocês são apenas ecos no vazio, incapazes de alcançar o resultado que desejam. Mas juntos... juntos, podemos nos tornar o maremoto que derrubará essa muralha de uma vez por todas. A escolha é sua. Sigam as instruções. O caminho será revelado."
A carta caiu nas mãos de Santos, um Juiz do crepúsculo, um jovem de olhos fundos e expressão endurecida, como se a derrota tivesse esculpido sulcos permanentes em seu rosto. Derrotado e humilhado junto com Kagami, sua sede de vingança era um veneno que corria em suas veias, quente e corrosivo. Ele segurou o envelope com dedos trêmulos, o monograma “R.C.” parecendo pulsar sob a luz fraca de uma lamparina. Em uma sala de reuniões esquecida, escondida nos confins do campus, onde as paredes mofadas exalavam o cheiro de segredos antigos, ele reuniu os restos despedaçados da antiga aliança de Kagami. Órfãos do poder, eles se sentaram em cadeiras rangentes, trocando olhares de desconfiança e esperança. Sob a orientação da carta, um novo grupo nasceu das cinzas, batizado com um nome que ecoava sua determinação: Os Remanescentes. Eles juraram, em sussurros que pareciam selados por sangue, mover-se apenas pelas sombras, longe dos olhos do Comitê.
Em outro canto da academia, Mavros, o líder dos Rule Breakers, leu a mesma carta em seu esconderijo, um galpão abandonado onde o cheiro de ferrugem e tinta velha impregnava o ar. Seus lábios se curvaram em um riso seco, os olhos brilhando com uma arrogância que desafiava o próprio destino. Seu grupo, um bando de vândalos que dançava na linha da expulsão, acreditava piamente que, uma vez que ele conquistasse um lugar entre os dez melhores, poderia trazê-los de volta com um estalar de dedos. A promessa de mais poder, de uma aliança organizada sob a batuta de um mestre invisível, era como um licor doce em sua garganta. Ele guardou a carta no bolso, o papel crepitando contra o tecido, e partiu para o encontro marcado.
As cartas de R.C. não eram apenas mensagens; eram um mapa, traçado com precisão cirúrgica, indicando pontos de encontro escondidos, horários exatos, até mesmo nomes sussurrados para novos líderes. E assim, guiados por essa mão fantasma, Santos, o recém-formado líder dos Remanescentes, encontrou Mavros, cuja energia impetuosa parecia incendiar o ar ao seu redor. Outros líderes de grupos sombrios, cada um movido por suas próprias ambições e ressentimentos, também foram convocados, atraídos pelo chamado de R.C. como mariposas para uma chama.
O encontro aconteceu em um porão úmido e mal iluminado, escondido sob uma das torres abandonadas da academia. O ar era denso, saturado pelo cheiro de mofo e pelo peso da desconfiança. Velas tremeluziam sobre caixotes improvisados, lançando sombras que dançavam nas paredes como espectros de conspirações passadas. Egos se chocavam, vozes sussurradas transformaram-se em discussões acaloradas, cada líder relutante em ceder terreno. Mas as indicações de R.C. eram irrefutáveis, as palavras da carta ecoando em suas mentes como um feitiço. Ele não apenas os reuniu, mas lhes deu um presente: um plano. Um plano meticuloso, traçado com a precisão de um mestre estrategista, para eliminar o obstáculo que bloqueava as ambições de todos eles.
O alvo era claro: Dante Scarlune. O décimo do ranking. O plano de R.C. detalhava cada passo, cada fraqueza a ser explorada, cada momento de distração a ser aproveitado. A união foi selada ali, sob a luz trêmula das velas, com apertos de mão que pareciam pactos com o próprio destino. Uma nova e sombria super organização nasceu. Seu único objetivo era claro: derrubar Dante, custasse o que custasse.
Mas as cartas de R.C. não se limitavam aos conspiradores do porão. Outros envelopes, idênticos na forma, mas distintos em seu conteúdo, haviam sido entregues pelo campus, aparecendo em lugares improváveis — sob um travesseiro em um quarto silencioso, dentro de um estojo de armas esquecido, até mesmo preso entre as páginas de um grimório empoeirado na biblioteca. Seus destinatários, figuras que se moviam tanto na luz quanto nas sombras, abriram os envelopes na calada da noite, os olhos percorrendo as palavras, pulsando com segredos. O que continham, ninguém sabia, exceto aqueles que as receberam. Eram ordens, promessas, provocações? Ninguém ousava especular. Mas cada carta plantava uma semente, uma peça em um jogo muito maior, orquestrado por uma mente que ninguém podia nomear.
Em um canto distante da academia, no silêncio de um quarto impecavelmente arrumado, Layla Azael quebrou o selo de cera com o monograma “R.C.”. Seus olhos, percorreram as palavras com uma calma gélida. Diferente das cartas entregues aos rebeldes, esta não falava de alianças ou muralhas a serem derrubadas. Era uma ordem singular e inquestionável, escrita em uma caligrafia que parecia dançar entre a elegância e a ameaça. Cada linha era um fio de uma teia maior, um convite a um papel que apenas ela podia desempenhar.
Ao terminar de ler, Layla não demonstrou surpresa, nem hesitação. Com um movimento lento, quase cerimonioso, ela levou o papel até a chama de uma vela solitária que tremeluzia em sua mesa. O fogo lambeu o papel, curvando-o, escurecendo-o, até que se dissolveu em cinzas que caíram como neve negra. O conteúdo da carta, por enquanto, permaneceria um segredo, guardado por trás de um sorriso enigmático e olhos que viam muito além do que demonstravam. Ela se levantou, o vestido roçando o chão com um sussurro, e caminhou até a janela, olhando para o campus envolto em sombras.
Enquanto as estrelas brilhavam friamente no céu de Babylon, a academia dormia, alheia ao fato de que as cartas de R.C. haviam acendido um fogo que não podia ser apagado.
Parte 5
27 de agosto de 2018, 14:30 da Tarde - Ilha Flutuante Apocalypse (Jardim Inferior Esquerdo)
Após a confusão no pátio, Anna se afastou dos Corvos, o coração pesado com um nó de irritação e constrangimento que parecia sufocá-la. A academia, com sua energia frenética e vozes incessantes, tornava-se insuportável. Ela precisava de silêncio, de um refúgio onde pudesse desvendar o tumulto de sua própria alma. Seus pés, guiados por um instinto que ela não questionava, a levaram ao Jardim Inferior Esquerdo, um canto esquecido do campus cercado por árvores onde, no dia anterior, o campo de baseball que ficava no meio da floresta, serviu de campo de batalha, para um Desafio da coroa por um lugar na sala de aula. Hoje, porém, a clareira estava vazia, banhada por uma luz suave e dourada que filtrava-se pelas copas das árvores, tingindo o chão de sombras dançantes. O ar carregava um leve perfume de terra úmida e flores silvestres, um contraste melancólico com o caos que Anna deixara para trás. Sem hesitar, ela decidiu: mataria a aula seguinte.
Sentou-se sob a sombra de um carvalho antigo, suas raízes expostas como veias de uma terra viva. Encostada no tronco, Anna tentou desvendar o emaranhado de emoções que a consumia. Por que a cena com Dante e Shiranui a afetara tanto? A conexão mental entre eles, aquele vazamento indesejado de pensamentos e sentimentos, era uma constante em sua vida. No início, ela aprendera a ignorar, a tratar os fragmentos da mente de Dante como ruído de fundo. Mas, nos últimos dias, algo mudara. Cada pensamento dele que invadia sua mente parecia mais íntimo, mais invasivo, como se tocasse uma ferida que ela nem sabia que existia. Era uma violação que se tornara pessoal, e o peso dessa intimidade não desejada a deixava inquieta, perdida em um labirinto de sentimentos que ela não conseguia nomear.
Frustrada, Anna fechou os olhos, deixando o mundo ao redor dissolver-se. O som das folhas balançando ao vento, o farfalhar da grama sob a brisa, o canto distante de um pássaro — tudo se misturava em uma sinfonia suave que acalmava o caos em sua mente. Por um momento, ela se permitiu existir apenas ali, na quietude do jardim, onde o tempo parecia suspenso, preso em um crepúsculo eterno.
Um ronco baixo em sua barriga quebrou o encanto. A fome, sempre uma intrusa, fez-se presente. Com um suspiro, Anna enfiou a mão na pequena sacola de lona que carregava e puxou um pão de melão, seu doce favorito. Colocou os fones de ouvido, e uma melodia suave, com notas de piano que pareciam pingar como chuva, envolveu-a, abafando o mundo exterior. Ela mordeu o pão, o sabor doce e macio preenchendo seus sentidos, e por um instante, nada mais existiu — apenas a música, o doce e a paz fugaz do momento.
Absorta em seu refúgio particular, Anna não percebeu a figura que se aproximava. Com passos lentos, quase sobrenaturalmente silenciosos, a garota parou diante dela, uma sombra delicada contra a luz da tarde. Foi um arrepio súbito, como um fio de gelo percorrendo sua espinha, que fez Anna erguer os olhos.
Seus olhares se encontraram, e o mundo pareceu parar. Kirino. A garota-boneca da noite anterior, com sua beleza etérea e perturbadora, estava ali, a poucos passos de distância. Seus cabelos prateados brilhavam sob a luz do sol, como fios de luar capturados, e seus olhos vermelhos, vívidos como brasas, pareciam perfurar a alma de Anna. As manchas de sangue seco, espalhadas por seu rosto pálido, pescoço e gola da roupa, criavam um contraste macabro com sua delicadeza, como se ela fosse uma pintura gótica viva, uma mistura de anjo e demônio.
Anna travou, os fones de ouvido transformando a melodia em um ruído branco distante. Ela viu os lábios de Kirino se moverem, formando palavras que não alcançavam seus ouvidos, e suas mãos delicadas traçarem gestos suaves, como se tentassem comunicar algo além do som. Antes que Anna pudesse reagir, Kirino se aproximou, os rostos a milímetros de distância, o ar entre elas carregado de uma tensão quase elétrica. Com um movimento fluido, quase íntimo, Kirino retirou os fones de Anna, os dedos roçando levemente sua orelha.
— Eu perguntei se posso comer um pouco também — repetiu Kirino, a voz suave como o toque de uma pena, mas com um timbre que parecia ecoar diretamente na alma.
Anna, ainda atordoada, piscou, o coração disparado. Sem pensar, enfiou a mão na sacola para pegar outro pão de melão, mas antes que pudesse oferecê-lo, Kirino, com uma ousadia desconcertante, pegou o que Anna segurava. Deu uma mordida pequena, quase cerimoniosa, e, sem hesitar, sentou-se ao lado dela na grama, os ombros quase se tocando. O gesto era tão natural, tão desprovido de cerimônia, que Anna ficou sem palavras, os olhos fixos na garota.
Kirino devorou o pão em tempo recorde, os movimentos precisos, mas graciosos, como os de uma criatura de outro mundo. Ela virou-se para Anna, os olhos vermelhos brilhando com uma curiosidade infantil. — Outro? — perguntou, a voz carregada de uma inocência que contrastava com sua aparência manchada de sangue.
Sem hesitar, Anna entregou-lhe mais um pão, os dedos tremendo levemente. Elas ficaram ali, sentadas sob o carvalho, se encarando em um silêncio que parecia vivo, pulsante. Era uma cena estranha, quase onírica: a garota-boneca, com sua beleza de porcelana e marcas de sangue seco, comendo doces ao lado de Anna, como se fossem velhas amigas. Mas havia algo mais, uma conexão silenciosa que Anna sentia, mas não compreendia.
— Você acha tão bonito assim? — perguntou Kirino de repente após comer, o tom leve, mas com um toque de provocação, enquanto lambia as migalhas em sua mão como um gato.
Anna sentiu o rosto esquentar, o rubor subindo como uma onda. — O... o que você está dizendo? — gaguejou, o coração batendo descompassado.
Kirino apontou para os próprios olhos, o gesto lento, quase teatral. — Meus olhos. Você não para de olhar para eles. Acha meus olhos tão bonitos assim, não é?
Anna percebeu o mal-entendido e ficou ainda mais vermelha, o calor queimando suas bochechas. — S-sim! — respondeu, a voz falhando, tentando esconder o constrangimento. — São... muito marcantes.
Kirino sorriu, um sorriso enigmático que parecia dizer que ela sabia que não era bem isso. — Será? — murmurou, inclinando a cabeça. — Você hesitou agora há pouco.
Ela se aproximou mais, o rosto tão próximo que Anna podia sentir o leve perfume de sangue e algo doce, talvez os resquícios do pão de melão. Instintivamente, Anna recuou, o coração disparado, mas Kirino apenas inclinou a cabeça, inspirando profundamente. — Você tem um cheiro doce — disse, a voz quase um sussurro, como se revelasse um segredo.
Anna ficou paralisada, a mente em branco, incapaz de processar a estranheza daquele momento. Antes que pudesse responder, uma voz cortou o ar, quebrando o encanto.
— Kirino! — Um rapaz de cabelos pretos com mechas azuis, fones de ouvido pendurados no pescoço, emergiu das sombras da clareira, a expressão uma mistura de exasperação e cansaço. — Temos que voltar.
Kirino virou-se para ele, os olhos brilhando com uma rebeldia infantil. — Não quero — respondeu, a voz simples, mas firme, como uma criança desafiando um adulto. — Vou embora outra hora.
— Deixe de ser mimada! — retrucou o rapaz, Mikoto, esfregando a têmpora como se tentasse afastar uma dor de cabeça. — E pare de incomodar a garota com esse seu cheiro de sangue velho. Volte para tomar um banho e se preparar para a próxima missão.
Kirino, em um movimento rápido, escondeu-se atrás de Anna, agarrando-se a ela como se fosse um escudo. — O Mikoto só está querendo me levar porque o Oshino mandou ele tomar conta de mim! — exclamou, a voz carregada de indignação.
— Até pode ser verdade, mas isso não muda nada! — retrucou Mikoto, cruzando os braços. Em um piscar de olhos, ele estava ao lado de Anna, movendo-se com uma velocidade que parecia desafiar o tempo. Ele agarrou Kirino pela gola da camisa e a ergueu no ar, como se fosse um filhote de gato, ignorando os protestos dela.
Anna, impulsionada por um instinto que ela não entendia, levantou-se. — Espere! — exclamou, a voz mais firme do que ela esperava. — Não parece que ela quer ir.
Mikoto parou, os olhos estreitando-se em confusão enquanto encarava Anna. Kirino, ainda suspensa, balançava as pernas, um sorriso travesso nos lábios. — Você por acaso quer ficar com ela? — perguntou ele, a voz tingida de incredulidade.
Anna hesitou, o peso daquele momento caindo sobre ela. Mikoto suspirou, olhando para o céu como se implorasse por paciência. — Você não tem aulas agora?
— Tenho, mas... decidi matar o resto do dia — respondeu Anna, a voz firme, embora seu coração batesse descontrolado.
Mikoto olhou para Kirino, que ainda balançava as pernas, os olhos brilhando com uma mistura de diversão e desafio. — Você gostou dela? — perguntou ele, quase como se estivesse interrogando uma criança.
— Ela tem um cheiro doce — respondeu Kirino, a voz cantada, os olhos fixos em Anna.
— “Um cheiro doce”... — repetiu Mikoto, bocejando com um ar de resignação. — Certo. Você tomaria conta dela pelo resto da tarde, então? — Ele olhou para Anna, o tom prático, como se estivesse negociando a guarda de um animal de estimação. — Simplificando: consegue dar um banho nela, dar comida e ficar de olho para que ela não cause problemas?
Anna piscou, atônita com a rapidez com que a situação escalou. — Sim... — respondeu, quase por reflexo, ainda tentando entender o que estava acontecendo.
— Ótimo. — Mikoto soltou Kirino, que caiu com leveza e imediatamente se agarrou ao braço de Anna, sorrindo como se tivesse ganhado um prêmio. — Ela é sua responsabilidade agora. Podem brincar, comer doces, fazer o que quiserem. Só não me culpe se ela te meter em confusão.
Ele começou a se afastar, mas parou, olhando por cima do ombro com um meio sorriso. — Ah, e um alerta: apesar de pequena e fofa, ela é... problemática. Boa sorte.
Com isso, Mikoto desapareceu entre as árvores, os fones de ouvido balançando no pescoço, deixando Anna sozinha com Kirino. A garota-boneca, agora colada a ela, cheirava seu braço com uma curiosidade quase felina, o sorriso suave contrastando com as manchas de sangue seco em sua pele. Anna, completamente perdida, sentiu o peso daquele encontro, uma mistura de fascínio, confusão e um arrepio que parecia sussurrar segredos de um mistério maior. O jardim, com sua luz dourada e sombras dançantes, parecia conspirar para mantê-las ali, presas em um momento que era ao mesmo tempo belo e perturbador, como uma página arrancada de um romance de mistério.
Mantendo sua promessa a Mikoto, Anna guiou Kirino pelos terrenos da academia, uma jornada que se revelou um teste de paciência e sanidade. O caminho até o alojamento dos Corvos era um labirinto de trilhas sinuosas, ladeadas por árvores cujas sombras pareciam sussurrar segredos antigos. Kirino, com sua presença etérea e imprevisível, movia-se como um gato selvagem, guiada por impulsos que desafiavam a lógica. Parava abruptamente para perseguir uma borboleta, suas asas iridescentes refletindo a luz do entardecer, ou escalava as paredes de pedra do campus com uma agilidade quase sobrenatural, rindo como se o mundo fosse um playground. Em um momento, ela se deteve para cheirar uma flor silvestre com uma intensidade obsessiva, os olhos vermelhos brilhando com uma curiosidade que parecia transcender o humano. Anna, exasperada, puxava-a pela manga da roupa recém-moldada, tentando manter o foco na tarefa de levá-la ao destino.
Quando finalmente chegaram à mansão decrépita dos Corvos, o sol já mergulhava no horizonte, tingindo o céu de um vermelho profundo, como se o próprio mundo sangrasse. A casa, com suas janelas tortas e paredes cobertas de hera, exalava uma aura de abandono, mas também de refúgio. Anna conduziu Kirino diretamente ao banheiro, o único lugar onde poderia cumprir a primeira parte de sua responsabilidade. Ligou o chuveiro, o vapor subindo em véus que embaçavam o espelho, e esperou do lado de fora, os braços cruzados, tentando ignorar o peso da presença da garota. Mas o tempo passou, e o único som era o da água caindo, um ritmo monótono que parecia zombar de sua paciência. Preocupada, Anna abriu uma fresta na porta, o coração acelerando com um pressentimento indefinível.
Lá estava Kirino, sentada no chão de azulejos, ainda completamente vestida, a água escorrendo ao seu redor. Seus dedos cutucavam o fluxo do chuveiro com uma fascinação infantil, como se a dança da água fosse um mistério cósmico. Anna ficou paralisada, a cena tão surreal que parecia arrancada de um sonho. Kirino não sabia tomar banho.
Com um suspiro que misturava derrota e resignação, Anna percebeu que não havia escolha. Entrou no banheiro, o vapor envolvendo-a como uma mortalha, e começou a tarefa. Enquanto ajudava Kirino a tirar as roupas, a água quente finalmente lavava as manchas de sangue seco, revelando uma pele pálida e imaculada, quase luminosa sob a luz fraca. Kirino, alheia à gravidade do momento, brincava com a espuma, criando formas efêmeras que flutuavam e estouravam, rindo com uma alegria tão pura que parecia deslocada naquele corpo marcado por violência. O contraste era desconcertante: a delicadeza de suas feições, a curva suave de seus ombros, o corpo esguio de uma jovem mulher, contra a mente que parecia dançar em um tempo próprio, intocada pelas convenções do mundo.
Anna sentiu o calor subir ao rosto, uma onda de vergonha que não explicava. — Quantos anos você tem? — perguntou, a voz mais alta para abafar o som da água e sua própria inquietação.
— Dezenove — respondeu Kirino, com uma simplicidade que parecia desafiar a realidade, os olhos fixos em uma bolha de sabão que flutuava entre elas.
Dezenove. A mesma idade de Anna, de Dante, de tantos outros na academia. Mas havia algo em Kirino que parecia preso em um eterno crepúsculo, uma alma que não acompanhava o passar dos anos. Enquanto Anna esfregava suas costas, os dedos roçando a pele macia e delicada, o rubor em seu rosto intensificou-se, uma chama que ela tentou atribuir aos pensamentos invasivos de Dante, ainda ecoando em sua mente como uma maldição. É culpa daquele idiota, pensou, desesperada para encontrar uma explicação lógica.
Tentando desviar o foco, ela perguntou: — Kirino, como você acabou coberta de sangue daquele jeito?
— Em uma missão, é óbvio — respondeu ela, a voz leve, como se falasse de um passeio trivial. Seus olhos, por um instante, pareciam distantes, perdidos em uma memória que Anna não podia alcançar.
— E por que não tomou banho quando voltou ontem?
— Porque a Sakura não tinha tempo. Ela teve que sair — disse Kirino, soprando uma bolha de sabão que estourou com um leve pop.
Anna assentiu, compreendendo. Sakura devia ser a cuidadora habitual de Kirino, a pessoa que normalmente lidava com sua natureza excêntrica. A atitude de Mikoto mais cedo, tão desleixada e impaciente, ainda incomodava. — Seus colegas... eles não estão te tratando mal ou se aproveitando de você, estão? — perguntou, a voz tingida de uma preocupação que ela não conseguia disfarçar.
Kirino virou a cabeça, os olhos vermelhos encontrando os de Anna com uma intensidade que fez o ar parecer mais pesado. — Não. O Oshino é um cara legal, ele não deixaria — respondeu, a voz suave, mas com uma certeza inabalável. Então, após uma pausa, seu olhar ficou vazio, como se contemplasse algo além do banheiro. — E mesmo que deixasse e alguém quisesse fazer algum mal... eu só teria que matá-los.
As palavras caíram como uma pedra em um lago calmo, a tranquilidade aterrorizante com que foram ditas enviando um arrepio pela espinha de Anna. Era a mesma naturalidade com que Kirino falava de doces ou banhos, como se a morte fosse apenas mais um detalhe do cotidiano. Anna engoliu em seco, o som da água agora um rugido em seus ouvidos.
Após o banho, Anna usou sua habilidade, moldando o Ether em uma roupa simples e limpa para Kirino — uma blusa branca e uma saia longa que pareciam acentuar sua aura de boneca. Levou-a para a cozinha, onde o cheiro de café velho e pão ainda pairava no ar. Kirino atacou o pão de melão com uma voracidade quase feral, devorando-o em mordidas rápidas enquanto Anna a observava, incapaz de desviar os olhos. Havia algo hipnótico nela, uma dualidade que misturava inocência e perigo, como uma flor venenosa florescendo em um jardim esquecido. Cada movimento, cada olhar, parecia carregar um mistério que Anna ansiava, mas temia, desvendar.
— O que você quer fazer agora? — perguntou Kirino, limpando as migalhas dos lábios com o dorso da mão, os olhos brilhando com uma curiosidade insaciável.
Anna, exausta apenas pela tarefa de lidar com Kirino, hesitou. Não havia planejado além do banho e da comida, e a ideia de “nada” parecia inadequada. Então, uma lembrança surgiu. — O Dante tem alguns mangás no quarto. Você gostaria de ler?
Kirino assentiu, os olhos iluminando-se como se Anna tivesse oferecido um tesouro. Elas subiram para o segundo andar, o assoalho rangendo sob seus pés, e pegaram uma pilha de mangás no quarto de Dante, um espaço presumivelmente bagunçado. No quarto de Anna, um refúgio pequeno com cortinas desbotadas e uma cama coberta por cobertores amassados, Kirino deitou-se de bruços, folheando as páginas com uma concentração quase reverente. Anna sentou-se ao lado, os olhos atraídos irresistivelmente para os cabelos prateados da garota, que brilhavam sob a luz fraca que entrava pela janela.
Uma vontade inexplicável cresceu dentro dela, um desejo que parecia surgir de um lugar que ela não compreendia. — Posso...? — perguntou, a voz tão baixa que mal era audível, os dedos pairando no ar.
Kirino virou-se, seus olhos vermelhos encontrando os de Anna com uma intensidade que fez o ar parecer mais espesso. Um leve rubor tingiu suas bochechas pálidas, um detalhe tão sutil que poderia ser imaginação. Sem dizer uma palavra, ela engatinhou pela cama, sentando-se tão perto que seus joelhos quase se tocavam, e inclinou a cabeça, oferecendo os cabelos como uma permissão silenciosa.
Anna hesitou, o coração batendo descompassado, e então tocou os fios prateados. Eram macios, como seda líquida, e o simples ato de deslizar os dedos por eles trouxe uma sensação que era ao mesmo tempo calmante e avassaladora. Ela se perdeu em pensamentos, em dúvidas que giravam como sombras: o que era aquele calor que subia em seu peito? Por que o toque parecia tão certo, tão necessário? Por que Kirino, com sua estranheza e aura de perigo, a atraía como uma chama atrai uma mariposa?
Imersa naquele turbilhão, Anna foi pega desprevenida quando Kirino se virou, segurando o mangá com um sorriso travesso. — O seu rosto fica igual a este — disse, apontando para uma personagem corada, momentos antes de um beijo, os olhos brilhando com uma provocação que parecia saber mais do que dizia.
— N-não fica, não! — gaguejou Anna, o rosto traindo-a ao queimar ainda mais, como se todo o sangue de seu corpo tivesse decidido migrar para suas bochechas.
— Fica sim! — insistiu Kirino, a voz leve, mas carregada de uma certeza que desarmava.
A tensão dissolveu-se em uma brincadeira, as duas trocando provocações enquanto riam, o som ecoando no quarto como um raro momento de leveza. Mas a brincadeira escalou quando Kirino, com uma velocidade surpreendente, subiu sobre Anna, imobilizando-a contra a cama. Seus olhos vermelhos brilhavam com uma intensidade que parecia sugar o ar do ambiente, e Anna, presa sob aquele olhar, sentiu o coração disparar, a respiração travada na garganta. O rosto de Kirino aproximava-se, tão perto que Anna podia ver cada detalhe de sua pele, cada sombra em seus olhos, cada curva de seus lábios. O momento era elétrico, carregado de uma promessa não dita, como se o próprio tempo hesitasse.
O som inconfundível de passos pesados e vozes familiares quebrou o encanto. A porta do quarto de Anna escancarou-se com um estrondo, e Dante irrompeu, a expressão uma mistura de preocupação e urgência. — Anna! Por que você decidiu faltar o resto das aulas?! — exclamou, a voz alta o suficiente para ecoar pelos corredores.
Seus olhos, no entanto, caíram sobre a cena: Anna deitada na cama, o rosto vermelho como brasas, Kirino sentada ao seu lado, o mangá de romance aberto no chão, suas páginas esparramadas como confissões. Dante piscou, processando a imagem, e chegou à conclusão mais óbvia — e completamente errada. Seu rosto empalideceu, os olhos arregalados. — Ah. Me... me desculpem por interromper — gaguejou, já recuando.
— NÃO É NADA DISSO, SEU IDIOTA! — gritou Anna, levantando-se em um salto, o rosto agora em chamas por um motivo completamente diferente. Ela agarrou um travesseiro e o arremessou na direção de Dante, que fechou a porta justo a tempo de evitar o projétil.
Parte 6
A confusão no quarto de Anna se dissipou com um grito indignado e uma porta batida com tanta força que fez as paredes da velha mansão tremerem. Minutos depois, Anna desceu as escadas com Kirino a tiracolo, a garota agarrada ao seu braço como se fosse uma extensão natural dela. A sala de estar já fervilhava de curiosidade contida; todos os Corvos presentes haviam ouvido o grito estridente de Anna e visto a retirada apressada de Dante, que saíra tropeçando pelos corredores como se tivesse visto um fantasma. O ar estava carregado de sussurros e olhares curiosos, o cheiro de bolo recém-assado misturando-se ao de café forte, enquanto o sol da tarde entrava pelas janelas em raios dourados, iluminando o caos organizado da casa.
— Pessoal, esta é a Kirino Mashiro — apresentou Anna, a voz ainda um pouco tensa, mas com um toque de empolgação forçada, como se tentasse dissipar o constrangimento. Ela empurrou Kirino gentilmente para a frente, a garota piscando os olhos vermelhos com uma inocência que desarmava qualquer tensão residual.
O grupo a encarou, um silêncio breve caindo antes de explodir em reações. Kurokawa foi a primeira, inclinando-se para a frente com um sorriso radiante que iluminava seu rosto. — Ela é adorável! Olha só esses cabelos prateados, parecem fios de luar! E esses olhos... uau, hipnóticos! Vem cá, senta aqui do meu lado, Kirino!
Luck, recostado no sofá com os pés sobre a mesa baixa, ergueu uma sobrancelha, mas um sorriso travesso surgiu em seus lábios. — Mas ela parece tão nova... tipo, uma criança perdida em uma loja de doces. Quantos anos você tem, pirralha?
— Ela tem dezenove anos — respondeu Anna, secamente, cruzando os braços e lançando um olhar de advertência para Luck, que quase engasgou com o chá que bebia.
A revelação pegou alguns de surpresa, arrancando exclamações e risadas incrédulas. — Dezenove?! — repetiu Kintoki, da cozinha, onde equilibrava uma cadeira nas pernas traseiras em sua pose descolada habitual. — Essa aí parece saída de um conto de fadas! Vem cá, tenta imitar isso! — Ele inclinou a cadeira ainda mais, quase desafiando a gravidade, e Kirino, com os olhos brilhando de curiosidade, tentou copiá-lo imediatamente, subindo em uma cadeira e balançando perigosamente. A cadeira tombou com um estrondo, e Kirino caiu de bunda no chão, mas em vez de chorar, ela explodiu em gargalhadas, rolando no tapete puído como se fosse a coisa mais engraçada do mundo. Kintoki riu tanto que quase caiu da própria cadeira, estendendo a mão para ajudá-la a se levantar. — Essa aí é das minhas! Vamos tentar de novo, mas dessa vez eu te seguro!
No caos do Circle of Ravens, a estranheza era a norma, e Kirino, com sua peculiaridade, se encaixou como uma peça perdida de quebra-cabeça que, de repente, completava o quadro de forma hilária. O que se seguiu foi uma tarde de pura e anárquica diversão, o tipo de bagunça que transformava a mansão em um circo improvisado. Kirino, com sua curiosidade de gato selvagem, explorou cada membro do grupo como se fossem brinquedos novos. Ela tentou imitar a pose descolada de Kintoki não só uma vez, mas repetidamente, escalando móveis e rindo toda vez que caía, arrancando gargalhadas gerais e até uma oferta de Kintoki para ensiná-la "truques de poses com estilo máximo" — que acabaram em mais tombos e uma pilha de almofadas improvisadas no chão para amortecer as quedas.
Luck, sempre o apostador, tentou ensiná-la um jogo de cartas simples, espalhando o baralho sobre a mesa baixa com um floreio dramático. — Olha só, Kirino, é fácil: você escolhe uma carta e... ei, não, não mistura tudo assim! — Mas Kirino, com jogadas completamente aleatórias e imprevisíveis, venceu cinco rodadas seguidas, deixando Luck boquiaberto e fingindo uma derrota exagerada, jogando as cartas para o alto como confete. — Essa garota é uma trapaceira nata! Rematch, agora! — Ele ria, bagunçando os cabelos prateados dela, e Kirino respondia com um sorriso que iluminava o quarto, pedindo mais rodadas e até inventando regras absurdas, como "quem piscar perde".
Até Kai, o mais rabugento de todos, foi desarmado de forma épica. Ele tentava manter sua carranca intimidadora na cozinha, e resmungando sobre "intrusos fofos demais para o meu gosto". Mas Kirino apenas inclinou a cabeça, encarando-o com aqueles grandes olhos vermelhos, sem medo ou hesitação, como se o estivesse desafiando em um duelo silencioso. Kai desviou o olhar primeiro, bufando, mas minutos depois, para o choque coletivo, ele se aproximou dela com um prato estendido. — Toma, come isso e para de me olhar assim, sua peste! — Era um pedaço do bolo de chocolate que ele havia feito mais cedo, ainda quente e cheirando a baunilha. Kirino devorou-o em segundos, lambendo os dedos e dando um abraço inesperado na perna dele, fazendo Kai congelar, o rosto vermelho como um tomate. — Sai, sai! Não sou seu cachorro! — gritou ele, mas ninguém perdeu o leve sorriso que escapou de seus lábios enquanto se afastava, resmungando algo sobre "garotas problemáticas".
Anna observava tudo do sofá, um sorriso genuíno se espalhando em seu rosto pela primeira vez naquela tarde agitada. O som das risadas ecoava pelas paredes, misturando-se ao tilintar de pratos e ao chiado de jogos de cartas sendo embaralhados. Era bom ver Kirino se divertindo, sendo aceita como uma explosão de energia fresca no meio daquele bando de desajustados. Mas por baixo da felicidade, outro sentimento borbulhava, uma pontada estranha e inexplicável toda vez que via Kirino rindo com outra pessoa, como se uma faísca de posse ou inveja piscasse em seu peito, tornando o ar um pouco mais pesado.
Dante, sentou-se ao lado dela vendo a expressão que Anna fazia. — Não é legal ser possessiva com a namorada, Anna. Nós não vamos tirar nenhum pedaço dela, prometo.
Em um movimento rápido e furioso, Anna enfiou os dois dedos nos olhos dele, arrancando um grito cômico que ecoou pela casa. Dante caiu no chão, se contorcendo dramaticamente, as mãos cobrindo o rosto. — Ai! Meus olhos! Você me cegou, maldita! — Yuki, que passava por ali com uma xícara de chá, apenas parou, encarou a cena e balançou a cabeça, pensando alto: — Dessa vez, ele com certeza fez algo para merecer. Continua assim, Anna! — Ela deu um tapa de encorajamento nas costas de Anna antes de seguir, rindo baixinho.
As últimas a chegarem foram Charlotte, Beatrice, Asuna e Ludmilla, que voltavam de sua missão de reconhecimento com olheiras leves, mas olhos brilhando de determinação. Elas encontraram Mio, Leona e Hyori no caminho e entraram juntas, o grupo se expandindo em uma onda de cumprimentos barulhentos. — Ufa, que dia! — exclamou Ludmilla, jogando a mochila no canto e se jogando no sofá. Mas a visão de Kirino brincando com Kintoki — agora tentando equilibrar uma pilha de livros na cabeça dela enquanto riam — as fez parar na porta, boquiabertas. Asuna, sempre tímida, corou e murmurou: — Ela é... tão fofa! — Charlotte, recuperando-se, sorriu e se juntou à bagunça, oferecendo a Kirino um lanche que trouxera da missão, enquanto Beatrice observava com um meio sorriso.
O tempo passou voando em meio às brincadeiras, e a noite começou a cair, o céu lá fora escurecendo enquanto as luzes da mansão acendiam, criando um aconchego caótico. — Ela vai dormir aqui? — perguntou Leona, inclinando-se sobre o balcão da cozinha, onde devorava os restos do bolo de Kai.
Anna piscou, percebendo o problema. — Eu não combinei um local para encontrar o Mikoto. Ele só disse pra cuidar dela...
— Então, em vez de sair sem rumo durante a noite, é melhor ela dormir aqui — disse Beatrice, com sua lógica impecável, cruzando os braços e lançando um olhar prático. — Amanhã você vai atrás dele e explica. Simples.
Anna concordou, aliviada, e mais tarde levou Kirino para seu quarto, o corredor ecoando com os últimos risos da sala. — Você pode dormir na minha cama — disse Anna, arrumando lençóis extras no chão. — Eu faço um colchão para mim aqui.
Do corredor, a voz de Dante soou novamente, provocadora: — Desse jeito, você está indo contra o seu próprio progresso, hein? Deixa a garota sozinha na cama?
POKE. Anna enfiou os dedos nos olhos dele de novo, arrancando outro grito exagerado que fez Kirino rir e bater palmas. — Boa noite, Dante! — gritou Kirino, acenando enquanto ele se afastava, esfregando os olhos e resmungando sobre "vingança futura".
A noite avançou e a maioria dos Corvos foi se recolher, o barulho da casa diminuindo para um zumbido suave de sussurros e portas fechando. Na sala, restavam apenas Beatrice, Charlotte e Dante, conversando em voz baixa ao redor da mesa, uma lâmpada fraca iluminando seus rostos.
— Afinal, como é o nome completo dela? — perguntou Beatrice, inclinando-se para a frente com curiosidade genuína.
— Kirino Mashiro — respondeu Dante, casualmente, bebendo um gole de água como se fosse uma informação trivial.
No instante em que o nome foi dito, Beatrice e Charlotte congelaram, como se o ar tivesse sido sugado do quarto. Elas se entreolharam, o choque estampado em seus rostos, os olhos arregalados em uma sincronia perfeita que faria qualquer um rir — se não fosse pela tensão palpável.
— O que... o que você disse? — perguntou Charlotte, a voz um sussurro rouco, como se temesse que as palavras evaporassem.
— Kirino Mashiro. Por quê? — repetiu Dante, agora confuso, inclinando a cabeça.
— Você tem certeza? — insistiu Beatrice, pálida como um fantasma, as mãos tremendo levemente ao pegar o tablet.
— Tenho, por quê? Do que vocês estão falando? — disse Dante, a irritação crescendo, batendo o copo na mesa com um som seco.
Beatrice respirou fundo, o peito subindo e descendo como se estivesse se preparando para uma batalha. — Dante, mantenha a calma e ouça com atenção. Quando fomos recolher informações sobre os Juízes, aproveitamos para pegar uma cópia da lista atual dos dez melhores, antes que ela seja atualizada.
Ela pegou seu tablet, os dedos voando pela tela, e o entregou a Dante com uma lentidão deliberada, como se estivesse passando uma bomba-relógio. — Leia o nome do segundo lugar.
Dante pegou o aparelho, os olhos percorrendo a lista com desdém inicial, passando pelo seu próprio nome no décimo lugar, pelo de Emilia no oitavo, subindo pelo ranking com um bocejo fingido... até parar. Seus dedos congelaram sobre a tela, os olhos se arregalando como se tivessem visto um erro no universo. Sua respiração ficou presa na garganta, o copo escorregando de sua mão e caindo no chão com um estalo que ecoou no silêncio. Ele leu o nome uma, duas, três vezes, piscando como se a tela fosse mudar magicamente.
Lá, no segundo lugar, logo abaixo do misterioso número um, estava gravado em letras digitais e inquestionáveis:
2. Kirino Mashiro
Dante ergueu o olhar do tablet, o rosto uma máscara de pura e absoluta incredulidade, o queixo caído como se o chão tivesse desaparecido. A garotinha fofa, a boneca de porcelana, a criança de dezenove anos que ele tinha visto brincar com cartas, comer bolo de Kai, escalar móveis e que agora dormia pacificamente no quarto ao lado... era a segunda estudante mais forte de toda a academia. O silêncio explodiu em um "O QUÊ?!", mas o choque era tão grande que ele não conseguia processar.
O mundo de Anna era o teto escuro de seu quarto, uma extensão de sombras que parecia engolir a luz fraca da lua filtrada pelas cortinas desbotadas. No colchão improvisado no chão, ela girava de um lado para o outro, o tecido áspero sussurrando a cada movimento, como se conspirasse com a inquietação que a mantinha acordada. Acima dela, na cama, Kirino dormia o sono dos justos, a respiração suave e rítmica cortando o silêncio como um fio de prata. Mas para Anna, o descanso era uma miragem distante, um desejo preso em um labirinto de pensamentos que se recusavam a se aquietar.
Sua mente era um turbilhão, um redemoinho de perguntas sem resposta. o'que era aquela garota, porque ela parecia uma contradição viva, Anna não conseguia desviar.
O tempo se arrastava, cada segundo marcado pelo tique-taque distante de um relógio no corredor, do lado de fora de seu quarto. O barulho ocasional da casa — um assoalho rangendo sob o peso de memórias, o zumbido baixo da geladeira na cozinha — foi gradualmente se apagando, até que um silêncio pesado e absoluto envolveu o alojamento. Os Corvos haviam se recolhido, suas vozes alegres e caóticas silenciadas pela noite. O mundo parecia suspenso, como se a própria escuridão prendesse a respiração, esperando por algo.
Foi então que ela ouviu. Um farfalhar suave, quase imperceptível, como o roçar de pétalas contra a pele. O som vinha da cama acima, o leve crepitar dos lençóis sendo afastados. Passos descalços tocaram o chão de madeira com uma delicadeza que desafiava a realidade, cada passo um sussurro que parecia ecoar diretamente no peito de Anna. Alguém estava saindo da cama e se aproximando.
O coração de Anna disparou, um tambor descontrolado que parecia querer romper suas costelas. Ela fechou os olhos com força, o corpo enrijecendo por instinto, cada músculo tenso como cordas de um violino. Fingir estar dormindo, pensou, a única estratégia que sua mente em pânico conseguia conjurar. Um suor frio brotou em sua testa, escorrendo lentamente enquanto ela tentava manter a respiração lenta e ritmada, uma tarefa hercúlea contra o martelar de seu coração. O ar parecia mais denso, carregado de uma tensão que vibrava como uma corda esticada, e Anna sentia a presença de Kirino — porque só podia ser ela — pairando sobre o colchão, uma sombra silenciosa que parecia observar cada detalhe de sua farsa.
Então, um toque. Delicado, quase etéreo, como o roçar de uma pluma. Dedos suaves afastaram os fios de cabelo que caíam sobre o rosto de Anna, movendo-se com uma ternura. O gesto era íntimo, como se a garota quisesse confirmar se Anna realmente dormia, ou talvez algo mais, algo que Anna não ousava imaginar. Ela forçou a respiração a permanecer estável, mas seu corpo traía-a, o calor subindo ao rosto, o sangue pulsando nas têmporas como um aviso de perigo — ou de desejo.
De repente, a imagem daquele mangá de romance invadiu sua mente, vívida e traiçoeira. A cena da garota corada, o rosto se aproximando para um beijo, os olhos brilhando com uma promessa não dita. É isso que ela vai fazer? Ela vai me beijar agora? A pergunta ecoava em sua cabeça, metade pânico, metade anseio, uma guerra entre o instinto de se mover, de parar o que quer que estivesse acontecendo, e uma curiosidade avassaladora que a mantinha paralisada. Seu corpo, traidor, recusava-se a obedecer, preso entre o medo do desconhecido e a atração por algo que ela não conseguia nomear.
Mas o beijo que ela temia — ou talvez desejasse — nunca veio.
Em vez disso, o colchão ao seu lado afundou com um leve ranger, o som abafado pela escuridão. Kirino, com a delicadeza de um floco de neve caindo em um lago congelado, deitou-se ao seu lado, enfiando-se sob o cobertor com uma naturalidade desconcertante. Anna sentiu o calor do corpo da garota, uma presença tão próxima que parecia preencher todo o espaço ao seu redor. O coração de Anna disparou novamente, o rubor queimando suas bochechas no escuro, a situação tão bizarra e inesperada que a deixou sem fôlego. Antes que pudesse processar, braços finos envolveram sua cintura, e Kirino se espremeu contra suas costas em um abraço apertado, como um animalzinho buscando calor em uma noite fria. O cheiro doce dos cabelos prateados misturava-se ao leve perfume de sabonete, uma lembrança do banho que Anna havia dado horas antes.
O choque inicial dissolveu-se lentamente, como névoa ao amanhecer, dando lugar a uma calma estranha e reconfortante. O calor do corpo de Kirino era um bálsamo contra a inquietação que a consumira, o abraço tão inocente quanto poderoso. Sem pensar, Anna levou a mão para trás, seus dedos encontrando os cabelos macios da garota, tão suaves que pareciam derreter ao toque. Ela começou a acariciá-los, um movimento lento e rítmico, como se estivesse traçando um feitiço para apaziguar sua própria alma. Cada fio parecia carregar uma história não contada, e Anna, perdida naquele gesto, sentiu o turbilhão em sua mente aquietar-se, as perguntas silenciando-se no ritmo do toque.
A tensão deixou seus músculos. O silêncio da noite, agora quebrado apenas pela respiração suave das duas, tornou-se um refúgio. Anna finalmente encontrou o sono, seu coração batendo em um ritmo que parecia ecoar o da garota ao seu lado.
Quando acordou, a primeira coisa que notou foi o frio. O espaço ao seu lado estava vazio, o cobertor dobrado como se nunca tivesse sido tocado. A luz pálida da manhã infiltrava-se pela janela, lançando sombras longas que dançavam sobre o chão de madeira. O quarto estava silencioso, um vazio que parecia gritar a ausência de Kirino. Anna sentou-se, o cobertor caindo em seu colo, a memória da noite anterior voltando com uma força que a fez prender a respiração. O toque delicado nos cabelos, o abraço quente, o perfume doce — tudo tão vívido que parecia um sonho, mas tão real que fazia seu peito apertar.
Um rubor profundo tomou conta de seu rosto, subindo até a raiz dos cabelos, como se a própria manhã a acusasse. Ela levou as mãos às bochechas, tentando esfriar o calor que queimava, mas as imagens da noite dançavam em sua mente, cada detalhe mais claro do que o anterior. O que era aquele sentimento que a envolvia, que a puxava como um ímã para Kirino? Por que o vazio ao seu lado parecia pesado? Por que o toque de seus cabelos ainda parecia pulsar em seus dedos?
Ela ficou ali, sentada no colchão, os olhos fixos na cama vazia acima, tentando desvendar o enigma que Kirino representava. O quarto, com suas cortinas balançando na brisa matinal e o leve rangido do assoalho, parecia guardar segredos que ela não estava pronta para enfrentar. O silêncio era ao mesmo tempo um conforto e uma acusação, um lembrete de que algo havia mudado dentro dela, algo que não podia ser desfeito.
E assim, com o coração confuso, o rosto em chamas e a memória de uma noite que parecia um conto de mistério, mais um dia começava. O alojamento dos Corvos logo despertaria com seus gritos, risadas e caos, mas, por aquele momento, Anna estava sozinha com seus pensamentos, presa em um enigma que era tão belo quanto perturbador, como uma página arrancada de um livro que ela ainda não sabia como terminar.



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