The Fall of the Stars : Capítulo 3 - Força
- AngelDark

 - 27 de out.
 - 101 min de leitura
 
Volume 8: Desafio das Coroas
Parte 1
O ar nos corredores de Babylon parecia denso, pesado com a história que Vlad havia despejado sobre eles. As palavras sobre guerras antigas e tensões modernas deixaram os alunos da Sala -13 em um estado de silêncio contemplativo. Cada um caminhava imerso em seus próprios pensamentos, processando a enormidade do mundo que habitavam. O eco distante de vozes abafadas reverberava pelas paredes de mármore polido, misturando-se ao leve farfalhar das vestes dos alunos que passavam, como se o próprio ar carregasse o peso de segredos milenares. A luz do sol filtrada pelas janelas altas dançava em padrões irregulares no chão, destacando partículas de poeira que flutuavam preguiçosamente, simbolizando a fragilidade das certezas que acabavam de ser abaladas.
Sophi Pencilgon vagava sem um destino certo, os dedos traçando distraidamente a textura da capa de seu caderno de esboços. Seus passos, quase silenciosos, a levaram a uma das varandas abertas da academia, um lugar que oferecia uma vista vertiginosa do céu infinito e da borda da ilha flutuante, onde cachoeiras caíam para o nada. O som distante das águas despencando ecoava como um rugido suave e constante, misturando-se ao sussurro do vento que carregava um aroma fresco e úmido, como se o abismo abaixo engolisse não apenas a água, mas também qualquer ruído que ousasse se aproximar demais. Sophi sentiu um leve arrepio na pele exposta de seus braços, o frio da altitude penetrando através do tecido leve de seu uniforme, enquanto seus olhos se ajustavam à vastidão azul que se estendia à frente, interrompida apenas pelas silhuetas distantes de outras ilhas flutuantes.
E lá, sentado sozinho em um banco de pedra fria, estava Kai Scarlune.
Ele não estava gritando, nem provocando ninguém. Estava quieto, o que, para Kai, era o ato mais barulhento que ele poderia cometer. Seus ombros estavam tensos, uma linha rígida de frustração visível mesmo sob o uniforme. Seu olhar estava fixo no horizonte, como se tentasse encontrar uma falha no azul perfeito do céu. O vento frio da altitude soprava intermitentemente, fazendo com que fios soltos de seu cabelo Branco balançassem de forma sutil, como se dançassem ao ritmo de uma melodia invisível e caótica, refletindo a turbulência que agitava sua mente. Seus punhos, cerrados sobre as coxas, tremiam levemente, as veias salientes nas costas das mãos pulsando com uma energia contida, enquanto o sol da tarde projetava sombras alongadas em seu rosto, destacando as linhas duras de sua mandíbula e o brilho intenso em seus olhos, que pareciam perfurar o vazio em busca de respostas inexistentes.
Sophi o observava da penumbra do corredor, uma curiosidade analítica tomando conta dela. Desde que o conhecera, Kai era um poço de contradições que ela, uma estudiosa da natureza humana, não conseguia decifrar. Ele era rude, mas cozinhava para todos. Agressivo, mas protetor de uma forma distorcida e quase selvagem. Durante os eventos no labirinto, ela ficou surpresa; ele não agiu por puro egoísmo. Lutou de forma estranha, em busca de uma "vitória perfeita" que, de alguma forma, incluía a segurança de seus companheiros. Ela se lembrou de tê-lo visto, dias atrás, xingando Asuna por esbarrar nele e, no minuto seguinte, com as costas viradas, ajustando discretamente o cachecol da garota para protegê-la do vento, tudo sem que ninguém percebesse. Ele tinha sua própria bússola moral quebrada, uma visão distorcida de certo e errado, e ela, mesmo depois de tanto tempo tentando entendê-lo, sentia que não podia estar mais longe da resposta. Enquanto o observava, Sophi notou como sua respiração era ritmada, mas irregular – inspirando profundamente como se tentasse engolir o ar para suprimir uma raiva interna, e expirando com um leve tremor nos lábios, que se contraíam em uma linha fina de concentração. Seus dedos tamborilavam de forma quase imperceptível no banco de pedra, o som abafado misturando-se ao vento, como se cada batida fosse uma tentativa frustrada de ordenar os pensamentos caóticos que rodopiavam em sua cabeça. A curiosidade de Sophi se misturava a uma pitada de empatia, fazendo com que seu coração acelerasse ligeiramente, enquanto ela se inclinava um pouco mais para frente, o caderno pressionado contra o peito como um escudo contra as emoções que começavam a surgir.
Ela suspirou baixo, um som que se perdeu na brisa. Sem que ele notasse sua presença, deu meia-volta e se foi, deixando-o com seus demônios. Ao se afastar, Sophi sentiu o piso de pedra sob seus pés ecoar levemente com cada passo, um lembrete sutil da distância que ela colocava entre si e o enigma que era Kai, enquanto o vento carregava fragmentos de um cheiro metálico e terroso da ilha, misturado ao distante rugido das cachoeiras, como se o mundo inteiro conspirasse para amplificar o isolamento dele.
Kai continuava a observar o céu, mas não via as nuvens. O vento frio da altitude chicoteava seu rosto, mas ele mal o sentia, consumido por um frio que vinha de dentro. Em sua mente, um carrossel de fracassos recentes girava sem parar. A imagem de Dante, lutando contra Daemon, movendo-se com uma fluidez que ele não conseguia acompanhar. A humilhação de ser ludibriado e derrubado por Ryota, um mero terceiro ano. A presença esmagadora de Loki, que o havia derrotado sem sequer considerar a luta digna de seu tempo. E, finalmente, a lista dos dez melhores, onde o nome de Dante brilhava e o seu estava ausente. Cada memória se repetia como um loop doloroso, acompanhado pelo pulsar surdo em suas têmporas, como se seu próprio sangue o acusasse de fraqueza; o sol incidia diretamente em seus olhos, forçando-o a semicerrar as pálpebras, mas ele se recusava a piscar, como se admitir essa pequena derrota fosse o começo de uma avalanche maior. Seus músculos do pescoço se contraíam involuntariamente, e um suor frio começava a se formar na base de sua nuca, escorrendo devagar pela coluna, misturando-se à sensação de imobilidade que o prendia ao banco, como correntes invisíveis forjadas por sua própria dúvida.
Derrotado. A palavra ecoava em sua mente, amarga como veneno. Ele tinha voltado para Babylon com um único objetivo: ficar mais forte. Mas o fato era inegável, uma parede de concreto contra a qual ele se chocava. Ele não havia avançado um único passo. O gosto amargo subia pela garganta, como bile, fazendo-o engolir em seco, enquanto o vento levava folhas secas que rodopiavam ao seu redor, como testemunhas mudas de sua paralisia, cada uma delas caindo no abismo da ilha como um lembrete de quão fácil era despencar.
Enquanto isso... Ele sabia. Naquele exato momento, Dante deveria estar em algum lugar treinando, se fortificando, aprendendo novas técnicas. Logo ele voltaria ainda mais forte, mais polido. E Kai estava ali, sentado, parado. Estagnado. O mesmo de sempre. A imagem de Dante se materializava em sua mente com detalhes vívidos – o suor escorrendo pelo rosto dele durante o treino, os músculos se flexionando com precisão, o Ether fluindo como uma aura viva ao seu redor – contrastando com sua própria imobilidade, fazendo com que Kai sentisse um aperto no peito, como se uma mão invisível comprimisse seu coração, acelerando as batidas em um ritmo irregular e doloroso.
Seu olhar continuava a varrer o azul infinito, quase como se estivesse tentando encontrar algo no meio do céu, uma resposta escrita nas nuvens que pudesse tirar aquela dúvida que o consumia.
“O que é necessário para ficar mais forte?”
A pergunta ecoou em sua mente, silenciosa e desesperada, enquanto o tempo, indiferente à sua angústia, continuava a avançar. Cada segundo que passava parecia esticar como uma corda tensa, o silêncio da varanda interrompido apenas pelo ocasional canto de um pássaro distante ou pelo sussurro das cachoeiras, amplificando a solidão que envolvia Kai como um manto invisível, plantando as sementes iniciais de uma dúvida que, aos poucos, começaria a corroer suas convicções.
Parte 2
Sophi encontrou Vivian em um dos cafés mais tranquilos de Babylon. A irmã de Dante e Kai estava sentada com Charlotte e Mirai em uma mesa no pátio, sob a sombra generosa de uma Glicínia cujas flores roxas caíam em cascata. O cheiro doce das flores se misturava ao aroma de chá e bolos. A elegância casual de Vivian era evidente em cada gesto, na forma como segurava a xícara de porcelana, no leve inclinar de sua cabeça. O pátio era um oásis de serenidade, com o sol da tarde filtrando-se através das folhas largas da glicínia, projetando padrões dançantes de luz e sombra sobre a mesa de madeira polida, onde migalhas de bolo se espalhavam como confetes esquecidos; o ar carregava não só o perfume floral, mas também o vapor quente do chá que subia em espirais preguiçosas, misturando-se ao leve zumbido de abelhas que pairavam ao redor das flores pendentes, criando uma atmosfera acolhedora e quase sonhadora, interrompida apenas pelo ocasional tilintar de talheres contra pratos de porcelana fina. Vivian, com seus cabelos brancos caindo em ondas suaves sobre os ombros, inclinava a cabeça ligeiramente para o lado enquanto ouvia Mirai falar, seus dedos longos traçando o aro da xícara com uma graça inconsciente, como se cada movimento fosse uma extensão de sua personalidade serena e observadora.
Sophi se aproximou, o rosto exibindo uma curiosidade que ela mal conseguia disfarçar. — Vivian. Posso falar com você um instante? — Sua voz saiu um pouco mais alta do que pretendia, ecoando levemente no pátio tranquilo, enquanto ela ajustava o caderno de esboços debaixo do braço, sentindo o tecido do uniforme roçar contra sua pele aquecida pelo curto trajeto sob o sol; seus passos hesitantes sobre o piso de pedras irregulares faziam um som suave e ritmado, como se cada um deles carregasse o peso de sua indecisão interna.
Vivian ergueu o olhar, e ao ver a expressão de Sophi, um sorriso curioso e conhecedor surgiu em seus lábios. — Claro. Sente-se conosco. O chá de camomila está ótimo hoje. — Ela gesticulou para a cadeira vazia com um aceno gracioso da mão, seus olhos violeta brilhando com uma mistura de diversão e compreensão, enquanto uma brisa leve fazia as flores da glicínia balançarem acima delas, soltando pétalas roxas que flutuavam devagar até o chão como neve colorida, uma delas pousando delicadamente na borda da xícara de Vivian.
— Antes de tudo, acharam o Luck e a Asuna? — perguntou Sophi, puxando uma cadeira e sentindo o calor do sol filtrado pelas folhas em seu rosto. Ao se sentar, ela notou como a madeira da cadeira rangeu levemente sob seu peso, e o calor residual do sol nas almofadas de tecido a envolveu como um abraço sutil, enquanto o aroma doce das flores se intensificava, misturando-se ao cheiro reconfortante de chá recém-preparado que pairava sobre a mesa.
— Sim — respondeu Charlotte, a preocupação vincando sua testa. — Eles passaram a manhã inteira no hospital. Parece que participaram de algum jogo estranho da coroa na noite anterior. Estão descansando agora. — Sua voz era baixa e ponderada, com uma leve ruga se formando entre as sobrancelhas enquanto ela mexia distraidamente o chá com uma colher de prata, o tilintar metálico ecoando como um ponto de interrogação no ar, e seus dedos tamborilando de forma quase imperceptível na borda da mesa, revelando uma ansiedade subjacente que contrastava com sua postura ereta e composta.
— Mas, mais importante que isso... — disse Vivian, apoiando o queixo na mão, os olhos brilhando de forma provocadora. — Por que toda essa curiosidade repentina sobre o meu irmão, Sophi? — Ela inclinou a cabeça um pouco mais, seus cabelos escorregando suavemente sobre o ombro, e um brilho malicioso dançando em seus olhos, enquanto o vapor do chá subia em frente ao seu rosto, embaçando ligeiramente sua visão e adicionando um ar de mistério à sua expressão.
Sophi sentiu o rosto esquentar levemente, um rubor que ela esperava que a sombra da árvore escondesse. — É só... curiosidade acadêmica. Ele é um quebra-cabeça. — Sua resposta saiu um pouco apressada, com uma pausa hesitante no meio, e ela desviou o olhar para o bolo em seu prato, cutucando-o com o garfo como se isso pudesse distrair das bochechas que ardiam, sentindo o calor subir ainda mais enquanto uma pétala de glicínia caía bem ao lado de sua mão, como uma testemunha silenciosa de seu embaraço.
Mirai riu, um som cristalino. — Estou surpresa. Achei que você iria explodir de ciúmes, Vivian, vendo outra garota interessada no Kai. — O riso dela ecoou leve e melodioso, como sinos tilintando, e ela cobriu a boca com a mão delicada, os olhos piscando inocentemente, mas com um traço de travessura que fazia suas bochechas se enrugarem ligeiramente em um sorriso contido.
Vivian, que tomava um gole de chá, engasgou. O líquido foi cuspido de volta na xícara com um pequeno jato, seguido por uma tosse violenta que a fez se curvar. — O-o que você quer dizer com isso?! — A tosse veio em acessos curtos e ofegantes, fazendo seu corpo tremer ligeiramente, enquanto gotas de chá salpicavam a mesa, e ela pressionava o guardanapo contra os lábios, os olhos arregalados em uma mistura de choque e indignação, com o rubor subindo rapidamente por seu pescoço.
— Ah, era só uma teoria — disse Mirai, com um sorriso angelical que não enganava ninguém. — Mas pelo visto, eu estava errada. Parece que você não tem um complexo de irmã com ele. — Ela deu de ombros de forma casual, inclinando a cabeça para o lado como se estivesse ponderando inocentemente, mas seus olhos dançavam com diversão, e ela mexia o chá devagar, o vapor subindo em espirais que pareciam imitar o caos sutil que havia provocado.
— Você é uma idiota! — retrucou Vivian, o rosto completamente vermelho enquanto tentava limpar a bagunça com um guardanapo. Ao seu lado, Charlotte virou o rosto, envergonhada, tentando esconder o fato de que, por um breve momento, também havia pensado o mesmo. Vivian passou o guardanapo com movimentos rápidos e nervosos, o tecido absorvendo as gotas espalhadas, enquanto seu cabelo caía sobre o rosto, e ela o jogava para trás com um gesto impaciente, sua respiração ainda acelerada da tosse, revelando um traço de vulnerabilidade por trás da fachada elegante. Charlotte, por sua vez, mordia o lábio inferior para conter um sorriso involuntário, virando o rosto para o lado e fingindo interesse nas flores acima, mas suas orelhas avermelhadas traíam seu embaraço interno.
Vivian suspirou, recuperando a compostura e ajeitando o cabelo. — Não é nada disso. Eu apenas... quero estar ao lado dele. É porque o Kai nunca teve ninguém de verdade ao seu lado. — Sua expressão se tornou sombria, a alegria desaparecendo de seu rosto como se uma nuvem tivesse coberto o sol. — Tudo culpa da Rani. — Ao pronunciar o nome, sua voz baixou para um tom mais grave, quase um sussurro carregado de peso, e ela apertou ligeiramente os dedos ao redor da xícara, a porcelana rangendo sutilmente sob a pressão, enquanto uma brisa mais forte fazia as folhas da glicínia farfalharem acima delas, como se o vento carregasse o eco de memórias antigas e dolorosas.
O nome caiu sobre a mesa como uma pedra em um lago, silenciando a conversa. O ar ficou mais frio. Charlotte e Mirai se entreolharam, a confusão clara em seus olhos. O silêncio se estendeu por um momento, interrompido apenas pelo zumbido distante de uma abelha e pelo leve tilintar de uma colher sendo pousada no pires, enquanto o sol filtrado pelas folhas parecia perder um pouco de seu brilho, lançando sombras mais longas sobre a mesa e acentuando as expressões intrigadas das garotas.
— Quem é essa? — perguntou Sophi, a curiosidade agora aguçada pela mudança repentina de atmosfera. Sua voz saiu baixa e intrigada, com uma leve inclinação para frente na cadeira, os olhos fixos em Vivian, enquanto ela sentia um arrepio sutil percorrer sua espinha, como se o nome carregasse uma energia própria que alterava o ar ao redor.
Vivian olhou para os rostos curiosos à sua volta e uma ideia se formou em sua mente. Ela ajeitou a xícara de chá, o gesto lento e deliberado. — Tive uma ideia — disse ela, a voz agora calma, mas com um novo peso. — Vou lhes contar uma história. De muito tempo atrás. Talvez com ela, Sophi, você consiga aprender o que quer sobre o Kai. E, de quebra, talvez vocês entendam o meu ponto de vista também. — Seus dedos traçaram o aro da xícara com mais lentidão, como se estivesse reunindo forças das memórias, e seus olhos se suavizaram ligeiramente, refletindo uma melancolia profunda, enquanto uma pétala solitária caía bem no centro da mesa, como um marcador para o início da narrativa.
Ela sorriu, um sorriso melancólico que não alcançava seus olhos. — E, afinal... chá sempre combina com uma boa história. — O sorriso se estendeu por um instante, mas seus olhos permaneceram distantes, como se já estivessem perdidos no passado, e ela tomou um gole lento do chá, o vapor embaçando seus cílios por um breve momento, adicionando um véu etéreo à sua expressão.
A fumaça perfumada subia de suas xícaras, espirais brancas que dançavam no ar da tarde. Elas se ergueram, subindo cada vez mais alto, quase que se misturando às nuvens brancas e preguiçosas que flutuavam no céu azul de Babylon. E, com a fumaça, o tempo pareceu se desfazer, voltando para uma época em que Vivian e Kai eram mais novos. As espirais giravam devagar, carregando o aroma floral e herbal para o alto, como se fossem fios tecendo uma ponte entre o presente e o passado, enquanto o sol começava a baixar ligeiramente no horizonte, tingindo o céu de tons dourados que se refletiam nas pétalas caídas, e o pátio parecia se aquietar ainda mais, como se o mundo inteiro prendesse a respiração para ouvir a história que estava prestes a ser contada, plantando sementes sutis de compreensão sobre as raízes da dúvida que começavam a se enraizar na mente de Kai, longe dali.
Parte 3
Vivian tomou um gole de seu chá, o olhar perdido nas espirais de vapor que subiam. A atmosfera no café, antes leve e cheia de provocações, tornou-se séria, expectante. Sophi, Charlotte e Mirai a encaravam, prontas para ouvir. O vapor do chá dançava em finas espirais que se desfaziam lentamente no ar, refletindo a luz dourada do sol poente que filtrava-se pelas folhas da glicínia, tingindo o pátio com tons quentes de âmbar e laranja. O aroma doce do chá de camomila se misturava ao perfume floral, criando uma aura quase hipnótica, enquanto o som distante de um sino de vento tilintava suavemente, ecoando no pátio como um lembrete do tempo que se esvaía. Vivian segurava a xícara com ambas as mãos, os dedos traçando a borda com um toque delicado, quase reverente, como se estivesse segurando não apenas o chá, mas também o peso das memórias que carregava. Seus olhos, de um violeta profundo, pareciam fixos em um ponto além do horizonte, e sua postura, embora elegante, deixava entrever uma tensão sutil – os ombros levemente curvados, como se carregassem o fardo de anos de arrependimentos.— Pra entender o Kai... — começou Vivian, a voz calma, mas carregada com o peso de memórias antigas. — Vocês precisam entender a forma como fomos criados. Naquele tempo, a paz que a gente tem hoje era ainda mais frágil. — Sua voz era suave, mas tinha um tom cadenciado, como o de uma contadora de histórias, transportando suas ouvintes para outro lugar, outro tempo. Cada palavra parecia cuidadosamente escolhida, e o leve tremor em sua entonação traía a emoção que ela tentava conter, enquanto uma brisa fria soprou, fazendo as pétalas roxas da glicínia caírem em uma dança lenta ao redor da mesa, como se a própria natureza estivesse atenta à história que se desdobrava.
Naquela época, os Scarlune haviam sido contratados pela Távola Redonda. Não pra uma guerra aberta, mas como uma espécie de adaga nas sombras, um suporte silencioso e letal. O alvo: vampiros que tinham voltado a causar problemas. A luz do sol poente lançava sombras longas pelo pátio, e o crepúsculo parecia ecoar a escuridão daquele período, como se o próprio céu de Babylon estivesse se alinhando com a narrativa de Vivian.— O Tratado de Paz, firmado pela Rainha Demônio Vampira, Carmilla, mudou tudo — explicou Vivian, os olhos semicerrados enquanto relembrava. — Com o sangue sintético, o B2, a caça brutal aos humanos acabou. Mas a paz nunca foi aceita por todos. Os vampiros mais velhos, os de sangue puro, rejeitavam Carmilla. Achavam que ela não era uma vampira de verdade, e o B2... pra eles, era uma afronta, uma ração indigna. — Sua voz carregava um leve tom de desprezo, como se ela própria sentisse a arrogância daqueles vampiros, e ela girou a xícara lentamente entre os dedos, o líquido dentro refletindo a luz em pequenos brilhos dourados, enquanto o vento trazia o som distante das cachoeiras da ilha flutuante, um murmúrio que parecia sublinhar a tensão da história.Um desses focos de resistência era o Reinado da Meia-Lua.— Era uma cidade vampírica antiga, governada pela Sacerdotisa da Morte, uma das maiores nobrezas de sangue puro — continuou Vivian, o olhar distante, como se visse as torres escuras e os salões de pedra daquela cidade em sua mente. — No papel, eles aceitavam o tratado de Carmilla. Mas, nos bastidores, a história era outra. Eles se recusavam a viver como gado, a depender do sangue sintético. E pra manter o estilo de vida deles, fizeram um pacto com o diabo. Um pacto com Gaia. — Sua voz baixou ao mencionar Gaia, quase como se o nome por si só fosse um tabu, e ela inclinou a cabeça ligeiramente, o cabelo caindo sobre um ombro como uma cortina castanha, enquanto o ar ao redor parecia ficar mais denso, carregado com o peso daquela revelação.Um murmúrio de choque passou pelas garotas. Gaia, o reino anti-sobrenatural. Sophi arregalou os olhos, o garfo que segurava parando a meio caminho do prato, enquanto uma pétala de glicínia caiu bem ao lado de sua mão, como se sublinhasse a gravidade do momento. Charlotte prendeu a respiração, o movimento de suas mãos congelando no ar, e Mirai inclinou-se para frente, os olhos brilhando com uma mistura de curiosidade e inquietação, seus dedos tamborilando levemente na mesa, um som abafado que ecoava a tensão crescente.— Era um acordo de pura hipocrisia — disse Vivian, com um toque de desdém que fez seus lábios se curvarem para baixo. — Gaia, com seu comércio de escravos, fornecia "alimento" em segredo. Em troca, o Reinado oferecia capital, cristais de Ether e mercenários pra fazer o trabalho sujo deles. Por um tempo, funcionou direitinho, até que as coisas começaram a ficar barulhentas demais, e a Távola Redonda não pôde mais fingir que não via. — Ela fez uma pausa, tomando outro gole de chá, o vapor subindo e embaçando seus cílios por um instante, enquanto o tilintar suave da xícara contra o pires parecia marcar o ritmo da narrativa, como um metrônomo guiando suas palavras.O que se descobriu foi ainda mais perturbador. Gaia não queria só dinheiro. Seus pedidos começaram a ficar... estranhos.— No começo, pediam vampiros pra ataques encenados. Uma forma de espalhar medo do sobrenatural e manter a população sob controle — continuou Vivian, a voz agora mais baixa, quase conspiratória. — Depois, começaram a pedir vampiros que não eram mortos... eles simplesmente sumiam. E o pior veio quando exigiram uma vampira de sangue puro, da linhagem da Sacerdotisa da Morte. A filha dela. — Seus olhos se estreitaram, e ela apertou os lábios em uma linha fina, como se o próprio pensamento a revoltasse, enquanto uma brisa mais forte fez as folhas da glicínia farfalharem, algumas pétalas caindo sobre a mesa como lágrimas roxas, refletindo a gravidade da revelação.— Que nojo... — sussurrou Charlotte, cobrindo a boca com a mão, os olhos arregalados de horror. Sua voz tremia ligeiramente, e ela inclinou o corpo para trás na cadeira, como se quisesse se afastar da história, enquanto seus dedos apertavam o guardanapo com força, amassando-o em um bolo irregular.— Gaia cortou o comércio pra forçar a mão deles — concluiu Vivian, o tom carregado de amargura. — O Reinado da Meia-Lua ficou sem saída, sem sua fonte de alimento. E mesmo com todas as investigações dos Scarlune, até hoje ninguém sabe por que Gaia queria aquela vampira. Ninguém sabe o que aconteceu com os vampiros que sumiram. — Ela ergueu o olhar, fixando-o em Sophi, e havia uma intensidade em seus olhos que parecia atravessar a garota, como se a estivesse desafiando a absorver a gravidade do que dizia.— E foi aí que a gente entrou — disse Vivian, a voz ganhando um tom mais firme. — Naquela época, durante a escolta da princesa vampira até a fronteira de Gaia, o nosso time, o time meu e do Kai, foi enviado pra uma missão. — Ela fez uma pausa, a memória daquela noite escura e fria clara como o dia em sua mente. Seus dedos apertaram a xícara com um pouco mais de força, o calor do chá contrastando com o frio que parecia emanar de suas palavras, enquanto o sol começava a se pôr, tingindo o céu de tons vermelho-sangue que refletiam nas pétalas caídas ao redor.— Nosso objetivo era simples: parar o transporte, impedir o acordo e resgatar a filha da Sacerdotisa da Morte. — A voz de Vivian permaneceu calma, mas as garotas à sua volta sentiram a temperatura cair. A história que ela contava não era um conto de fadas. O pátio, antes acolhedor, agora parecia mais sombrio, com as sombras das folhas da glicínia se alongando sobre a mesa, como dedos de uma mão invisível que tentava tocar as memórias que Vivian desenterrava.
— Naquela época — começou ela, o olhar fixo em um passado distante —, eu era bem diferente. Mais mimada, mais arrogante. Ser uma Scarlune com o gene vampírico dominante me fazia sentir superior, mas também... terrivelmente sozinha. — Sua voz suavizou, carregada de uma melancolia que fez suas sobrancelhas se franzirem ligeiramente, enquanto ela traçava o aro da xícara com o polegar, o movimento lento e quase inconsciente, como se estivesse tentando ancorar-se no presente enquanto mergulhava no passado.Ela descreveu um tempo em que nunca sentiu o carinho dos pais. Blade, seu irmão mais velho, sempre foi distante, perdido em seus próprios planos. E sua mãe, Rani... Rani parecia mais obcecada por "Dante", o irmão que acreditavam estar morto, do que pelos filhos vivos. — Era como se ela vivesse pra um fantasma — disse Vivian, a voz tingida de uma dor antiga, enquanto uma pétala de glicínia caiu diretamente em sua xícara, flutuando na superfície do chá como um lembrete efêmero da fragilidade daquelas memórias.— E tinha o Kai — continuou ela, a voz ganhando um toque de amargura. — Eu não conseguia me dar bem com ele. Ele era estranho, calado, e o fato de ser um clone do Dante me irritava pra caramba. Pra mim, ele era a prova viva de que minha mãe se importava mais com um eco do passado do que comigo. — Seus olhos se estreitaram, e ela mordeu o lábio inferior por um instante, como se estivesse lutando contra a dor que aquelas palavras evocavam, enquanto o vento soprava novamente, fazendo seus cabelos balançarem suavemente, alguns fios grudando em seus cílios.Naquela época, a casa dos Scarlune, Threshold, era um vespeiro de atividade. Além das missões com vampiros, eles eram contratados por Umbra pra apoiar a Guerra de Qin. A casa estava sempre cheia, com Scarlunes buscando glória e a chance de entrar em um reino que proibia humanos. O ar em Threshold parecia carregado de tensão, com o som constante de espadas sendo afiadas, botas ecoando nos corredores de pedra e vozes abafadas discutindo estratégias, enquanto o cheiro de ferro e pólvora pairava como uma névoa invisível.— Eu tava procurando os outros pra missão — narrou Vivian, a voz mais firme agora, como se estivesse se preparando para o peso do que vinha a seguir —, quando ouvi um barulho vindo do pátio de treinamento. — Ela inclinou a cabeça, os olhos fixos em um ponto invisível, enquanto o som do sino de vento ecoava novamente, como um eco do passado que se misturava ao presente.
A memória era nítida. Um Kai muito mais novo, caído no chão de pedra, com sangue escorrendo do nariz. Sobre ele, um jovem Ozymandias, um dos líderes de casa, o olhava com um desdém entediado. O pátio era um espaço aberto, cercado por colunas de pedra desgastadas pelo tempo, com o sol da manhã lançando sombras duras no chão, onde rachaduras se espalhavam como cicatrizes. O ar estava pesado com o cheiro de terra úmida e suor, e o som de golpes ecoava, misturado ao canto de corvos que pousavam nos telhados próximos, suas penas negras brilhando sob a luz. Kai, com o rosto suado e manchado de poeira, tentava se levantar, os punhos cerrados tremendo de raiva, enquanto gotas de sangue pingavam no chão, formando pequenas poças escuras que refletiam o céu acima.— Como eu imaginava. Você ainda não é tão interessante quanto o filho do Ryu — disse Ozymandias, a voz arrastada, quase entediada. Ele estava encostado em uma coluna, os braços cruzados, os cabelos loiros desgrenhados pelo vento, enquanto seus olhos avaliavam Kai com uma mistura de desprezo e curiosidade, como se ele fosse um brinquedo quebrado.— O que você tá falando, seu idiota?! — rosnou Kai, a voz rouca e cheia de desafio, enquanto se esforçava para se levantar, a poeira grudando em seu rosto suado, os cabelos brancos caindo sobre os olhos, que brilhavam com uma fúria quase selvagem. Ele limpou o sangue do nariz com as costas da mão, o movimento rápido e desleixado, deixando uma mancha vermelha em sua pele.Vivian observava de longe, escondida atrás de uma coluna, a curiosidade superando qualquer instinto de intervir. Seu coração batia rápido, o som abafado pela pedra fria contra suas costas, enquanto ela segurava a respiração, os dedos apertando o tecido do uniforme com força, como se estivesse tentando se ancorar na realidade enquanto espionava a cena.— Eu sempre quis lutar com o filho mais velho do Ryu, o tal do Dante — continuou Ozymandias, bocejando com um desdém exagerado, o som ecoando no pátio silencioso. — Essa tal "geração anormal" dos Scarlune parecia coisa de lenda. O incidente da Torre Dates só deixou ele mais interessante. Tsc. Que desperdício. Achei que, por ser um clone dele, você ia acabar valendo a pena algum dia. — Ele deu um passo à frente, o couro de suas botas rangendo contra a pedra, e o vento soprou, levantando poeira ao redor deles, como se o próprio pátio estivesse reagindo à tensão.Kai saltou na direção dele com um chute selvagem, o movimento rápido e desajeitado, impulsionado por pura raiva. O ar pareceu vibrar com o impacto, mas Ozymandias interceptou o golpe com outro chute, com uma precisão casual que beirava o desinteresse, jogando Kai de volta ao chão. O impacto fez um baque surdo, ecoando como um trovão baixo, enquanto poeira subia em uma nuvem densa, e Kai rolava, o corpo tremendo de exaustão e fúria.— Já te disse, garoto. Não importa quantas vezes você venha pra cima, seus golpes não vão me acertar — disse Ozymandias, a voz agora com um tom de tédio cortante, enquanto ele ajustava a postura, os ombros relaxados, mas os olhos afiados, como os de um predador entediado brincando com a presa.Kai se levantou de novo, o corpo cambaleando, e vomitou no chão, o som úmido e áspero ecoando no pátio. Ele limpou a boca com as costas da mão, o sangue e o suor misturando-se em sua pele, enquanto seus olhos ardiam com uma determinação teimosa, quase suicida. — Fica quieto, seu idiota — rosnou ele, a voz tremendo de raiva. — Todo mundo sabe que você se acha o maioral, mas foge de encarar a Bishamon, a que todo mundo diz que é a mais forte da nossa geração. Não quero papo de covarde. Você não passa de um degrau que eu vou pisar pra subir. — Suas palavras saíram entre dentes cerrados, cada sílaba carregada de veneno, enquanto ele se equilibrava, o peito subindo e descendo rapidamente, o ar saindo em baforadas curtas e visíveis no frio da manhã.A provocação acertou em cheio. O tédio nos olhos de Ozymandias foi substituído por uma faísca de irritação genuína, seus lábios se curvando em um sorriso perigoso. Ele socou Kai com força total, o som do impacto ecoando pelo pátio como o estalar de um chicote, esmagando-o contra o chão e deixando-o inconsciente. O corpo de Kai deslizou alguns centímetros, a poeira subindo em uma nuvem que obscureceu momentaneamente a cena, enquanto o sangue escorria de sua boca, manchando as pedras abaixo. Quando Ozymandias ergueu o punho para um segundo golpe, uma mão o segurou com firmeza. Era Heisen.— Qual é o problema? — rosnou Ozymandias, a voz carregada de frustração, enquanto tentava se soltar, o movimento fazendo suas mangas ondularem como asas de um pássaro irritado.— Love não tá por aqui. Alguém precisa impedir que você faça algo idiota — disse Heisen, a voz calma, quase monótona, mas com um peso que silenciava qualquer réplica. Ele mantinha o aperto firme no pulso de Ozymandias, os olhos fixos e inabaláveis, enquanto o vento soprava, carregando o cheiro metálico do sangue de Kai pelo pátio.Ozymandias se soltou com um puxão brusco. — Tô perdendo tempo com esse clone idiota. Vim pegar uma missão e deixar a Raikou encontrar a irmã dele. — Ele cuspiu no chão, o gesto cheio de desdém, e se afastou, suas botas ecoando com força contra as pedras, enquanto o sol subia mais alto, lançando uma luz dura que destacava as rachaduras no chão do pátio.Heisen suspirou, olhando para o corpo caído de Kai. — Quanto tempo você vai ficar escondida aí? — perguntou, a voz baixa, mas cortante, como se já soubesse da presença de Vivian.Vivian achou que ele falava com ela, o coração disparando enquanto dava um passo hesitante para fora das sombras, o uniforme roçando contra a coluna fria. Mas então notou uma sombra se movendo. Rani estava parada atrás dele. Sua mãe. Vivian recuou rapidamente, o coração batendo forte contra as costelas, o som abafado pela pedra fria que pressionava suas costas, enquanto o ar parecia ficar mais pesado, carregado com o peso da presença de Rani.— O que você tava pensando, Rani? — perguntou Heisen, a voz agora com um tom de frustração contida. — Foi você que colocou essa ideia na cabeça do Ozymandias sobre o Kai. — Ele cruzou os braços, a postura rígida, enquanto o vento levantava poeira ao redor, como se o pátio estivesse reagindo à tensão entre eles.Rani sorriu, um sorriso inocente e venenoso, que não alcançava seus olhos frios e calculistas. — Não sei do que você tá falando — disse ela, a voz doce, mas com um tom que parecia pingar ácido. — Eu, como boa mãe, só falo do meu filho pro Ozy quando ele vem contar sobre as missões. Não tenho culpa se ele ficou com ideias estranhas. — Ela inclinou a cabeça, os cabelos negros caindo como uma cortina sobre um ombro, e o brilho do sol refletiu em seus olhos, dando-lhes um aspecto quase predatório, enquanto o ar ao redor parecia esfriar, como se sua presença sugasse o calor do ambiente.Ela se aproximou do corpo caído de Kai, o olhar frio e analítico, como um cientista examinando um espécime. — Realmente... ele tá bem longe do que eu queria. Uma pena — disse ela, a voz desprovida de emoção, enquanto se agachava ligeiramente, os dedos traçando o ar acima do rosto de Kai, sem tocá-lo, como se estivesse avaliando um experimento fracassado. O sol refletia em suas unhas bem cuidadas, lançando pequenos brilhos que contrastavam com a escuridão de sua expressão.— O que você quer dele, afinal? — perguntou Heisen, a frustração agora clara em sua voz, enquanto dava um passo à frente, os punhos cerrados ao lado do corpo. — Você jogou ele contra todo mundo, e mesmo depois de ele sobreviver a tudo, você ainda o trata como um experimento que não deu certo! — Sua voz tremia ligeiramente, e ele apontou para Kai, o gesto carregado de indignação, enquanto o vento soprava, levantando poeira que pairava entre eles como uma cortina fina.O sorriso de Rani desapareceu. Um olhar assassino, frio e puro, tomou seu lugar. A temperatura do pátio pareceu despencar, o ar ficando pesado e opressivo, como se a própria presença dela fosse uma força gravitacional. — Heisen. Não se meta na forma como eu crio meus filhos. Ou eu acabo com você — disse ela, cada palavra cortante como uma lâmina, enquanto seus olhos se fixavam nos dele, brilhando com uma intensidade que parecia capaz de congelar o sangue.Heisen deu um passo para trás, instintivamente, o rosto pálido por um instante, enquanto o vento uivava baixo, carregando o eco de suas palavras pelo pátio. — Então diz isso na frente dele. Chama ele de filho — retrucou ele, a voz mais baixa agora, mas ainda desafiadora, enquanto apontava para Kai, que permanecia inconsciente, o peito subindo e descendo em respirações rasas.— E onde tá a graça disso? — respondeu Rani, a voz agora com um tom de diversão fria, enquanto se levantava, o movimento fluido e quase sobrenatural, como o de uma predadora se afastando de uma presa já derrotada. Ela se virou e começou a se afastar, seus passos ecoando no silêncio do pátio, cada batida das botas contra a pedra como um martelo batendo em um prego, enquanto o sol lançava sua sombra longa e distorcida, que parecia engolir a luz ao seu redor.Naquele momento, escondida nas sombras, sentindo o frio da pedra contra suas costas, Vivian percebeu a verdade. Não era que ela fosse tratada de forma ruim. Não era que não recebesse amor. Era que, para sua mãe, para Rani, nenhum de seus filhos era nada mais que um simples projeto de ciência. E Kai, o clone do filho perfeito, era o projeto mais defeituoso de todos. Seu coração disparou, o som abafado pela pedra, enquanto lágrimas quentes começavam a se formar em seus olhos, mas ela as engoliu, apertando os punhos com força, as unhas cravando nas palmas, enquanto o pátio parecia se fechar ao seu redor, o peso daquela revelação esmagando-a como uma onda invisível.
Parte 4
— E foi assim — disse Vivian, sua voz trazendo as garotas de volta ao presente do café, a xícara agora fria em suas mãos. A brisa suave da tarde agitava as folhas da glicínia acima, fazendo pétalas roxas flutuarem como flocos de neve coloridos, caindo lentamente sobre a mesa de madeira polida, onde o reflexo do sol poente criava um brilho dourado que dançava nas bordas das xícaras. O aroma do chá, agora mais fraco, ainda pairava no ar, misturando-se ao perfume doce das flores, enquanto o som distante das cachoeiras de Babylon ecoava como um murmúrio constante, um lembrete da vastidão do mundo além do pátio tranquilo. Vivian repousou a xícara com um movimento lento, quase reverente, seus dedos traçando o aro de porcelana como se tentasse ancorar as emoções que a história havia desenterrado. Seus olhos, de um violeta profundo, brilhavam com uma mistura de nostalgia e dor, e um leve franzir de suas sobrancelhas traía o peso das memórias que ainda a perseguiam. — Eles se afastaram. E, um tempo depois, nosso grupo foi reunido. Estávamos nas ilhas que dividiam os reinos de Alexandria e Gaia, prontos pra cumprir nossa missão. Prontos pra interceptar a princesa vampira.
A fogueira estalava, lançando faíscas alaranjadas na escuridão da noite. O cheiro de pinho queimado enchia o ar, misturado ao aroma úmido da terra e ao leve toque metálico do orvalho que começava a se formar na vegetação ao redor. As chamas dançavam, projetando sombras oscilantes nos rostos sérios do grupo, enquanto o crepitar da madeira parecia ecoar a tensão que pairava entre eles. O céu acima era um tapete de estrelas, pontilhado por constelações que pareciam observar em silêncio, e a brisa fria da noite fazia as capas dos uniformes esvoaçarem levemente, como asas de pássaros inquietos. Hyori, com a autoridade natural de uma líder, tomou a palavra, sua postura ereta e confiante, os cabelos negros presos em um rabo de cavalo que balançava ligeiramente com cada movimento de sua cabeça. A luz do fogo refletia em seus olhos, dando-lhes um brilho quase sobrenatural, enquanto ela segurava um mapa rudimentar, as bordas amassadas pelo uso constante, traçando linhas com o dedo para ilustrar o plano.— Amanhã, o melhor é dividir o grupo — disse Hyori, a voz firme, cortando o silêncio da noite como uma lâmina. — Uma frente pra interceptar a escolta da princesa e outra pra lidar com os reforços que vão vir de Gaia. Precisamos neutralizar os guardas, mas também pegar os batedores. O objetivo é conseguir o máximo de informações possível. — Ela apontou para pontos específicos no mapa, o dedo traçando caminhos invisíveis na escuridão, enquanto o fogo lançava sombras que pareciam dançar em sincronia com suas palavras, criando uma atmosfera de urgência e determinação.— E quem você imitou dessa vez pra estar liderando tão bem assim? — provocou Akira, com um sorriso de canto que revelava dentes brancos. Ele estava recostado contra uma rocha, uma perna dobrada casualmente, enquanto girava uma pequena faca entre os dedos com uma destreza quase hipnótica, o metal refletindo a luz do fogo em lampejos rápidos. — Minha irmã? Ou será que foi a Levy? — Sua voz era leve, mas carregava um toque de sarcasmo, e ele inclinou a cabeça, os cabelos pretos caindo sobre os olhos, que brilhavam com uma mistura de diversão e desafio.— Para de perder tempo com isso — retrucou Hyori, sem se abalar, os olhos estreitando-se ligeiramente enquanto cruzava os braços, o movimento fazendo o tecido de seu uniforme esticar contra os ombros. — Foco no plano, Akira. Não temos tempo pra suas brincadeiras. — Sua voz tinha um tom de autoridade que silenciava qualquer réplica, e ela voltou o olhar para o mapa, a luz do fogo destacando as linhas duras de seu rosto, como se a própria chama reconhecesse sua determinação.Enquanto eles discutiam os detalhes, Kai continuava em silêncio, o olhar perdido no céu estrelado. Sentado um pouco afastado do grupo, ele estava encostado em uma árvore, os braços cruzados sobre o peito, o uniforme sujo de terra e poeira da longa viagem. Seus cabelos brancos balançavam levemente com a brisa, fios soltos caindo sobre a testa, enquanto seus olhos refletiam as estrelas acima, mas pareciam enxergar algo muito além delas. A luz do fogo lançava sombras em seu rosto, destacando as linhas duras de sua mandíbula e o leve franzir de suas sobrancelhas, como se ele estivesse preso em pensamentos que o consumiam. Vivian o observava de soslaio, sentada a poucos metros, os joelhos puxados contra o peito, o saco de dormir dobrado ao seu lado. A revelação que tivera sobre sua mãe, Rani, pintava a cena com uma nova e dolorosa clareza. Cada estalo da fogueira parecia ecoar as palavras duras de Rani, e o calor das chamas não conseguia afastar o frio que se instalava em seu peito.Ele não é um monstro, pensou Vivian, o coração apertado, enquanto o fogo lançava reflexos dourados em seus olhos, que começavam a marejar. Ele foi criado pra ser um. Cada palavra cruel que eu já disse pra ele, cada olhar de desprezo... eram ecos da voz da Rani? Minha mãe não o criou, ela o armou. Armou ele contra o mundo, sussurrando que toda mão estendida escondia um punhal. E eu, sem perceber, ajudei a afiar essa lâmina. Seus dedos apertaram o tecido do saco de dormir, as unhas cravando na lona áspera, enquanto uma brisa fria soprou, fazendo as chamas dançarem e lançarem sombras que pareciam imitar os conflitos internos dela.— Todo mundo tá de acordo com o plano? — perguntou Hyori, erguendo o olhar do mapa, sua voz cortando o murmúrio da discussão.Vivian assentiu, um movimento rápido e quase automático, enquanto tentava esconder as emoções que borbulhavam em seu peito. Akira deu de ombros, a faca parando entre seus dedos com um movimento preciso, como se ele estivesse entediado, mas seus olhos brilhavam com uma antecipação contida. Kai apenas estalou a língua, o som seco ecoando na noite, e disse: — Façam o que acharem melhor. — Sua voz era baixa, quase desinteressada, mas havia um tom de impaciência, e ele mudou de posição, o movimento fazendo a terra sob seus pés ranger levemente, enquanto o fogo lançava sombras que pareciam dançar ao redor dele, como se reconhecessem a energia volátil que ele carregava.A noite se arrastou. Vivian mal conseguiu dormir. Ela se revirou no saco de dormir, o som da fogueira estalando fazendo pouco para aquecer a dúvida gelada em seu peito. O tecido áspero roçava contra sua pele, e o chão duro sob ela parecia pulsar com a energia inquieta da ilha. Aproximar-se de Kai agora não seria apenas difícil; parecia uma traição a anos de uma rivalidade que, ela percebia agora, fora construída sobre uma mentira. Eu tenho esse direito? As perguntas a atormentaram, cada uma como uma pedra caindo em um lago, criando ondulações que não a deixavam descansar. O som distante de criaturas noturnas – o canto de um pássaro desconhecido, o farfalhar de folhas agitadas pelo vento – parecia amplificar sua inquietação, enquanto a primeira luz cinzenta do amanhecer começava a tingir o céu, suavizando as estrelas até que desaparecessem.Seguindo o plano, eles se separaram ao amanhecer. Vivian ficou com Kai, prontos para interceptar o transporte da princesa. O ar da manhã era frio, carregado com o cheiro de orvalho e terra úmida, e o som de seus passos na trilha de cascalho ecoava como um tambor baixo, acompanhado pelo canto esporádico de pássaros que voavam entre as árvores esparsas. Durante todo o tempo, Vivian pensava em como deveria agir, que palavras usar. Mas o silêncio entre eles era uma muralha, mais sólida que qualquer fortaleza. Kai caminhava à frente, os ombros tensos, os punhos cerrados ao lado do corpo, o uniforme manchado de poeira e musgo. Cada passo dele parecia carregar uma determinação feroz, mas seus olhos, quando ela conseguia vislumbrá-los, estavam distantes, como se ele estivesse lutando contra uma batalha interna que ela não podia alcançar. Vivian sentia o peso do próprio silêncio, o coração batendo rápido enquanto tentava encontrar uma brecha, uma maneira de cruzar a distância que os separava, mas cada tentativa morria em sua garganta, sufocada pelo medo de dizer a coisa errada.A carruagem, um veículo blindado e sem janelas, surgiu na estrada poeirenta, levantando uma nuvem de poeira que pairava no ar como uma névoa dourada sob o sol da manhã. O ronco grave do motor ecoava pela planície, misturado ao som de cascos de cavalos que puxavam o veículo, seus cascos batendo contra o chão em um ritmo constante e ameaçador. Era a hora.— Agora! — sussurrou Vivian, a voz baixa, mas carregada de urgência, enquanto se agachava atrás de um arbusto, os dedos apertando o cabo de suas lâminas etéreas, que pulsavam com uma luz fraca, como estrelas capturadas em suas mãos.Por um piscar de olhos, o mundo se distorceu ao redor de Kai, as cores se misturando como tinta em água. Um zumbido baixo, como o de uma corda de harpa sendo esticada ao limite, ressoou em seus ouvidos, e eles estavam nas rodas traseiras do veículo. O ar ao redor vibrou com a energia do Ether, e o cheiro metálico do aço aquecido pelo sol misturava-se ao pó da estrada. Com um movimento rápido, Vivian invocou suas lâminas etéreas, que se assemelhavam a uma tesoura gigante, sentindo o peso familiar em suas mãos. O metal etéreo brilhava com uma luz prateada, pulsando como se estivesse vivo, e ela as bateu contra o eixo da carruagem com um grito. O som foi um guincho agudo e ensurdecedor de metal torturado, e faíscas choveram na poeira da estrada enquanto o aço cedia, o eixo partindo-se com um estalo que ecoou como um trovão. O motorista só entendeu o que havia acontecido quando era tarde demais, a carruagem tombando para o lado com um estrondo que fez o chão tremer, levantando uma nuvem de poeira que obscureceu o sol por um instante.Os dois avançaram para a parte de trás, prontos para pegar a princesa vampira. Vivian sentia o coração disparado, o suor escorrendo pela nuca, enquanto o calor da estrada parecia queimar através de suas botas. Mas a porta de aço foi arrancada de dentro para fora, chutada com uma força monstruosa, e voou longe, caindo com um baque na terra seca. Da escuridão do interior, saiu um homem enorme e musculoso, carregando uma cruz de prata maciça nas costas que brilhava sob o sol, refletindo a luz em raios ofuscantes que pareciam cortar o ar. Seus cabelos grisalhos esvoaçavam com o vento, e seus olhos, de um vermelho profundo, brilhavam com uma mistura de crueldade e diversão.Ao ver o rosto dele, Vivian reagiu primeiro. — Kai, cuidado! — gritou ela, a voz cortando o ar como uma lâmina. — É o Solovan, o Vampiro da Cruz de Prata! Procurado pela Guilda de Caçadores! — Seu corpo ficou tenso, as lâminas etéreas brilhando com mais intensidade, enquanto ela se posicionava ao lado de Kai, o coração batendo tão rápido que parecia ecoar em seus ouvidos.Solovan, um antigo caçador de lobisomens que virou mercenário, sorriu, os dentes afiados reluzindo sob o sol. — Tô impressionado que as crianças de hoje ainda sabem meu nome. Mas tô decepcionado se esse é o time que mandaram atrás de mim — disse ele, a voz grave e rouca, como se carregasse o peso de séculos de violência, enquanto ajustava a cruz em suas costas, o metal rangendo sob seus dedos.— Não viemos atrás de você. Viemos pela carga que tá transportando — retrucou Vivian, a voz firme, mas com um leve tremor de adrenalina. Ela segurava as lâminas com mais força, os braços tensos, enquanto o vento levantava poeira ao redor, fazendo seus cabelos esvoaçarem como uma cortina castanha.— Escolheram o pior ponto do trajeto pra essa emboscada, então — riu Solovan, o som gutural ecoando pela planície. — Logo os reforços de Gaia vão chegar. E vocês dois vão virar pó. — Ele deu um passo à frente, o chão tremendo levemente sob seu peso, enquanto a cruz de prata refletia a luz em seus olhos, dando-lhes um brilho quase demoníaco.— A gente sabe dos reforços. E mandamos uma equipe pra cuidar deles — disse Vivian, tentando manter a confiança, embora sua voz vacilasse ligeiramente. Ela lançou um olhar rápido para Kai, que permanecia em silêncio, os punhos cerrados, o corpo tenso como uma corda prestes a se romper.Solovan gargalhou, o som reverberando como um trovão. — Então é melhor que tenham mandado os melhores. Do outro lado, tão sendo protegidos pelo Unvo, meu velho parceiro. Se vocês sabem quem eu sou, devem saber quem ele é. A recompensa por ele é bem maior que a minha. A essa hora, seus amigos já devem estar mortos. — Ele inclinou a cabeça, o sorriso alargando-se, enquanto o vento soprava, levantando mais poeira que pairava como uma cortina entre eles.De repente, um barulho de explosão distante ecoou dos fundos da estrada, o som grave e abafado, como se a própria terra tivesse rugido. A poeira tremeu no ar, e o coração de Vivian disparou, o medo apertando seu peito como uma garra invisível.— Eu avisei — disse Solovan, o tom carregado de satisfação.Vivian se preocupou, o coração apertado. Ela se distraiu, olhando para trás por uma fração de segundo, os olhos buscando o horizonte onde a explosão ecoara, o medo de que seus companheiros tivessem falhado congelando seu sangue.Foi o suficiente.Solovan avançou na direção dela, rápido como uma sombra, a mão em forma de garra pronta para estraçalhá-la. O ar pareceu vibrar com a velocidade dele, e o brilho da cruz de prata cortou a luz do sol, criando um clarão ofuscante.Mas o golpe nunca chegou. Kai, que estivera em silêncio o tempo todo, se moveu. Não com a velocidade de um raio, mas com uma certeza brutal. Ele se tornou uma parede entre ela e a morte. O impacto do golpe de Solovan contra suas manoplas foi um trovão metálico, o choque fazendo o chão tremer e levantando uma nuvem de poeira que obscureceu o sol. Por um instante, os joelhos de Kai dobraram sob a força pura, seus músculos tremendo sob o impacto, mas ele rosnou, dentes cerrados, o som gutural ecoando como o de um animal acuado, e não cedeu um centímetro. Seus cabelos brancos esvoaçavam com o vento gerado pelo impacto, e o suor escorria por sua testa, pingando no chão enquanto seus olhos ardiam com uma determinação feroz, como se ele estivesse desafiando a própria morte.A batalha terminou com Kai expandindo o espaço dentro da cruz de Solovan, fazendo-a explodir por dentro. O som foi ensurdecedor, como o estilhaçar de mil espelhos, e fragmentos de prata voaram pelo ar, brilhando como estrelas cadentes antes de caírem na poeira. O vampiro caiu, derrotado, o corpo colapsando com um baque pesado, enquanto o cheiro de metal queimado e sangue pairava no ar. Kai, ofegante, o peito subindo e descendo rapidamente, tentou correr para ajudar a outra equipe, os punhos ainda cerrados, o rosto manchado de poeira e suor. Mas Hyori e Akira apareceram, caminhando calmamente pela estrada, os uniformes sujos, mas intactos, com sorrisos cansados nos rostos.— O quê?! — gritou Kai, a voz rouca de fúria, enquanto apontava para eles, o corpo ainda tremendo de adrenalina. — Eu não preciso da ajuda de vocês! Minha vitória perfeita foi pro espaço! — Seus olhos brilhavam com uma raiva quase infantil, e ele bateu o pé no chão, levantando mais poeira, enquanto o sol destacava as linhas duras de seu rosto, agora vermelho de frustração.Um som escapou dos lábios de Vivian, primeiro um soluço, depois uma risada genuína, borbulhante e livre, que ecoou pela planície como o canto de um pássaro. Pela primeira vez, ela não via o clone irritante ou o projeto defeituoso de sua mãe. Via seu irmão, teimoso, orgulhoso e adoravelmente ridículo em sua busca por uma honra que só ele entendia. Ela cobriu a boca com a mão, tentando conter a risada, mas seus olhos brilhavam com lágrimas de alívio, enquanto o vento soprava, levando as últimas faíscas da batalha para longe.
De volta ao café...— E foi isso — concluiu Vivian, um sorriso suave em seus lábios, enquanto repousava a xícara na mesa, o som suave do porcelana contra a madeira ecoando no silêncio do pátio. As garotas a encaravam, a história tendo lhes dado uma nova perspectiva sobre o garoto explosivo que era Kai Scarlune. O sol agora estava baixo, tingindo o céu de tons de laranja e roxo, e as pétalas da glicínia caíam com mais frequência, como se marcassem o fim da narrativa.Um silêncio pensativo se instalou, até que Charlotte, sempre a estrategista, fez a pergunta que faltava. — Mas e a princesa vampira? O que aconteceu com ela? Vocês conseguiram resgatá-la no final? — Sua voz era calma, mas carregada de curiosidade, enquanto ela inclinava-se para frente, os dedos entrelaçados sobre a mesa, os olhos fixos em Vivian.O sorriso de Vivian desapareceu, substituído por uma sombra de frustração e mistério. — Não — disse ela, a voz baixa, quase um sussurro. — Quando entramos na carruagem, ela tava vazia. Não tinha ninguém. — Seus olhos se estreitaram, e ela traçou o aro da xícara com o polegar, o movimento lento e pensativo, enquanto o vento soprava, fazendo as folhas da glicínia farfalharem como se compartilhassem o segredo.As garotas a encararam, confusas, o silêncio do pátio amplificando a tensão. Sophi inclinou-se para frente, os olhos arregalados, enquanto Mirai mordia o lábio inferior, o rosto franzido em perplexidade.— A gente interrogou o Solovan e os outros guardas — continuou Vivian, a voz agora mais firme, mas carregada de um peso sombrio. — Eles tavam tão chocados quanto a gente. Juraram que a princesa tava lá dentro um minuto antes do ataque. Ela simplesmente... sumiu. Sem deixar rastro. — Ela fez uma pausa, o olhar perdido no horizonte, enquanto o sol mergulhava ainda mais, lançando sombras longas que pareciam engolir o pátio.— Mas... como? — sussurrou Mirai, a voz quase inaudível, enquanto se inclinava para frente, os cabelos pretos com mechas brancas caindo sobre os olhos, que brilhavam com uma mistura de fascínio e inquietação.— Não sabemos — respondeu Vivian, a voz ainda mais baixa, como se temesse que as palavras fossem ouvidas por algo além das garotas. — Tudo que encontramos dentro da carruagem foram duas coisas. — Ela fez uma pausa, a memória da cena estranha ainda vívida, como se estivesse desenhada em sua mente com traços de fogo. — A primeira era um ingresso. Feito de um papel estranho, quase como veludo, com letras douradas que formavam o nome de um circo que nunca tínhamos ouvido falar: Circo Meia-Noite. — O nome pairou no ar como uma sombra, e o vento soprou mais forte, fazendo as pétalas da glicínia rodopiarem ao redor da mesa, como se o próprio mundo reagisse ao mistério.O nome fez um arrepio percorrer a espinha de Sophi, que sentiu um frio súbito, apesar do calor residual do sol. Ela apertou o caderno de esboços contra o peito, os dedos tremendo levemente, mas não disse nada, os olhos fixos em Vivian, como se esperasse que a resposta surgisse do ar.— A outra coisa — disse Vivian, a voz agora quase um sussurro, carregada de um tom sombrio — era uma marca de queimado no chão do interior da carruagem. Tinha o formato perfeito de uma silhueta humana... como a sombra da princesa, gravada a fogo no metal. Mesmo depois de investigarmos, não descobrimos nada sobre aquilo. Foi um beco sem saída. — Seus olhos se fixaram na mesa, como se pudesse ver a silhueta queimada ali, e seus dedos apertaram a xícara com força, o porcelana rangendo levemente sob a pressão.Um silêncio pesado caiu sobre a mesa, o pátio agora envolto em uma quietude quase opressiva, interrompida apenas pelo som suave do vento e pelo tilintar distante do sino. A história, que parecia ser sobre a família Scarlune, de repente se conectou com os rumores mais sombrios e bizarros que assombravam Babylon, como se as sombras do passado se estendessem até o presente.Foi Mirai quem quebrou o silêncio, tentando aliviar a tensão. — Bom... ele é bem diferente mesmo, né? — disse ela, voltando a falar de Kai, com um sorriso travesso que iluminava seu rosto. — Mesmo assim, se ele não fosse tão nervosinho, aposto que ia fazer sucesso com as garotas. Quer dizer, ele e o Dante são bem gatos. A única coisa que atrapalha é essa personalidade explosiva. — Ela deu uma risadinha, inclinando a cabeça, os cabelos loiros balançando como uma cortina, enquanto cutucava o bolo em seu prato com o garfo, como se tentasse distrair a tensão.— A personalidade dele não é tão ruim assim — murmurou Sophi, a voz tão baixa que quase se perdeu no vento. Ela olhou para baixo, os dedos traçando o contorno do caderno, enquanto o rubor subia novamente por suas bochechas, tingindo-as de um vermelho vivo.Charlotte, Vivian e Mirai se viraram para encará-la, os olhos arregalados de surpresa. Sophi ficou vermelha como um tomate, o calor subindo até as orelhas. — E-eu... esqueci uma coisa na biblioteca! — gaguejou ela, levantando-se tão rápido que a cadeira rangeu contra o chão, quase caindo. Ela agarrou o caderno e saiu apressadamente, os passos ecoando no pátio enquanto as pétalas da glicínia caíam ao seu redor, como se zombassem de seu embaraço.As garotas se despediram, rindo, o som cristalino ecoando no pátio e misturando-se ao tilintar do sino de vento. Vivian observava a amiga fugir, o coração aquecido por uma sensação de leveza. Ela viu que outras pessoas, à sua própria maneira, também estavam dispostas a ficar do lado de Kai, e isso trouxe um sorriso suave a seus lábios, enquanto o sol mergulhava no horizonte, tingindo o céu de tons de roxo profundo.— Tá com cara de mãe orgulhosa — provocou Mirai, inclinando-se para frente com um sorriso malicioso, os olhos brilhando com diversão enquanto apontava para Vivian.Vivian percebeu que estava sorrindo de orelha a orelha, o calor subindo por seu rosto. — N-não tô, não! — reclamou ela, o rosto corando enquanto tentava se recompor, ajustando o cabelo com um gesto rápido, como se isso pudesse esconder seu embaraço.Enquanto o riso delas se misturava com o aroma do chá, Vivian sentiu algo se assentar em seu peito, algo quente e firme. O vento soprou novamente, levando as últimas pétalas da glicínia pelo pátio, enquanto o céu escurecia, e as estrelas começavam a surgir, como testemunhas silenciosas de uma promessa não dita.
Parte 5
Kai continuava sentado na varanda, o olhar perdido no céu. A calmaria do dia era um contraste gritante com a tempestade em seu peito. As nuvens se moviam, preguiçosas, deslizando pelo azul infinito como pinceladas suaves em uma tela, enquanto o calor do sol aquecia a pedra fria do banco, relaxando os músculos tensos de seus ombros, mas incapaz de tocar a dúvida fria que se instalara em seu coração. O vento soprava em rajadas suaves, carregando o aroma fresco das cachoeiras distantes e o leve toque salgado do ar da ilha flutuante, fazendo os cabelos brancos de Kai balançarem, fios soltos dançando sobre sua testa, onde o suor brilhava sob a luz dourada da tarde. Seus punhos, cerrados sobre as coxas, tremiam levemente, as veias pulsando como se ecoassem o ritmo acelerado de seus pensamentos, e o som distante das águas caindo para o abismo parecia amplificar a solidão que o envolvia, como se o próprio mundo estivesse em silêncio, esperando sua próxima decisão.
De repente, a calmaria foi quebrada. Passos lentos e deliberados se aproximaram, o som quase inaudível contra o murmúrio do vento, mas preciso, como o tique-taque de um relógio em um quarto vazio. O clima pareceu esfriar, a brisa suave se tornando um sopro gélido na nuca de Kai, arrepiando a pele exposta de seus braços. Ele ergueu o olhar, os olhos estreitando-se instintivamente, enquanto o sol lançava sombras longas pelo chão de pedra polida, como se a própria luz estivesse recuando diante da presença que se aproximava.
— Vejo que você também se deixa enganar por essa falsa ilusão de paz — disse uma voz, fria e monótona, cortando o ar como uma lâmina.
Kai se levantou em um movimento rápido, o corpo já em alerta, os músculos tensionando-se como cordas de um arco prestes a disparar. Parado a poucos metros dele estava Daemon Hakurei, outro aluno da Sala -13. Seus olhos eram escuros e vazios, como poços sem fundo, e sua presença parecia sugar o calor e a cor do ambiente, transformando a varanda ensolarada em um espaço opressivo, onde até o canto distante dos pássaros parecia abafado. Daemon estava de pé, imóvel, a roupa impecável, mas ligeiramente desalinhado, como se ele não se importasse com as convenções da academia. Seus cabelos negros caíam em mechas desleixadas sobre o rosto, e a luz do sol refletia em seus olhos, dando-lhes um brilho frio, quase metálico, que parecia perfurar Kai.
Kai o analisou, a mente acelerada, lembrando-se. Foi ele quem enfrentou sozinho o avatar do Astreus da Vida. A memória daquele feito pesava no ar, e Kai sentiu um arrepio percorrer sua espinha, não de medo, mas de reconhecimento de um adversário formidável. Não gostando da forma como Daemon o encarava, como se pudesse ver através dele, Kai virou o rosto, os lábios franzidos em uma linha de desdém. — O que você quer dizer com isso? — perguntou, a voz rouca, carregada de desconfiança, enquanto cruzava os braços, o tecido do uniforme esticando-se contra seus ombros, e o vento soprava, levantando poeira fina que dançava entre eles.
— Sempre te observei, Kai Scarlune — disse Daemon, a voz monótona, desprovida de emoção, como se estivesse recitando um fato inevitável. — Porque achei que você tinha uma ambição parecida com a minha. — Ele deu um passo à frente, o som de suas botas contra a pedra ecoando baixo, mas firme, enquanto o sol lançava sua sombra longa e distorcida, que parecia se estender como uma mão invisível em direção a Kai.
— Que ambição seria essa? — retrucou Kai, os olhos estreitando-se ainda mais, enquanto sentia o peso do olhar de Daemon, como se ele estivesse tentando desmontá-lo peça por peça. Seus dedos se contraíram, os nós dos polegares pressionando contra as palmas, enquanto o vento agitava seus cabelos, alguns fios grudando no suor de sua testa.
— A busca por poder. O desejo de ficar mais forte pra nunca mais ser derrotado por ninguém — respondeu Daemon, as palavras saindo com uma certeza gélida, cada sílaba como um peso caindo sobre a varanda. Ele inclinou a cabeça ligeiramente, o movimento quase imperceptível, mas suficiente para fazer a luz do sol refletir em seus olhos, dando-lhes um brilho que parecia desafiar a própria realidade.
Kai estalou a língua, o som seco ecoando no ar, e um sorriso sarcástico curvou seus lábios. — Não faço ideia de onde você tirou essa besteira. Mas já que resolveu vir aqui bancar o falador, tem uma coisa que quero saber. — Ele deu um passo à frente, reduzindo a distância entre eles, o corpo tenso, como um lobo prestes a atacar. — Recentemente, acabei me encontrando com uns fósseis vivos. E descobri que meu ancestral, por acaso, se chamava Daemon. Igualzinho a você. Coincidência? — Sua voz era cortante, carregada de provocação, enquanto ele fixava os olhos em Daemon, buscando qualquer sinal de fraqueza.
— Eu escolhi esse nome. Peguei emprestado, porque abri mão do meu antigo — respondeu Daemon, sem rodeios, a voz tão firme que parecia esculpida em pedra. Ele não desviou o olhar, e o ar entre eles pareceu ficar mais denso, como se a própria atmosfera estivesse prendendo a respiração.
— E o que isso significa? — insistiu Kai, a voz agora com um toque de irritação, enquanto inclinava a cabeça, os cabelos balançando com o movimento, alguns fios colando na pele úmida de sua nuca.
— Não pretendo contar meus segredos pra um corvo que se contenta em ficar tomando sol o dia todo — disse Daemon, com um desprezo velado que fez seus lábios se curvarem em um meio-sorriso frio. — Mas, se você resolvesse se juntar a nós, talvez eu contasse. Kai. Ao lado deles, você nunca vai alcançar seus objetivos de verdade. Pássaros que voam sob nuvens ensolaradas nunca vão tocar o céu escuro acima das estrelas. Não como nós... os Dragões. — Suas palavras eram como uma corrente de gelo, cada uma delas caindo com precisão, e ele deu outro passo à frente, a sombra projetada pelo sol agora cobrindo metade do rosto de Kai, como se estivesse tentando engoli-lo.
Kai riu, o som alto e cortante, ecoando pela varanda como um desafio. — Entendi. Você veio aqui me recrutar porque viu o quão foda eu sou, né? — Ele cruzou os braços com mais força, o sorriso sarcástico se alargando, mas seus olhos brilhavam com uma mistura de orgulho e desconfiança, enquanto o vento soprava, levantando folhas secas que rodopiavam ao redor deles, como testemunhas inquietas da conversa.
Daemon ficou em silêncio, apenas o observando, os olhos escuros e impenetráveis, como se pudesse ver além da fachada de Kai. O riso de Kai morreu lentamente, engolido pela intensidade daquele olhar, e o clima continuou a esfriar, o ar carregado com uma tensão que parecia vibrar entre eles. Kai o encarou, a mente acelerada, e fez a pergunta que o consumia, a voz mais baixa agora, quase um murmúrio. — O que é força pra você, Hakurei? E o que você faria pra conseguir ela? — Seus olhos se fixaram nos de Daemon, buscando uma resposta que pudesse apaziguar a tormenta em seu peito, enquanto o sol lançava reflexos dourados em suas pupilas, destacando a intensidade de sua dúvida.
Daemon parou, como se considerasse a pergunta, o silêncio se estendendo como uma corda tensa. — Força é o que impede as pessoas de serem fracas — disse ele, finalmente, a voz fria e afiada como uma lâmina. — Nesse mundo, só os fortes decidem como as coisas vão ser. Os fortes dominam os fracos, moldam a realidade, não importa o que os outros sintam ou o que isso custe. A única forma de evitar isso é virando o mais forte. — Seus olhos se fixaram em Kai, intensos e vazios, como se vissem através dele, e o vento soprou mais forte, fazendo o uniforme de Daemon ondular levemente, enquanto a sombra dele parecia crescer, engolindo a luz ao redor.
— Mas pra isso — continuou ele, a voz agora mais lenta, cada palavra carregada de peso —, não existe um caminho brilhante cheio de amigos. A verdadeira força não vem de brincadeiras. Nós, da Black Dragon, também queremos matar um certo Astreus e provar nossa supremacia. E pra alcançar esse objetivo, eu andaria sobre cacos de vidro todos os dias, sem parar. — Ele fez uma pausa, os olhos nunca deixando os de Kai, e o ar pareceu ficar mais pesado, como se o peso de suas palavras estivesse comprimindo a varanda. — Sempre tive um certo interesse em você, Kai. Porque você é um Scarlune. E porque você tem os mesmos olhos que eu. Olhos que enxergam a verdade sobre o poder. É por isso que te quero do meu lado. Não por algo idiota como amizade, mas pra que a gente possa alcançar o topo de verdade. Nós não somos como os Corvos, um bando de amigos se apoiando. A gente só se usa pra chegar onde quer. Se vier comigo, posso te mostrar o caminho pro poder, e vou te usar pra alcançar meu objetivo. Essa é a proposta que tô te oferecendo. — Ele terminou, a voz firme, mas com um toque de convite, como se estivesse abrindo uma porta para um abismo que Kai ainda não podia compreender.
Kai ficou em silêncio, o coração batendo rápido, o som abafado pelo rugido distante das cachoeiras. As palavras de Daemon eram um veneno doce, falando diretamente à frustração e à ambição que guerreavam dentro dele. O vento soprou, mais forte agora, levantando folhas que rodopiavam no ar, como se refletissem o caos em sua mente. Ele tá certo? pensou Kai, os olhos fixos no horizonte, onde as nuvens começavam a se tingir de laranja com o pôr do sol. É por isso que eu tô estagnado? Por causa... deles? A imagem de Dante, dos Corvos, de Sophi, passou por sua mente, e ele sentiu um aperto no peito, como se uma mão invisível estivesse espremendo seu coração.
Ele estalou a língua, o som seco ecoando como um desafio, e saltou para longe, pousando com leveza em um galho de árvore próximo, o movimento fluido, mas carregado de tensão. A casca da árvore rangeu sob seu peso, e algumas folhas caíram, girando lentamente até o chão. — Vou passar — disse ele, a voz firme, mas com um tom que parecia mais dirigido a si mesmo do que a Daemon. — Mesmo que fosse assim, você tá errado. Eu não sou como você. Eu sou forte de verdade, e não importa o caminho que eu escolher. — Seus olhos brilhavam com uma determinação teimosa, mas havia uma sombra de dúvida neles, e ele apertou os punhos, as unhas cravando nas palmas, enquanto o vento agitava seus cabelos, como se tentasse arrancar suas palavras do ar.
Daemon o observou se afastar, os olhos escuros e impenetráveis, a expressão imutável. — Por quanto tempo você vai continuar acreditando nessa ilusão? — perguntou ele, a voz baixa, mas cortante, ecoando pela varanda como um eco do próprio vazio que ele representava.
Kai não respondeu, o corpo tenso, os músculos tremendo levemente enquanto ele se equilibrava no galho, o sol poente lançando sua sombra longa e irregular sobre a pedra abaixo.
— Desisto, se é assim que você quer — continuou Daemon, dando um passo para trás, as botas rangendo contra a pedra. — Mas quando você perceber que esse caminho luminoso e brilhante só tá te cegando, te fazendo esquecer o que realmente importa... nós vamos estar esperando. — Ele virou-se, o movimento lento e deliberado, e começou a se afastar, a sombra dele parecendo se fundir com a escuridão que crescia ao redor da varanda, enquanto o sol mergulhava no horizonte, tingindo o céu de tons de vermelho e roxo.
Kai estalou a língua novamente, o som carregado de desdém, e cuspiu no chão, o gesto brusco e desafiador, enquanto o vento levava o som para longe. — Então podem esperar sentados — retrucou ele, a voz firme, mas com um toque de incerteza que ele mesmo não queria admitir.
E assim, ambos se separaram. Kai caminhando de volta para a luz e o calor do sol, os passos ecoando na pedra, cada um deles como uma tentativa de afirmar sua decisão, enquanto o vento soprava, carregando o aroma fresco das cachoeiras e o peso de suas dúvidas. Daemon, por outro lado, desapareceu nas sombras de onde viera, sua figura engolida pela penumbra do corredor, como se nunca tivesse estado ali, deixando para trás apenas o eco de suas palavras e a semente de uma tentação que começava a germinar no coração de Kai.
Parte 6
Algumas horas se passaram. O frio das palavras de Daemon Hakurei ainda assombrava Kai, como um eco que se recusava a desaparecer. Ele caminhava sozinho em direção ao dormitório dos Corvos, a cabeça baixa, os olhos fixos no caminho de pedra polida que refletia a luz dourada do entardecer. As palavras de Daemon ressoavam em sua mente, cada sílaba como uma agulha fria perfurando seus pensamentos: "Esse caminho luminoso e brilhante está apenas o cegando..." O que aquilo queria dizer? Ele, que sempre se viu como alguém forjado nas sombras da ambição, sendo acusado de ser cego pela luz? Não fazia sentido. O vento soprava em rajadas suaves, carregando o aroma úmido das cachoeiras distantes e o leve toque terroso das árvores que ladeavam o caminho, enquanto o sol poente tingia o céu de tons de laranja e roxo, lançando sombras longas que dançavam ao redor de Kai, como se tentassem acompanhar o tumulto em seu peito. Seus cabelos anegros balançavam levemente, alguns fios colando na testa úmida de suor, e seus punhos, enfiados nos bolsos do uniforme, apertavam-se com força, como se ele pudesse esmagar as dúvidas que o consumiam.
Ele estava tão imerso em sua confusão que mal notou a figura quieta que se aproximou, os passos dela leves como o farfalhar das folhas caídas no chão. O ar pareceu mudar, carregado com uma presença suave, mas firme, e o som dos passos dela ecoou baixo, quase abafado pelo murmúrio do vento. Era Sophi Pencilgon, que havia se separado dos demais. Kai ergueu o olhar, os olhos estreitando-se instintivamente, ainda carregados com a tempestade de pensamentos que o atormentava. Ele não disse nada de cara, apenas a encarou, o olhar distante, como se ainda estivesse preso nas palavras de Daemon. Sophi estava ali, parada ao seu lado, os cabelos verdes escuros soltos balançando suavemente com a brisa. Ela carregava uma sacola de papel de uma loja de arte, o logotipo colorido contrastando com o tom sério de seus olhos, que brilhavam com uma curiosidade contida sob a luz do crepúsculo.
— Pra onde você tá indo? — perguntou ela, a voz suave, mas com um toque de cautela, como se temesse interromper os pensamentos dele.
— Pro dormitório — respondeu Kai, seco, a voz rouca e cortante, enquanto desviava o olhar para o caminho à frente, os ombros tensos, o uniforme esticando-se contra a musculatura rígida.
— Beleza, vou com você, então — disse Sophi, o tom leve, quase casual, mas com uma determinação sutil que não passou despercebida.
Eles começaram a caminhar em silêncio, o som de seus passos ecoando em um ritmo descompassado contra as pedras do caminho. O silêncio não era desconfortável, mas pensativo, carregado com os pensamentos não ditos de ambos. Sophi segurava a sacola de arte com uma mão, o papel farfalhando levemente a cada passo, enquanto a outra mão brincava com uma mecha de cabelo, enrolando-a distraidamente no dedo. Kai andava com as mãos enfiadas nos bolsos, a postura tensa, como se carregasse o peso do mundo nos ombros, o uniforme sujo de poeira da varanda onde estivera sentado. O sol mergulhava no horizonte, tingindo o céu de tons mais escuros, e as sombras das árvores ao redor se alongavam, envolvendo-os em uma penumbra suave que parecia amplificar a quietude entre eles.
De repente, Sophi quebrou o silêncio, a voz clara, mas com um toque de timidez. — Sabe, você realmente é incrível.
A frase o puxou de volta para o presente, como um trovão cortando a névoa de seus pensamentos. Kai parou por um instante, os olhos arregalando-se em confusão, e virou o rosto para encará-la, as sobrancelhas franzidas. — Tá louca? Por que tá falando isso do nada? — perguntou, a voz carregada de desconfiança, enquanto o vento soprava, fazendo seus cabelos balançarem e alguns fios grudarem na testa úmida.
Sophi sorriu, um sorriso pequeno, mas genuíno, que iluminava seus olhos verdes sob a luz fraca do crepúsculo. — É que eu percebi que nunca te disse isso antes — explicou ela, simplesmente, ajustando a sacola no ombro com um movimento leve. — E achei que agora podia ser uma boa hora. — Sua voz era suave, mas carregada de uma sinceridade que fez o ar entre eles parecer mais leve, apesar da tensão que ainda pairava.
Kai virou o rosto, desconfortável, sentindo um calor súbito subir pela nuca, tingindo a pele de um vermelho que ele esperava que a penumbra escondesse. — É estranho ouvir isso — murmurou ele, a voz mais baixa agora, quase um resmungo. — Melhor você ficar quieta. — Ele acelerou o passo, como se quisesse fugir da conversa, mas o som de seus passos ecoava com menos convicção, e o vento parecia zombar dele, soprando mais forte e bagunçando seus cabelos.
Sophi riu, um som baixo e divertido, como o tilintar de sinos suaves, que ecoou pelo caminho e fez algumas aves próximas levantarem voo. — Engraçado, né? Você vive se gabando, dizendo que é o melhor, mas quando alguém te elogia, fica todo sem graça — disse ela, inclinando a cabeça para o lado, os cabelos caindo sobre um ombro enquanto seus olhos brilhavam com uma mistura de provocação e carinho.
— Estranha é você! — retrucou Kai, parando abruptamente para encará-la, os punhos saindo dos bolsos e apontando para ela em um gesto quase infantil. — Tá errado, isso sim! Só você pode se elogiar, porque, se não fizer isso, ninguém mais vai! — As palavras saíram com uma convicção amarga, cada sílaba carregada de uma verdade que ele carregava como uma cicatriz. Ele ficou parado, o peito subindo e descendo com a respiração acelerada, enquanto o sol desaparecia completamente, deixando o céu tingido de um roxo profundo, e as primeiras estrelas começavam a surgir, como testemunhas silenciosas da vulnerabilidade que ele não queria admitir.
Naquele instante, Sophi relembrou a história de Vivian, as palavras pesadas sobre uma mãe que via o filho como um experimento e um mundo que o tratava como um monstro. Seu coração se apertou, uma pontada de tristeza que fez seus olhos marejarem por um instante, enquanto ela baixava o olhar para a sacola em suas mãos, os dedos apertando o papel com força. O peso daquela revelação parecia pairar no ar, misturando-se ao aroma fresco do orvalho que começava a se formar na grama ao redor. Ela respirou fundo, tentando esconder a emoção, enquanto o vento soprava, levando algumas folhas secas que rodopiavam entre eles, como se tentassem preencher o silêncio que se formou.
Kai percebeu a mudança imediata no clima, o rosto dela agora sombreado pela penumbra, os olhos fixos no chão. Ele sentiu uma pontada de vergonha, como se tivesse dito algo errado, e, pela primeira vez, a ideia de magoar alguém o incomodou de verdade. Ele, que nunca se importava com os sentimentos dos outros, se viu querendo consertar aquilo, embora não soubesse como. — Ei... — começou ele, a voz estranhamente hesitante, quase sem jeito, enquanto coçava a nuca, os dedos bagunçando os cabelos brancos. — O que... você tava falando antes? Sobre o labirinto. — Ele desviou o olhar, fingindo interesse em uma árvore próxima, enquanto o calor em seu rosto aumentava, traído pelo leve tremor em sua voz.
Sophi ergueu o olhar, surpresa, e viu a vergonha no rosto dele – os olhos desviados, as bochechas ligeiramente avermelhadas, a postura rígida como se ele estivesse lutando contra si mesmo. Ela sorriu, um sorriso suave que aqueceu seus olhos, e pensou: Agora, pelo menos, ele parece estar bem. — Naquele dia, no incidente do labirinto — começou ela, a voz calma, mas firme, enquanto ajustava a sacola no ombro, o papel farfalhando levemente —, eu tive uma péssima primeira impressão de você. Achei que você era só um cara obcecado pelo Dante, que não pensava em mais nada além de competir com ele. Mas, quando o avatar do Astreus da Vida apareceu, foi você quem bolou o plano pra proteger todo mundo na sala. Você agiu pensando em todos. — Ela fez uma pausa, o olhar fixo nele, enquanto o vento soprava, levantando seus cabelos e fazendo a roupa dela ondular levemente, como uma bandeira em rendição.
Kai estalou a língua, o som seco ecoando no caminho, e chutou uma pedrinha no chão, que rolou com um som baixo até parar na grama. — Tá pensando demais — resmungou ele, cruzando os braços, o rosto ainda virado para o lado. — Naquela hora, eu só fiz o que fiz porque não queria perder. Não queria dar ao Astreus da Vida a satisfação de matar alguém da nossa turma. Se fosse o Dante ou o Blade, eles teriam feito muito melhor. Eu errei um monte, deixei a raiva tomar conta. — Ele chutou outra pedrinha, o movimento brusco, quase infantil, enquanto o som ecoava no silêncio da noite que se formava, e as estrelas acima brilhavam com mais intensidade, como se observassem a conversa.
— Você tá errado — disse Sophi, a voz firme, fazendo-o parar no meio do caminho. Ela deu um passo à frente, os olhos brilhando com uma determinação que contrastava com sua suavidade habitual. — Eu não sei como seria com o Presidente do Conselho. Mas o Dante tava lá naquele dia. E não foi ele quem agiu pra salvar todo mundo. Foi você. — Sua voz era clara, cortante, e ela apontou para ele, o gesto suave, mas cheio de convicção, enquanto o vento agitava seus cabelos, alguns fios colando em seus lábios.
— Isso é porque ele tava com problemas, agindo estranho... — tentou argumentar Kai, a voz mais baixa agora, quase defensiva, enquanto esfregava a nuca novamente, os olhos fixos no chão, onde a sombra dele tremia sob a luz fraca das lanternas que começavam a se acender ao longo do caminho.
— Isso não importa! — cortou Sophi, a voz subindo um tom, cheia de paixão. — Não muda o que aconteceu. A verdade é óbvia: foi você quem ajudou todo mundo. E mesmo que você diga que fez isso pensando no Dante... eu sei o que é ficar preso a um único objetivo. — Seus olhos ganharam uma profundidade sombria, cheia de memórias, e ela baixou o olhar por um instante, os dedos apertando a sacola com mais força, o papel amassando levemente sob a pressão. — Uma vez, há muito tempo, no Titanic, eu fiquei tão obcecada em proteger meu pai que não pensei em mais nada, nem em ninguém. E por causa disso, fiz tanta besteira. — Sua voz tremia agora, carregada de uma vulnerabilidade que fez o ar entre eles parecer mais pesado, enquanto o vento soprava, levando o som distante das cachoeiras, como um eco de suas emoções.
Ela ergueu o olhar novamente, encarando Kai com uma intensidade que o desarmou completamente. — Você é diferente de mim, Kai. Mesmo com essa sua obsessão, você pensou nos outros. Não importa o motivo, você ajudou quem tava do seu lado. Isso é incrível. E é algo que só você fez. — Ela deu mais um passo à frente, agora tão perto que ele podia ver o brilho suave em seus olhos, refletindo as primeiras estrelas da noite.
Sophi parou bem na frente dele, forçando-o a encará-la. — Eu queria te dizer isso há um tempo, mas fui enrolando. Então... obrigada, Kai. Se não fosse por você, eu e o resto da sala podíamos estar mortos agora. Mas graças a você, isso não aconteceu. De verdade... muito obrigada. — Sua voz era suave, mas carregada de uma gratidão tão genuína que parecia aquecer o ar frio da noite, e ela sorriu, um sorriso tímido, mas cheio de calor, enquanto o vento agitava seus cabelos, alguns fios dançando ao redor de seu rosto.
Kai demorou um longo segundo para processar o que ela havia dito, o coração batendo tão rápido que ele podia senti-lo contra as costelas. E então, aconteceu. Um calor que ele nunca sentira antes subiu por seu pescoço, violento e incontrolável, tingindo seu rosto de um vermelho vivo que nem a escuridão da noite conseguia esconder. Ele sentiu como se uma nuvem de fumaça estivesse saindo de seus ouvidos, e seus olhos arregalaram-se, perdidos, enquanto tentava encontrar algo para dizer. Sem conseguir formar palavras, ele se virou abruptamente e começou a caminhar rápido, quase correndo, escondendo o rosto com uma mão, como se isso pudesse apagar o rubor que queimava suas bochechas.
— Ei, espera! — exclamou Sophi, rindo enquanto corria para acompanhá-lo, os passos dela ecoando leves contra o caminho de pedra, a sacola balançando em seu ombro. O som de sua risada era leve, quase musical, e ecoava na noite, como se o próprio mundo estivesse celebrando aquele momento.
Kai caminhava com a mão ainda sobre o peito, o coração batendo descontroladamente, como se quisesse pular para fora. — Idiota... — murmurou ele, a voz tão baixa que mal era audível, enquanto tentava entender o sentimento estranho e quente que florescia dentro dele.
Parte 7
— Espera aí! Anda mais devagar! — A voz de Sophi soava ofegante enquanto ela corria atrás de Kai, os passos ecoando rápidos e irregulares contra o caminho de pedra, o som abafado pelo murmúrio distante das cachoeiras e pelo vento que soprava em rajadas suaves, carregando o aroma fresco de folhas úmidas e terra orvalhada.
Ele continuava aumentando o ritmo, não rápido o suficiente para que ela o perdesse de vista, mas o bastante para que ela não percebesse o calor que ainda subia por seu pescoço, tingindo a pele de um vermelho persistente que ele tentava ignorar. Que droga é essa? O que tá acontecendo comigo? pensou Kai, o coração ainda disparado, o peito apertado como se uma mão invisível o comprimisse. Ele não estava fugindo dela, estava fugindo daquele sentimento estranho e embaraçoso, que borbulhava dentro dele como uma poção instável, fazendo seus músculos se contraírem involuntariamente e seus punhos se cerrarem ao lado do corpo, enquanto o sol poente lançava sombras longas que dançavam ao seu redor, estendendo-se como dedos acusadores no caminho. Seus cabelos brancos balançavam com o vento, alguns fios grudando na nuca úmida de suor, e cada passo parecia um esforço para afastar a confusão que Sophi havia plantado em sua mente.
— Por que você tá agindo assim ago... Ai! — exclamou Sophi, distraída, esbarrando com força em alguém, o impacto fazendo seu corpo girar levemente antes de cair para trás com um baque surdo contra o chão de terra compacta. A sacola de arte voou de sua mão, o papel rasgando ligeiramente no ar, espalhando alguns sorvetes recém-comprados pelo chão, os cones coloridos rolando e derretendo devagar sob o calor residual do dia, enquanto o aroma doce de baunilha e morango se misturava ao cheiro terroso do solo.
— M-me desculpa! — disse ela, levantando-se com pressa, limpando a poeira das roupas com movimentos rápidos e nervosos, as mãos tremendo levemente enquanto ajustava o uniforme amassado, os olhos ainda baixos, cheios de embaraço.
— Tá tudo bem. — respondeu a voz, gentil, cansada, familiar, ecoando como um eco de memórias há muito enterradas.
Sophi congelou, o corpo rígido como se uma corrente elétrica a tivesse percorrido, o ar parecendo ficar preso em seus pulmões, sufocando-a. Ela ergueu o olhar devagar, o coração parando no peito, os batimentos ecoando em seus ouvidos como um tambor distante. Parado à sua frente, com o mesmo sorriso gentil que curvava os cantos dos lábios envelhecidos e os mesmos olhos cansados, cheios de uma sabedoria melancólica que ela via todas as noites em seus sonhos, estava seu pai. Danael. Os cabelos grisalhos dele balançavam levemente com a brisa, e o uniforme desgastado – idêntico ao das memórias dela – parecia real demais, o tecido enrugado como se carregasse o peso de anos perdidos.
Um choque elétrico percorreu seu corpo, fazendo os pelos de seus braços se arrepiarem, e as lágrimas brotaram instantaneamente, quentes e incontroláveis, escorrendo pelas bochechas enquanto ela piscava, tentando processar o impossível. Ele estava morto. Mas ele estava ali, a presença dele preenchendo o ar com um calor familiar que ela havia esquecido, o aroma sutil de tabaco e livros antigos – exatamente como ela se lembrava – pairando ao redor dele.
A figura de seu pai, na verdade Lidyan Malva da Verbrechen der Evolution, havia mergulhado na mente de Sophi, sondando as profundezas de suas memórias como um predador invisível. Usando sua habilidade de Metamorfose, Lidyan não apenas mudou de forma, mas se tornou o trauma e o desejo mais profundos de seu alvo, moldando cada detalhe – o tom exato da voz, o jeito como ele inclinava a cabeça, o brilho nos olhos – para acessar cada memória, cada fragmento de dor da história do Titanic, transformando-os em uma arma perfeita.
— Pai...? — sussurrou Sophi, a voz trêmula, quase inaudível, enquanto dava um passo hesitante à frente, as mãos tremendo como folhas ao vento, os olhos arregalados de descrença e esperança.
— Eu senti tanta falta de você — disse "Danael", abrindo os braços com um gesto lento, acolhedor, os olhos dele brilhando com uma ternura que parecia genuína, mas que Lidyan calculava com precisão cruel, saboreando o momento em que a alegria se transformaria em agonia.
Lidyan deu a ela a esperança, a alegria do reencontro impossível, apenas para poder saborear melhor o desespero que viria a seguir, como um gourmet provando um prato requintado. Sophi o abraçou, chorando, o corpo dela tremendo contra o dele, os soluços ecoando no ar quieto, enquanto as lágrimas molhavam o ombro da figura, e foi então que a lâmina da tortura psicológica foi torcida, lenta e deliberadamente.
— Por que você não me salvou, Sophi? — sussurrou ele em seu ouvido, a voz agora um eco frio, como o vento gelado cortando a noite, enquanto apertava o abraço de forma sutil, possessiva. — Eu me sacrifiquei pra manter aqueles portais abertos... mas se você tivesse sido um pouco mais forte, um pouco mais rápida... talvez eu ainda estivesse aqui. Você me deixou morrer. — As palavras eram veneno puro, injetadas diretamente em sua alma, cada sílaba como uma gota de ácido corroendo suas defesas.
Sophi recuou, o rosto pálido de horror, os olhos arregalados, as mãos tremendo enquanto se afastava, o corpo instintivamente curvando-se como se quisesse se proteger. Lidyan continuou, a voz de seu pai agora cheia de uma tristeza acusadora, os olhos dele – aqueles olhos familiares – se enchendo de uma decepção que cortava como uma faca. — Você ficou presa naquele loop temporal, revivendo tudo de novo e de novo, e em nenhuma das vezes você conseguiu me salvar. A culpa é toda sua. — Ele estendeu a mão, o movimento lento, como se oferecesse perdão, mas os dedos se curvavam ligeiramente, como garras prontas para apertar.
Sophi caiu de joelhos, o impacto surdo contra o chão enviando uma nuvem de poeira fina para o ar, o desespero a engolindo como uma onda negra, sufocante. As palavras a quebravam por dentro, transformando sua dor em uma culpa insuportável, os soluços agora mais profundos, o corpo tremendo enquanto ela cobria o rosto com as mãos, as lágrimas escorrendo entre os dedos. Lidyan sorriu, um sorriso que não pertencia ao rosto de Danael – os lábios se curvando de forma cruel, os olhos brilhando com um prazer sádico –, e ergueu uma mão, a palma brilhando com uma luz dourada corrupta, pronta para o golpe final, o ar ao redor vibrando com a energia do Ether que se acumulava.
Foi quando outra mão, coberta por aura vermelha reluzente, parou a sua, segurando seu pulso com uma força de aço que fez os ossos rangerem levemente.
Era Kai.
Ele havia se aproximado em silêncio, os passos rápidos e precisos, o corpo ainda carregado da adrenalina da conversa anterior. — O seu Ether tá estranho — disse Kai, os olhos fixos, não no rosto de Danael, mas na aura distorcida que só sua percepção aguçada podia sentir, pulsando como uma névoa irregular ao redor da figura, cheia de rachaduras invisíveis. — Como se já estivesse usando uma habilidade. — Sua voz era baixa, controlada, mas carregada de uma suspeita afiada, enquanto apertava o pulso com mais força, os músculos do braço flexionando sob o uniforme, o vento soprando e bagunçando seus cabelos negros.
Lidyan elogiou, a voz ainda a de Danael, mas com um tom de diversão que não combinava com a figura: — Sua percepção sensorial é impressionante, garoto. — Ele inclinou a cabeça ligeiramente, o sorriso se alargando, enquanto o Ether ao redor tremia, como se desafiasse Kai a prosseguir.
— É uma ilusão? — perguntou Kai, ignorando o elogio, a voz fria como gelo, enquanto seus olhos se estreitavam, analisando cada detalhe da aura, os dedos dele cravando na pele da figura.
— Não. Eu só vim aqui pra acabar com minha filha inútil — respondeu "Danael", o sorriso se contorcendo em algo cruel, os olhos perdendo o brilho gentil e ganhando uma frieza calculada.
— Se era assim, por que esperou a gente se separar pra aparecer? — continuou Kai, a voz fria, mas com um tom de provocação, enquanto soltava o pulso devagar, posicionando-se em guarda, os pés se firmando no chão como raízes. — Eu senti faz um tempo que a Sophi tava sendo seguida. Deixei rolar pra ver no que dava. — Seus olhos brilhavam com uma determinação feroz, e o ar ao redor dele começava a distorcer levemente, o Ether pulsando em suas veias como um rio agitado.
Lidyan riu, o som baixo e musical, carregado de crueldade. — Você é bom mesmo. Mas não vou te explicar nada. — Ele deu um passo para trás, o corpo se preparando, o Ether se acumulando como uma tempestade iminente.
— Vai sim. Depois que eu te quebrar um pouco — rosnou Kai, a voz carregada de fúria, os punhos cerrando-se com um estalo audível.
— KAI, NÃO! É O MEU PAI! — gritou Sophi, a voz embargada pelo desespero, enquanto tentava se levantar, os joelhos tremendo, as mãos estendidas como se pudesse parar o inevitável.
Mas Kai a ignorou, confiando em seus instintos, que gritavam que algo estava errado. Com um flash de distorção espacial, o ar ao redor dele ondulou como água perturbada, e ele desapareceu, reaparecendo atrás de "Danael" em um piscar de olhos. Sem perder tempo, desferiu um soco devastador, cheio de Ether, o punho cortando o ar com um zumbido grave, lançando a figura em uma cratera no chão, o impacto ecoando como um trovão, levantando uma nuvem de poeira e terra que obscureceu o sol poente.
— PAI! — Sophi gritou, o desespero em sua voz cortando o ar como uma lâmina, enquanto corria tropeçando em direção à fumaça, as lágrimas escorrendo pelo rosto, o corpo tremendo de horror e confusão.
Da cratera, uma nova voz surgiu, uma risada feminina, divertida e cruel, ecoando como o canto de uma harpia. — Que interessante! Ele não hesitou nem por um segundo, mesmo atacando o pai da amiga na frente dela. Desse jeito, vou ter que ajustar os planos. Mas tô acostumada com as falhas quando lido com meu objeto de teste irritante... — A voz era suave, mas carregada de veneno, e a fumaça se dissipou devagar, revelando a figura se erguendo, não mais a de Danael.
Sophi e Kai congelaram, o ar parecendo se solidificar ao redor deles. Aquela voz... familiar, mas distorcida, ecoando memórias que Kai desejava esquecer.
Da fumaça, a figura se ergueu com graça predatória, a metamorfose se desfazendo em camadas de luz dourada corrupta que se dissipavam como névoa, revelando a forma da mulher que Kai conhecia mais do que qualquer outra pessoa no mundo.
Rani Scarlune. Sua mãe. Os cabelos negros dela caíam em ondas perfeitas sobre os ombros, os olhos violeta brilhando com uma frieza analítica, o sorriso nos lábios – idêntico ao das memórias dele – curvando-se em uma expressão de desdém superior. O uniforme elegante, bordado com símbolos arcanos, parecia real demais, o tecido ondulando com o vento como se carregasse o peso de segredos antigos.
— É um disfarce... — murmurou Kai, a voz um rosnado baixo, uma tentativa de convencer a si mesmo tanto quanto a Sophi. Ele sentiu, o Ether daquela figura era diferente do de Rani – uma pulsação irregular, como uma cópia defeituosa –, mas a visão o atingiu como um soco no estômago. Era uma imitação, uma máscara perfeita moldada para explorar suas fraquezas mais profundas.
A figura de sua mãe sorriu, um gesto que não alcançava os olhos frios, os lábios se curvando com uma lentidão calculada. — Isso é jeito de falar com sua criadora, projeto falho? — A voz de Lidyan, moldada para soar exatamente como a de Rani, era puro veneno, cada palavra injetada com um tom de decepção materna que cortava como uma faca. — Durante sua estadia em Threshold, eu tava tão ocupada com o verdadeiro Dante que esqueci de você. Vim só pra analisar seu progresso. Pelo visto, continua o mesmo fracasso de sempre. — Ela inclinou a cabeça, os cabelos balançando como uma cortina negra, enquanto o Ether ao redor dela pulsava, dourado e corrupto, como se zombasse da dor dele.
— Se era assim, por que fingiu ser o pai da Sophi? — cuspiu Kai, a voz carregada de raiva, enquanto dava um passo à frente, os punhos cerrados, o ar distorcendo levemente ao seu redor.
— Pra ver se você tinha feito uma amiga de verdade — respondeu "Rani", com um deleite cruel que fez seus olhos brilharem, o sorriso se alargando como o de um predador. — Pra testar até onde você iria por ela. O Dante se esforça mais pros amigos dele, sabe? Queria ver se a cópia defeituosa tinha aprendido algo útil. — Ela gesticulou casualmente, o movimento elegante, mas carregado de desprezo, enquanto o vento soprava, levantando poeira que pairava como uma névoa entre eles.
A mente de Kai gritava, um turbilhão de raiva e dúvida. Era uma manipulação barata, óbvia, mas ouvir aquelas palavras, naquela voz – a voz que o havia chamado de fracasso tantas vezes –, ainda o feria, como uma ferida antiga sendo reaberta. Ele se recusou a cair naquilo, os dentes cerrados com tanta força que os músculos da mandíbula tremiam. A raiva, a frustração e a fúria que sentia por sua estagnação explodiram como uma represa rompendo. Ele atacou com força total, o Ether pulsando em suas veias como fogo líquido.
A batalha começou em um piscar de olhos, um caos coreografado de movimento e poder que transformava o caminho tranquilo em um campo de guerra. Kai era a personificação do Caos, seu domínio sobre o espaço tornando-o imprevisível e letal. Ele não corria; ele simplesmente deixava de existir em um lugar e surgia em outro, usando micro-teleportes que distorciam o ar ao seu redor como ondas de calor em um deserto. Em um instante, ele apareceu ao lado de "Rani", o punho direito cortando o ar com um zumbido grave, impulsionado por uma compressão espacial que aumentava a velocidade do golpe, forçando-a a se esquivar com um giro elegante, o cabelo dela esvoaçando como uma bandeira negra enquanto o soco acertava o ar, criando uma onda de choque que rachava o chão em uma linha reta, levantando poeira e pedras que voavam como shrapnel. Sem pausar, Kai teleportou-se para as costas dela, comprimindo o espaço ao redor de seu torso em uma bolha invisível, tentando esmagá-la com a própria realidade – o ar crepitava, as moléculas se dobrando com um gemido baixo, forçando "Rani" a pular para o lado, rolando no chão com graça felina antes de contra-atacar.
Lidyan, no entanto, era uma especialista, uma Anjo Caída cuja maestria nos fundamentos do Ether era sublime, como uma sinfonia de destruição. — Tão bruto — murmurou ela, a voz carregada de desdém, enquanto se defendia com movimentos fluidos, o corpo dançando entre os teleportes de Kai como se antecipasse cada um. Com a Emissão, ela liberou seu Ether em uma explosão controlada, uma luz dourada e corrupta que pulsava como um coração vivo, iluminando o campo de batalha com um brilho sinistro que tingia tudo de amarelo doentio. Com a Transformação, ela moldou essa luz em dezenas de penas afiadas como navalhas, cada uma brilhando com bordas serrilhadas que cortavam o ar com um assobio agudo. E com a Manipulação, ela as fez dançar no ar, criando uma tempestade de lâminas douradas que giravam em espirais hipnóticas, interceptando cada ataque de Kai – uma pena colidia com um punho distorcido, explodindo em faíscas douradas que queimavam o ar, enquanto outra voava em arco para flanquear, forçando-o a teleportar novamente, reaparecendo acima dela para um chute descendente que rachava o solo em uma cratera, mas era bloqueado por um escudo de penas que se formava como uma barreira viva, vibrando com o impacto e enviando ondas de choque que faziam as árvores próximas tremerem, folhas caindo como chuva verde.
A luta era um espetáculo de poder, um balé mortal onde o espaço se dobrava e se partia contra uma torrente de luz dourada. Kai teleportava em sequências rápidas, aparecendo à esquerda para um soco que distorcia o ar em uma onda compressiva, forçando Lidyan a se esquivar com um salto giratório, as penas seguindo-a como um enxame de abelhas furiosas, uma delas raspando o braço de Kai e deixando um corte superficial que sangrava devagar, o sangue escorrendo pelo uniforme. Ele respondia distorcendo a trajetória de pedaços de entulho do chão, transformando-os em projéteis que voavam em ângulos impossíveis – uma pedra curvava no ar como uma bola com efeito, mirando as costas dela, enquanto outra se esticava em uma lança espacial que perfurava o ar com um estalo sônico. Lidyan contra-atacava com rajadas de penas que se dividiam em padrões complexos, algumas formando espirais defensivas que giravam como furacões dourados, bloqueando os projéteis com explosões de luz que iluminavam o crepúsculo, enquanto outras atacavam em leques amplos, forçando Kai a teleportar repetidamente, o Ether dele pulsando como um motor sobrecarregado, suor escorrendo pela testa enquanto o ar crepitava com distorções. Por um momento, Kai pareceu estar em vantagem, sua fúria e poder bruto pressionando-a – ele comprimiu o espaço acima dela em uma bolha implosiva, forçando-a a cair de joelhos por um instante, o chão rachando sob a pressão, mas ela se recuperava com um salto acrobático, girando no ar e lançando uma salva de penas que explodiam em impactos luminosos ao redor dele, o calor queimando sua pele.
E foi aí que Lidyan sorriu, um sorriso lento e predatório que combinava com o rosto de Rani, os olhos brilhando com um prazer calculado. Ela havia se cansado de brincar, e o Ether ao redor dela intensificou, pulsando como uma estrela moribunda.
Uma parte das penas douradas mudou de alvo de repente, disparando não mais para Kai, mas para Sophi, que observava a luta, horrorizada, o corpo congelado em descrença. As penas cortavam o ar com assobios agudos, girando em uma formação letal que mirava direto nela, o brilho dourado refletindo nos olhos arregalados dela.
O instinto de Kai foi mais rápido que seu pensamento. Em uma fração de segundo, ele conectou o ponto em que estava com o ponto em frente a Sophi, teleportando-se para a frente dela em um flash de distorção que fez o ar estalar como um chicote, e recebeu o impacto total da rajada de lâminas de luz. Elas rasgaram suas roupas e sua pele em cortes profundos, o sangue jorrando enquanto ele caía de joelhos, o corpo tremendo com a dor lancinante, o chão manchando-se de vermelho escuro que se misturava à poeira.
— Olha só — disse "Rani", aproximando-se lentamente, os passos deliberados ecoando como um relógio fatídico, o sorriso cruel se alargando. — Tão previsível. Se sacrificando por outra pessoa. Tentando bancar o herói, igualzinho ao Dante. Mas você não é ele. Você não passa de um fracasso. Uma cópia malfeita que nunca vai chegar aos pés do original. — As palavras eram ataques, mais afiados que as penas de luz, cada uma delas cravando-se na mente de Kai como espinhos venenosos.
— Essa garota... — continuou Lidyan, o rosto de Rani se contorcendo em uma expressão de desprezo puro, os olhos violeta brilhando com desdém. — Esse apego bobo a ela... é sua fraqueza. Tá te deixando inútil. — Ela gesticulou casualmente, o movimento enviando uma onda sutil de Ether que pressionava o ar ao redor de Kai, como se o peso das palavras se tornasse físico.
Kai se levantou, o corpo doendo como se cada osso estivesse quebrado, a mente em frangalhos, fragmentada entre raiva e dúvida. A raiva que o impulsionava agora estava misturada com o veneno de suas palavras, corroendo sua confiança. Seu estilo de luta ficou mais desesperado, menos preciso – ele teleportava com menos graça, aparecendo ao lado dela para um soco que era bloqueado por uma barreira de penas giratórias, o impacto enviando-o para trás em uma cambalhota forçada, rolando no chão e se levantando com um gemido, sangue escorrendo do canto da boca. Ele atacou de novo, mas agora havia hesitação em seus movimentos, os teleportes mais lentos, como se a dúvida o ancorasse.
Ele era o mestre do espaço, capaz de dobrar a realidade, mas Lidyan, a mestra da psicologia, havia invadido e conquistado o espaço mais importante de todos: o da sua mente. Ele estava indefeso, cada golpe agora carregado de uma fúria cega que a deixava prever seus padrões, as penas dançando em contragolpes precisos que cortavam sua pele em linhas finas, o sangue pingando no chão como chuva vermelha.
A batalha continuava, mas agora era um massacre, uma dança unilateral onde Lidyan orquestrava cada movimento. As palavras de "Rani" eram um veneno que se infiltrava na mente de Kai, e cada golpe que ele recebia – uma pena raspando seu ombro, outra cortando sua perna em um giro rápido – parecia uma confirmação de sua própria fraqueza. A derrota para Ryota, a humilhação por Loki, a ausência na lista dos dez melhores... tudo voltava em um turbilhão de fracasso, os pensamentos girando como as penas ao seu redor. Eu não tô conseguindo fazer nada. De novo. Enquanto Lidyan pressionava sua mente com taunts psicológicos, ele começou a se sentir verdadeiramente sozinho, o Ether dele enfraquecendo, os teleportes mais erráticos, o corpo coberto de cortes que sangravam profusamente, o suor misturando-se ao sangue em riachos quentes pela pele.
Foi quando uma pequena figura se jogou na sua frente, os passos tropeçantes, mas decididos.
— JÁ CHEGA! — gritou Sophi, de braços abertos, o corpo tremendo como uma folha ao vento, mas se recusando a recuar. Ela se colocou entre Kai e a imagem de sua mãe, os olhos cheios de lágrimas, mas brilhando com uma ferocidade inesperada. — Eu também vou ajudar! — disse ela, a voz embargada, mas feroz, enquanto o vento agitava seus cabelos verdes, alguns fios colando no rosto úmido. — Eu também sou dos Corvos! Sou sua companheira, não só um peso morto! — Seu corpo pequeno parecia crescer com a determinação, as mãos estendidas como um escudo, o coração batendo tão rápido que ela sentia nas têmporas.
As palavras dela, a coragem em seu rosto assustado – os lábios tremendo, os olhos arregalados, mas firmes –, foram como um raio de luz na escuridão da mente de Kai. Ele se relembrou do que ela havia dito antes, o "obrigada" sincero que ele não soube como processar, e um calor novo surgiu em seu peito. Ele não podia deixar ela se machucar. E então, a provocação de Lidyan sobre Dante se tornar mais forte para proteger seus amigos ecoou em sua cabeça, como um desafio. Se ele pode... eu também posso.
Kai tentou se levantar de novo, a fúria dando lugar a uma determinação fria, os músculos tremendo enquanto se apoiava em um joelho, o sangue pingando no chão. A batalha que se seguiu foi ainda mais brutal e visceral, uma coreografia caótica de proteção e desespero. Ele não lutava mais para vencer; lutava para proteger, teleportando-se em sequências frenéticas para bloquear ataques direcionados a Sophi – uma pena dourada voava em arco, e ele aparecia na frente, distorcendo o espaço para desviá-la, o impacto explodindo em faíscas que queimavam sua pele, enquanto outra rajada vinha de lado, forçando-o a girar e comprimir o ar em uma barreira que tremia com o esforço. Mas a vantagem de Lidyan era esmagadora, suas penas dançando em padrões imprevisíveis, girando como um furacão vivo que cercava os dois, cortando o ar com assobios agudos. Cada ataque que Kai bloqueava para proteger Sophi abria uma brecha em sua própria defesa – uma pena raspava sua coxa em um contra-golpe rápido, outra perfurava seu braço em um giro ascendente, o sangue jorrando enquanto ele rosnava, teleportando-se novamente para interceptar uma lança de luz que mirava o peito dela, o corpo dele tremendo com a exaustão, mas continuando a lutar, os teleportes agora acompanhados de grunhidos de dor, o Ether pulsando erraticamente.
Sophi, vendo o sacrifício dele – os cortes se multiplicando, o sangue manchando o uniforme dele como tinta vermelha –, sentiu uma onda de fúria e impotência que a consumia. Inútil. Eu sou inútil. Ela tentou treinar com Vlad, lembrando-se das sessões exaustivas onde, com muito esforço, criava uma leve aura que piscava como uma lâmpada fraca, mas era inútil contra algo assim. Ela acreditava ser uma Gifted, havia sentido aquele poder no Titanic Espacial, uma força latente que borbulhava em seu interior como um vulcão adormecido. Mas desde então, ele nunca mais despertou, preso por barreiras invisíveis. Por favor, pediu ela internamente, os olhos fechados com força, as lágrimas escorrendo pelas bochechas, o corpo tremendo enquanto o som da batalha ecoava ao redor – explosões de luz, distorções espaciais, grunhidos de dor. Eu não quero mais ser inútil. Por favor... ative!
Ela abriu os olhos no exato momento para ver a cena em câmera lenta, o mundo parecendo desacelerar sob o peso do desespero. Uma lança de luz dourada disparando em sua direção, o brilho cegante cortando o ar com um zumbido grave, girando em espiral como um parafuso vivo. E Kai, com as últimas forças, se jogando em sua frente em um teleporte final, o ar distorcendo com um estalo sônico, o corpo dele interceptando o golpe. O som do impacto foi surdo e doentio, como carne sendo rasgada, e ele caiu de costas a seus pés, um buraco fumegante em seu ombro, o cheiro de carne queimada pairando no ar, o sangue jorrando em pulsos quentes que manchavam o chão.
O rosto de Sophi se contorceu em uma máscara de puro desespero, os olhos arregalados, enquanto as lágrimas caíam como chuva. E, para Lidyan, aquela visão era a mais bela de todas, uma sinfonia de sofrimento que a enchia de uma felicidade hedionda, quase sexual, o corpo dela tremendo de prazer enquanto absorvia o desespero, os olhos brilhando com um êxtase cruel. Os Corvos eram brinquedos muito mais divertidos do que ela imaginava, cada gota de dor um deleite que a fortalecia.
Kai tentou se levantar, brigando consigo mesmo para ficar de pé, os músculos tremendo, o braço bom se estendendo para o chão em busca de apoio, mas seu corpo se recusava a responder, o veneno da habilidade de Lidyan se espalhando como fogo líquido em suas veias. As lágrimas de Sophi caíam sobre o rosto dele, quentes e salgadas, misturando-se ao sangue. — Para, por favor... — sussurrou ela, a voz quebrada, enquanto se ajoelhava ao lado dele, as mãos tremendo ao tocar seu ombro ferido. — Não quero ver mais ninguém morrendo por minha culpa... — Seus soluços ecoavam, o corpo curvado sobre ele como um escudo frágil.
Ele tentou levar a mão até ela, os dedos tremendo no ar, para dizer para ela parar de chorar, mas as palavras morriam em sua garganta. De repente, Lidyan apareceu atrás de Sophi em um movimento fluido, como uma sombra se materializando, e, com um golpe preciso na nuca – a palma brilhando com Ether dourado –, a desmaiou, o corpo dela caindo mole como uma boneca quebrada.
— Onde... — a voz de Kai era um arrastar de palavras, rouca e fraca, enquanto tentava se arrastar — ...você acha que vai com ela?
Lidyan riu, a transformação se desfazendo em camadas de luz que se dissipavam como névoa, o rosto de Rani se dissolvendo para revelar sua verdadeira forma – cabelos prateados cascateando, olhos âmbar brilhando com malícia, as asas negras de Anjo Caído pulsando fracamente atrás dela. — Desista, garoto. Se continuar, vai só morrer, e isso não seria divertido. Você caiu direitinho na minha manipulação. — Ela pegou o corpo inerte de Sophi com facilidade, jogando-a sobre o ombro como um troféu. — Volta pro seu ninho. Conta pros outros Corvos o que eu fiz. Diz que levei a amiga de vocês. Se quiserem ela de volta, podem vir pro nosso esconderijo. Vocês já sabem onde fica. — Um sorriso cruel surgiu em seus lábios, os dentes reluzindo sob a luz fraca. — Talvez o tal Dante seja mais divertido de brincar. Sua bateria já acabou.
Ela começou a se afastar, os passos leves e graciosos, as penas etéreas deixando um rastro de luz dourada que se dissipava no ar. Kai tentou se mover, rastejar atrás dela, os dedos cravando na terra úmida, o corpo arrastando-se centímetro por centímetro, mas o veneno paralisava seus músculos, o Ether dele enfraquecendo como uma chama moribunda.
— Ah, e mais uma coisa — disse Lidyan, virando-se por sobre o ombro, os olhos brilhando com diversão. — Minha habilidade tem um toque venenoso. Esqueci de mencionar. Tô torcendo pra que alguém te ache e te leve pro dormitório a tempo de dar o recado. Se não... seria uma pena. — Com um riso baixo, ela desapareceu nas sombras das árvores próximas, o ar tremendo com sua partida, levando Sophi consigo.
Kai ficou largado no chão, o corpo paralisado, inútil, o sangue escorrendo e se misturando com a terra, formando poças escuras que refletiam o céu cinzento acima. Ele continuava tentando se mover, os músculos convulsionando em esforços vãos, a respiração rasa e dolorosa. Sentiu algo molhado em seu rosto, quente e salgado. Pensou se eram lágrimas suas, o peito apertado com uma mistura de raiva e desespero que ele nunca havia sentido.
Mas a chuva que começou a cair do céu cinzento, gotas grossas e frias tamborilando no chão ao seu redor, impedia que ele tivesse certeza, lavando o sangue e as lágrimas, enquanto o mundo ao seu redor escurecia, deixando-o sozinho com o eco da batalha.
Parte 812 de Setembro - Ala Médica do Colégio Babylon
A primeira coisa que Kai percebeu foi o cheiro. Estéril, limpo, antisséptico – uma fragrância que invadia suas narinas como um intruso indesejado, trazendo com ela memórias de vulnerabilidade que ele desprezava com todas as forças. Ele abriu os olhos, a luz branca e fria da ala médica o cegando por um instante, os contornos do quarto desfocados como uma pintura borrada. Sua mente estava turva, um emaranhado de fragmentos – dor lancinante, a chuva fria batendo em seu rosto, o sorriso cruel de sua "mãe" ecoando como uma maldição. O teto branco acima parecia pulsar com a luz fluorescente, e o som baixo do monitor cardíaco ao seu lado marcava um ritmo constante, quase zombeteiro, enquanto ele tentava se ancorar à realidade. Seus músculos protestavam, rígidos e doloridos, como se cada fibra tivesse sido esticada além do limite, e o peso da exaustão parecia pressionar seu peito, dificultando a respiração.
— Kai?
A voz suave de Vivian cortou o silêncio, ancorando-o como um farol em meio à névoa. Ela estava sentada em uma cadeira ao lado de sua cama, o uniforme impecável, mas com vincos sutis que denunciavam horas de espera. Seus olhos vermelhos, cercados por olheiras escuras, brilhavam com uma mistura de alívio e preocupação, e seus cabelos brancos, normalmente bem penteados, caíam em mechas desalinhadas sobre os ombros, como se ela tivesse passado a noite em vigília. Kai tentou se sentar, movido por instinto, mas uma onda de tontura o atingiu como um soco, o quarto girando ao seu redor, as luzes brancas se transformando em manchas dançantes que o forçaram a cerrar os olhos com um gemido baixo.
— Calma — disse Vivian, levantando-se rapidamente, a cadeira rangendo contra o chão de linóleo. Ela colocou uma mão firme, mas gentil, em seu ombro, guiando-o de volta aos travesseiros com um cuidado que contrastava com a intensidade de seu olhar. — Você precisa descansar. Não força. — Sua voz era suave, mas carregada de uma autoridade que não admitia discussão, e o toque dela era quente contra a pele fria de Kai, como se tentasse puxá-lo de volta do abismo.
— O que...? A Sophi... — começou ele, a voz rouca e áspera, como se tivesse engolido areia, cada palavra arranhando a garganta. Ele tentou levantar a cabeça novamente, os olhos buscando os dela, o pânico começando a se formar em seu peito enquanto fragmentos da batalha voltavam – o rosto de Sophi, as lágrimas dela, o golpe final de Lidyan.
Vivian ergueu a mão, silenciando-o com um gesto, e se sentou na beira da cama, os olhos fixos nos dele, como se quisesse segurar sua atenção antes que ele se perdesse novamente. — Respira. Eu vou te explicar tudo. — Ela respirou fundo, os ombros subindo e descendo, e começou a falar, a voz firme, mas carregada de emoção contida. — Você se arrastou, Kai. Paralisado, sangrando, envenenado pelo veneno de Lidyan, você voltou pro dormitório dos Corvos só na força de vontade. Chegou lá quase morto, mas conseguiu dar o aviso sobre a Sophi antes de apagar. — Ela fez uma pausa, os olhos brilhando com algo que parecia orgulho misturado com dor, enquanto o som do monitor cardíaco parecia amplificar o silêncio entre suas palavras. — Você ficou inconsciente por três dias. Os médicos lutaram pra tirar esse veneno do seu sistema. Foi por pouco, Kai. Por muito pouco.
A cada palavra, as memórias daquele dia voltavam, nítidas e cruéis, como lâminas cortando sua mente. A manipulação de Lidyan, moldando-se como o pai de Sophi e depois como sua mãe, cada transformação um golpe calculado para despedaçar suas defesas. A impotência que o engoliu enquanto tentava proteger Sophi, o sangue escorrendo pelo chão, o som da chuva abafando seus gritos. E, finalmente, o olhar de pena no rosto de "Rani" enquanto o deixava para morrer, as palavras dela ecoando como uma sentença: “Você não passa de um fracasso.” Kai mordeu o lábio com força, o gosto metálico de sangue enchendo sua boca, um contraste amargo com o cheiro estéril do quarto. Seus ombros tremeram, e uma única lágrima solitária escapou de seu olho, traçando um caminho quente por sua têmpora, brilhando sob a luz fria como uma confissão que ele não queria fazer.
Vivian, vendo aquilo, sentiu o coração se despedaçar, como se uma rachadura invisível se formasse em seu peito. Ela conhecia o orgulho de Kai, a muralha que ele construíra ao redor de si mesmo, e ver aquela fachada ruir, mesmo que por um instante, era mais doloroso do que qualquer ferida física. Mas ela fingiu não estar olhando, virando o rosto para a janela, onde o céu de Babylon se estendia em tons de azul pálido, salpicado por nuvens brancas que flutuavam como ilhas distantes. O gesto era uma oferta silenciosa, uma maneira de proteger o orgulho ferido de seu irmão, enquanto o som baixo dos equipamentos médicos tomava conta da sala.
“...esse caminho luminoso e brilhante estava apenas o cegando...”
A voz de Daemon Hakurei ecoou em sua mente, não mais como uma provocação, mas como uma verdade esmagadora que se cravava em seu peito como uma estaca. Ele havia se tornado fraco. Havia se esquecido de como era frustrante, de como era humilhante ser fraco. Ele havia sido cego, permitindo que os laços com os Corvos – com Sophi, com Vivian – o tornassem vulnerável, um alvo fácil para manipulações como as de Lidyan. Seus punhos se cerraram sobre os lençóis brancos, o tecido amassando sob seus dedos, enquanto o monitor cardíaco acelerava ligeiramente, ecoando o ritmo agitado de seus pensamentos.
— A verdade sobre a Verbrechen der Evolution foi espalhada por toda a escola — disse Vivian, a voz agora firme, cortando o silêncio e trazendo-o de volta ao presente. Ela se virou para ele, os olhos brilhando com uma determinação feroz, como se estivesse canalizando toda a sua raiva em um propósito único. — Todos os Corvos decidiram. Vamos acabar com isso de uma vez por todas. E vamos trazer a Sophi de volta. — Ela se levantou, o movimento rápido e decidido, o uniforme farfalhando enquanto ela se posicionava ao pé da cama, as mãos nos quadris, a postura exsudando autoridade.
— Eu sabia que você não era do tipo que ficaria de fora — continuou ela, inclinando-se ligeiramente, o rosto sério, os olhos violeta fixos nos dele como lâminas. — Então se prepara, se arruma e muda essa expressão que tá fazendo. Nós vamos atacar hoje à noite. E estamos cansados de esperar. — Sua voz era um comando, mas havia um toque de calor por trás das palavras, uma promessa silenciosa de que eles estavam juntos nisso.
Ela se virou e saiu do quarto, os passos ecoando no corredor estéril, o som abafado pela porta que se fechou com um clique suave. No silêncio que se seguiu, suas palavras pairavam no ar como uma chama, iluminando a névoa de dúvida que envolvia Kai, mas também alimentando a fúria que crescia dentro dele.
No corredor, longe dos olhos de seu irmão, a máscara de calma de Vivian se quebrou. Sua expressão se contorceu em uma fúria fria e absoluta, os olhos brilhando com um ódio que parecia queimar o ar ao seu redor. Ela mordeu o próprio lábio com tanta força que sentiu a pele se romper, o gosto metálico de sangue enchendo sua boca enquanto o líquido escorria pelo queixo, pingando no chão de linóleo como uma promessa de vingança. Quem quer que tenha feito meu irmão fazer aquela expressão, pensou ela, o ódio pulsando em suas veias como lava, vai pagar. Vai pagar caro. O vento que entrava pela janela do corredor agitava seus cabelos, como se ecoasse a tempestade que se formava dentro dela, e seus punhos se cerraram, as unhas cravando nas palmas até doerem, enquanto o som das cachoeiras distantes parecia amplificar sua resolução.
Dentro do quarto, Kai olhava para as próprias mãos, os dedos trêmulos abertos diante dele, como se buscasse respostas nas linhas de suas palmas. A tristeza que o consumira momentos antes deu lugar a uma frustração que o queimava por dentro, uma chama que crescia a cada batida de seu coração. Fraco. Eu sou fraco. A palavra martelava em sua cabeça, cada repetição um lembrete de sua falha, um eco das palavras de Lidyan, de Daemon, de sua própria mãe. Ele cerrou os punhos, as unhas cravando nas palmas até a pele ceder, a dor física uma distração bem-vinda da agonia em sua alma. O monitor cardíaco acelerou, o bip-bip constante agora mais rápido, como se acompanhasse o ritmo de sua raiva crescente.
Parte 9
12 de Setembro - Clareira atrás do antigo prédio de culinária, Colégio Babylon
A clareira atrás do antigo prédio de culinária vibrava com energia crua, o ar estalando com o poder bruto que se chocava como trovões em uma tempestade. O chão, outrora coberto de ervas rasteiras e musgo, agora era um campo de batalha marcado por crateras fumegantes, árvores partidas ao meio e pedaços de terra revirada, como se a própria natureza tivesse recuado diante da fúria de Dante. Ele treinava. E falhava. De novo e de novo. Cada tentativa era um espetáculo de esforço e frustração, o Ether pulsando em ondas erráticas ao seu redor, distorcendo o ar como calor subindo de um deserto. Suor escorria por seu rosto, misturando-se ao sangue que pingava de cortes recentes, e seus cabelos negros, desgrenhados, colavam na testa enquanto ele se movia, o corpo tremendo de exaustão, mas movido por uma determinação que parecia desafiar os limites da carne.
Observando de uma distância segura, sob a sombra de uma árvore retorcida, Inori se aproximou de Yuki, que assistia à cena com os braços cruzados, a postura rígida como uma sentinela. O vento soprava em rajadas suaves, carregando o aroma de terra úmida e madeira queimada, enquanto as folhas caídas rodopiavam ao redor delas, como se atraídas pelo caos da clareira. — Eu não esperava por isso — disse ela, os olhos fixos em Dante, que tentava mais uma vez invocar sua habilidade, o ar ao seu redor tremendo com o esforço. — Quando você contou a ele sobre o sequestro da Sophi, o Dante mudou completamente. Ficou... furioso. Achei que não íamos conseguir segurá-lo.
Yuki assentiu, os cabelos loiros balançando com o movimento, os olhos azuis refletindo uma mistura de preocupação e resignação. — Eu também fiquei surpresa — admitiu ela, a voz calma, mas com um toque de tensão que traía sua compostura. — Foi por isso que a Beatrice me mandou atrás dele. Pra não deixar ele se apressar e fazer alguma besteira. — Sua voz morreu, os olhos se perdendo no horizonte, onde o céu se tingia de tons de laranja e roxo, e sua mente mergulhou nas memórias daquele dia caótico, como se o próprio ar ao redor dela se tornasse mais pesado.
Flashback - O Dormitório dos Corvos
O dormitório dos Corvos estava envolto em uma tensão palpável, o ar carregado com o peso da raiva e do desespero. As paredes de madeira, decoradas com estandartes dos Corvos e fotos de momentos melhores, pareciam vibrar com a energia caótica que emanava dos presentes. Kai, apoiado por Vivian e Anna, estava no centro da sala, o corpo curvado, o uniforme rasgado e manchado de sangue seco, o rosto pálido como cera, mas os olhos ardendo com uma intensidade que desafiava sua fraqueza física. Ele havia acabado de contar a história – a emboscada de Lidyan, a manipulação cruel, o sequestro de Sophi –, cada palavra dita com esforço, a voz rouca arranhando a garganta, mas firme, como se fosse movida por pura força de vontade.
A reação foi instantânea e violenta, como uma faísca caindo em um barril de pólvora.
— EU VOU MATAR ELES! — O grito de Mio ecoou pela sala, alto o suficiente para fazer as janelas tremerem, sua aura flamejante explodindo ao seu redor em chamas vermelhas e douradas que lambiam o ar, o calor distorcendo a atmosfera e fazendo os papéis na mesa próxima crepitarem. Objetos leves – canetas, copos, um livro esquecido – vibraram e deslizaram pelo chão, como se intimidados pela fúria dela. Seus cabelos ruivos esvoaçavam como uma coroa de fogo, e os olhos brilhavam com uma raiva que parecia consumir tudo ao seu redor.
— Não podemos abandonar um companheiro! — exclamou Kintoki, os nós dos dedos brancos de tanto apertar os punhos, o uniforme esticando-se contra os músculos tensos. Ele deu um passo em direção à porta, o chão de madeira rangendo sob suas botas, a postura de um touro pronto para investir. Mio já estava ao lado dele, a aura dela pulsando como um vulcão, os dois movendo-se como uma força da natureza, imparáveis.
Beatrice, normalmente a âncora de calma do grupo, estava de pé, os punhos cerrados com tanta força que as unhas cravavam nas palmas, o sangue pingando em gotas minúsculas no chão. Seus olhos verdes brilhavam com uma fúria assassina, a compostura habitual substituída por uma intensidade que fazia o ar ao seu redor parecer mais pesado, como se ela estivesse pronta a liderar a carga ao lado de Mio e Kintoki.
— PAREM! — A voz de Charlotte cortou a sala como um chicote, afiada e autoritária, ecoando contra as paredes e silenciando o caos por um instante. Ela se levantou da cadeira, o cabelo dourado reluzindo sob a luz fraca das lâmpadas, os olhos violeta brilhando com uma mistura de frustração e determinação. — Pensem, pelo amor de Deus! Isso é claramente uma armadilha! Se sairmos agora, sem um plano, vamos cair direto nas mãos da Verbrechen der Evolution! — Sua voz era firme, mas tremia levemente, revelando o esforço para manter a calma em meio à tempestade de emoções.
— E O QUE VOCÊ SUGERE?! QUE A GENTE FIQUE AQUI SENTADO?! — rosnou Mio, girando para encará-la, as chamas ao seu redor pulsando mais intensas, o calor fazendo o ar ondular. Ludmilla, com um movimento rápido, segurou os ombros de Mio com força, as mãos firmes como garras, impedindo-a de avançar, os olhos dela cheios de uma urgência silenciosa.
Anna, parada em um canto, estava com o coração apertado, o rosto pálido como papel, os olhos arregalados de preocupação. — Onde tá o Dante numa hora dessas...? — murmurou ela, a voz quase inaudível, as mãos torcendo o tecido da roupa.
Naquele momento, a porta do dormitório se abriu com um rangido lento, e Kurokawa entrou, os cabelos negros soltos caindo sobre os ombros, o rosto confuso ao sentir a atmosfera pesada que pairava como uma nuvem de tempestade. — O que aconteceu? Por que tá todo mundo com essa cara? — perguntou ela, a voz hesitante, os olhos varrendo a sala, parando em Kai, que mal conseguia se manter em pé, apoiado em Vivian.
Um silêncio mortal caiu, tão denso que parecia sufocar o ar. Todos se viraram para ela, os rostos marcados por uma mistura de raiva, tristeza e impotência, ninguém sabendo como dar a notícia. Foi Vivian quem quebrou o silêncio, a voz trêmula, mas firme, como se estivesse se forçando a manter a compostura. — Kurokawa... a Sophi... ela foi sequestrada.
Kurokawa ficou paralisada, os olhos arregalando-se em descrença, e então caiu de joelhos, o impacto contra o chão de madeira ecoando na sala silenciosa. Seu rosto se contorceu em uma máscara de horror, as palavras presas na garganta, os lábios tremendo enquanto ela tentava processar o que ouvira. As lágrimas começaram a escorrer, silenciosas, traçando linhas brilhantes por suas bochechas, e o silêncio da sala pareceu se aprofundar, como se todos compartilhassem a dor dela.
— Já chega — disse Kintoki, a voz grave, quase um rosnado, enquanto se virava para a porta novamente, os óculos escuros refletindo a luz das lâmpadas, escondendo os olhos cheios de fúria.
— Para — ordenou Charlotte, dando um passo à frente, a postura rígida, como uma general em um campo de batalha.
— Abandonar nossos amigos por medo é a coisa mais ridícula que alguém poderia fazer — retrucou Kintoki, girando para encará-la, a voz carregada de desprezo. — E alguém legal como eu nunca faria isso. — Ele ajustou os óculos com um gesto rápido, o movimento quase desafiador, enquanto o Ether ao seu redor pulsava em ondas sutis, como um trovão distante.
— E você acha legal ir tentar salvar um companheiro, falhar, e acabar preocupando os outros também? — disparou Charlotte, os olhos estreitando-se, a voz cortante como uma lâmina. — Use a cabeça, Kintoki!
— Você acha que eu vou perder?! — perguntou ele, a voz subindo, os punhos cerrados tremendo, o ar ao redor dele vibrando com a energia contida.
— FIQUEM! — O grito de Ludmilla foi tão furioso que ecoou como um trovão, fazendo até Kintoki parar, os olhos arregalados por trás dos óculos. Ela estava de pé, as unhas rasgando a pele de suas próprias mãos, gotas de sangue pingando no chão, o rosto contorcido em uma mistura de raiva e desespero. — Ela tem razão. Se agirmos só pela emoção, não vamos conseguir nada. Só vamos atrapalhar. Agora, precisamos agir com inteligência. — Sua voz tremia, mas havia uma força inabalável por trás, como uma rocha resistindo a uma tempestade.
Beatrice, que finalmente havia recuperado a compostura, assentiu, os olhos ainda brilhando com uma fúria contida, mas agora canalizada em algo mais afiado. — Ela tá certa — disse ela, a voz firme, enquanto cruzava os braços, o uniforme esticando-se contra os ombros. — Precisamos de um plano.
Vivian, também assentiu, os olhos violeta cheios de uma determinação feroz. — Não podemos sair agora. Luck, Asuna e Leona ainda tão acamados. Não sabemos onde o Dante tá. E o Kai... tá nesse estado. — Ela apontou para ele, que agora estava sentado em uma cadeira, o rosto pálido, o corpo curvado de exaustão. — Não podemos agir sem pensar.
— E vamos deixar a desgraçada que fez isso com o Kai escapar?! — perguntou Mio, incrédula, as chamas ao seu redor pulsando mais intensas, o calor fazendo o ar ondular como um espelho distorcido.
— VOCÊ ACHA QUE EU NÃO QUERO IR ATRÁS DELA?! — gritou Vivian, dando um passo à frente, a voz quebrando com a intensidade de sua frustração. — Mas precisamos agir com calma! Se sairmos agora, sem um plano, vamos perder tudo! — Seus olhos brilhavam com lágrimas contidas, o rosto vermelho de emoção, e o silêncio que se seguiu foi pesado, como se todos sentissem o peso de sua dor.
Um a um, a fúria deu lugar a uma razão amarga, os ombros relaxando, as auras se acalmando, o ar na sala ficando menos sufocante. Charlotte assumiu o comando, a voz agora fria e precisa. — Vou entrar em contato com os Juízes e programar a missão de ataque. Até lá, ninguém age como idiota. Entendido? — Ela varreu a sala com o olhar, desafiando qualquer um a discordar.
Beatrice então começou a dar as ordens, a voz firme como uma general organizando suas tropas. — Yuki, vai atrás do Dante. Aquele idiota muito provavelmente vai tentar ir sozinho. Não deixa. Eu confio em você. — Ela se virou para os outros, os olhos verdes brilhando com uma intensidade que não admitia discussão. — Vivian fica com o Kai. Anna e Ludmilla, fiquem de olho na Mio e no Kintoki. Eu fico com a Charlotte e a Mirai.
— Por que você não fica com a gente? — perguntou Mio, desconfiada, os olhos estreitando-se, as chamas ao seu redor diminuindo, mas ainda pulsando como brasas.
Beatrice a encarou, os olhos cheios de uma honestidade brutal que cortava como uma faca. — Porque, se vocês dois perdessem a cabeça e tentassem ir de novo, eu não tenho confiança de que não iria junto. — Sua voz era firme, mas havia um toque de vulnerabilidade, um reconhecimento de sua própria fúria que fez Mio hesitar, as chamas ao seu redor se apagando completamente.
De volta ao presente
O flashback se dissipou, deixando Yuki e Inori na clareira, o som de explosões trazendo-as de volta à realidade. Dante, no centro da cratera, cuspiu sangue, o líquido vermelho manchando o chão coberto de poeira e terra revirada. Seu uniforme estava rasgado, coberto de cortes e queimaduras, o rosto pálido, mas os olhos ardendo com uma determinação insana. Ele se levantava mais uma vez, o corpo tremendo de exaustão, os músculos convulsionando com o esforço, o Ether pulsando erraticamente ao seu redor como uma chama instável. O céu acima estava tingido de vermelho escuro, o sol quase desaparecido, lançando sombras longas que pareciam dançar com a fúria dele.
— De novo! — gritou Dante, a voz rouca, quase um rosnado, enquanto se posicionava, os pés firmes no chão rachado, as mãos abertas como se tentasse agarrar algo invisível no ar.
Kouka e Leticia, suas parceiras de treino, estavam a poucos metros, os rostos marcados por preocupação e frustração. — Isso é suicídio, Dante! — exclamou Leticia, a voz tremendo de preocupação, os cabelos rosas colados na testa com suor, o uniforme manchado de terra. — Você não tá progredindo mais! Só tá acelerando sua própria morte! — Ela gesticulou, apontando para os cortes que cobriam os braços e o torso dele, o sangue pingando em riachos lentos.
— Minha habilidade... — arfou Dante, o peito subindo e descendo com respirações pesadas, o sangue escorrendo pelo canto da boca. — Eu aprendo mais rápido... quanto mais perto eu chego de morrer, mais rápido ela funciona! Então parem de se conter! Ataquem com tudo! Só assim eu vou aprender! — Seus olhos brilhavam com uma intensidade selvagem, quase maníaca, e um sorriso ensanguentado curvava seus lábios, como se ele encontrasse algum tipo de prazer na dor, na beira do colapso.
Kouka, parada ao lado de Leticia, viu a determinação insana nos olhos de Dante, o brilho que não vacilava mesmo com o corpo coberto de feridas. Ela suspirou, os cabelos negros esvoaçando com o vento, a mão coberta por raios crepitantes que estalavam como chicotes, o Ether pulsando em ondas elétricas ao seu redor. — Certo — disse ela, a voz baixa, mas firme, como se aceitasse o desafio contra sua vontade. — Mas não me culpe se você acabar morto.
Ela avançou com uma velocidade assustadora, o corpo envolto em raios que deixavam um rastro de luz azulada, o chão sob seus pés rachando com o impacto de cada passo. Dante, em vez de se defender, fez a pose, as mãos abertas diante do corpo, os dedos tremendo enquanto tentava invocar o arco – uma habilidade que ele ainda não dominava completamente. O ar ao seu redor distorcia, o Ether se condensando em linhas instáveis que brilhavam como filamentos de luz, mas não se formavam, tremendo como uma miragem. Um sorriso selvagem e ensanguentado se formou em seu rosto, os dentes manchados de vermelho, os olhos brilhando com uma mistura de dor e excitação.
— Pode vir! — gritou ele, a voz ecoando pela clareira, desafiando o destino.
O impacto foi imediato e devastador. Kouka lançou uma onda de raios que cortou o ar como uma lâmina elétrica, o som crepitante enchendo a clareira enquanto o ataque mirava o peito de Dante. Ele girou no último segundo, o corpo movido por puro instinto, o Ether ao seu redor pulsando em uma tentativa desesperada de formar o arco. A onda elétrica raspou seu ombro, queimando o tecido do uniforme e deixando uma marca vermelha na pele, o cheiro de carne chamuscada pairando no ar. Leticia entrou na luta, suas mãos brilhando com seu proprio arco de energia disparando projéteis que voavam em direção a Dante. Ele saltou, o corpo girando no ar, e tentou canalizar o Ether novamente, as mãos tremendo enquanto linhas de energia se formavam, mas se desfaziam antes de tomar forma, o arco ainda incompleto.
Uma pedra atingiu sua coxa, o impacto fazendo-o cambalear, o sangue escorrendo pela perna enquanto ele caía de joelhos. Kouka avançou novamente, os raios dançando em suas mãos como cobras vivas, e lançou um chicote elétrico que cortou o ar em um arco perfeito, mirando o pescoço dele. Dante rolou para o lado, o chicote acertando o chão e criando uma cratera fumegante, o calor subindo em ondas visíveis. Ele se levantou, o corpo protestando, mas movido por uma força que transcendia a dor, e tentou mais uma vez – as mãos abertas, o Ether pulsando em ondas caóticas, o ar ao seu redor vibrando como se estivesse prestes a se partir.
— Mais forte! — gritou ele, a voz rouca, os olhos arregalados, o sorriso selvagem agora tingido de desespero.
Kouka hesitou por um instante, os olhos dela encontrando os de Leticia, mas a determinação de Dante era contagiante, como uma chama que se recusava a apagar. Ela cerrou os dentes, os raios ao seu redor intensificando, e lançou um ataque combinado com Leticia – uma tempestade de raios e flechas de ether que convergiam para Dante em uma dança mortal. O ar explodia em luz e som, o chão rachando em fissuras profundas, as árvores ao redor balançando como se temessem o caos. Dante, no centro da tempestade, fechou os olhos por um instante, o corpo tremendo, o Ether pulsando em suas veias como um rio em fúria. Ele abriu as mãos, e, por um breve momento, o arco começou a se formar – linhas de luz caótica se entrelaçando, brilhando com uma energia instável, mas ainda incompleta.
O ataque o atingiu, raios e flechas colidindo contra ele em uma explosão que levantou uma nuvem de poeira e fumaça, o som ecoando pela clareira como um trovão final. Quando a poeira baixou, Dante estava de joelhos, o corpo coberto de novos cortes e queimaduras, o sangue pingando no chão, mas ele ainda sorria, os olhos brilhando com uma determinação que desafiava a lógica.
Yuki, assistindo de longe, sentiu um aperto no peito. — Ele não dormiu nem comeu nada há dois dias — murmurou ela, a voz cheia de preocupação. — Desse jeito, quando a missão começar, ele já vai tá nas últimas.
Inori assentiu, os olhos fixos em Dante, que se levantava mais uma vez, o corpo cambaleante, mas a postura desafiadora. — Ele tá forçando a habilidade dele ao limite — disse ela, mexendo nos cabelos. — Mas é como ele disse... quanto mais perto da morte, mais rápido ele aprende. Só espero que ele não pague um preço alto demais por isso.
Na cratera, Dante cuspiu mais sangue, o líquido manchando o chão, e levantou as mãos novamente, o Ether pulsando em ondas erráticas, o arco tentando se formar, mas desmoronando como uma miragem. Kouka e Leticia trocaram um olhar, hesitando, mas Dante gritou, a voz rouca, mas cheia de fogo: — De novo! Não parem!
E assim, o treinamento hardcore continuava, um ciclo brutal de dor e desespero, cada golpe uma lição, cada ferida um passo em direção ao poder necessário para salvar Sophi. A clareira tremia com o impacto de seus esforços, o céu escurecendo enquanto as estrelas começavam a surgir, testemunhas silenciosas de um garoto que se recusava a desistir, mesmo que isso significasse dançar com a morte para alcançar seus amigos.
Parte 10
12 de Setembro - Sala do Conselho, Colégio Babylon
A reunião na sala do conselho terminou em um silêncio pesado, o ar carregado com a tensão de um consenso frio e relutante entre os Juízes e os Corvos. As paredes de pedra polida da sala, adornadas com estandartes dourados e prateados que refletiam a luz das luminárias de cristal, pareciam vibrar com a energia contida dos presentes, como se o próprio ambiente sentisse o peso da decisão tomada. O cheiro de cera queimada das velas misturava-se ao aroma metálico do Ether que ainda pairava no ar, resquício das auras intensas que haviam colidido durante a discussão. Blade, o líder dos Juízes, estava de pé no centro da sala, sua figura imponente destacada contra a janela que dava para o céu crepuscular de Babylon, tingido de tons de roxo e vermelho. Sua armadura cerimonial reluzia sob a luz fraca, e seus olhos, frios como aço, varreram o grupo enquanto ele dava as últimas ordens, a voz grave ecoando com uma autoridade inquestionável.
— Outros grupos provavelmente já estão se movendo atrás da Verbrechen der Evolution — disse ele, as palavras cortando o silêncio como uma lâmina. — Por sorte, a localização exata da base deles ainda não foi revelada. Temos que acabar com eles antes que outros reinos se envolvam e caçadores externos cheguem primeiro. A missão começa no horário marcado. — Ele fez uma pausa, os olhos estreitando-se, como se desafiasse qualquer um a questionar sua decisão, enquanto o som distante das cachoeiras de Babylon ecoava pela janela entreaberta, um murmúrio constante que parecia sublinhar a gravidade do momento.
Todos se levantaram, as cadeiras rangendo contra o chão de mármore, o som ecoando na sala como um sinal de que o tempo da deliberação havia acabado. Beatrice, no entanto, permaneceu sentada, os cotovelos apoiados na mesa de madeira polida, as mãos entrelaçadas com força, os nós dos dedos brancos. Seus olhos verdes estavam perdidos em pensamentos, fixos em um ponto invisível, a frustração emanando dela em ondas silenciosas, como uma tempestade contida. O uniforme impecável, parecia contrastar com a desordem interna que ela mal conseguia esconder, os cabelos caindo em mechas soltas sobre os ombros, agitadas por uma brisa sutil que entrava pela janela. Charlotte, ao seu lado, tocou seu ombro com delicadeza, a mão firme, mas gentil, o anel de prata em seu dedo refletindo a luz das velas.
— Bea — disse Charlotte, a voz suave, mas carregada de uma compreensão que não precisava de palavras. Beatrice ergueu o olhar, encontrando os olhos de Charlotte, que brilhavam com uma determinação calma, como um farol em meio à escuridão. — Agora você não precisa mais se segurar. Todo mundo tá pronto. Tá na hora de começar.
Beatrice respirou fundo, os ombros relaxando levemente, e assentiu, levantando-se com um movimento lento, mas decidido. O peso da razão, que a mantivera ancorada durante a reunião, se dissipava, dando lugar a uma fúria fria que parecia pulsar em suas veias como lava. A hora da lógica havia acabado. A hora da fúria estava para começar, e o ar ao redor dela parecia vibrar com a promessa de vingança, o Ether em seu corpo começando a pulsar em ondas sutis, visíveis apenas para quem conhecia sua força.
Na saída do prédio, o céu de Babylon já estava escuro, as estrelas brilhando como lâminas afiadas contra o fundo negro, e o vento carregava o aroma úmido das cachoeiras misturado ao cheiro de terra e pedra aquecida pelo sol do dia. Os dois grupos se encaravam na praça de pedra polida, uma linha invisível traçada entre eles, como exércitos prestes a marchar para a mesma guerra, mas por caminhos diferentes. De um lado, os Juízes: Nastacia, com sua boneca de pano pendurada no braço, os olhos vazios como poços sem fundo, a aura dela fria e perturbadora, como se sugasse a luz ao seu redor; Emilia, com sua elegância fria, os cabelos loiros presos em um coque perfeito, o uniforme impecável refletindo sua postura aristocrática; Riana, com sua devoção feroz, os olhos brilhando com uma fé quase fanática, o crucifixo em seu pescoço reluzindo sob a luz das lanternas; e Luka, o representante do Comitê de Disciplina, parecendo sonolento como sempre, os cabelos desgrenhados caindo sobre os olhos, mas com uma quietude perigosa, como um predador adormecido.
Do outro lado, os Corvos, cuja energia era crua, intensa, caótica, como uma tempestade prestes a explodir. Luck estava visivelmente irritado, socando a própria mão com força, o som dos golpes ecoando baixo, os músculos tensos sob o uniforme, a aura dele pulsando em ondas de calor que distorciam o ar ao seu redor. Asuna, ao seu lado, parecia encolhida, os ombros curvados, os olhos cheios de vergonha e medo enquanto torcia as mãos, o cabelo rosa caindo sobre o rosto como uma cortina. Charlotte se aproximou do grupo, os passos firmes, o cabelo amarelo brilhando sob a luz das lanternas, e perguntou, a voz cortante: — O que aconteceu?
— Eu não consigo acreditar que isso aconteceu enquanto eu tava dormindo — rosnou Luck, a raiva dirigida a si mesmo, os olhos brilhando com uma fúria que parecia queimar a pedra sob seus pés. — Eu não consigo me perdoar por isso. — Ele socou a mão novamente, o som seco ecoando, o punho tremendo com a força.
— Você e a Asuna tavam desmaiados por esgotamento de Ether — disse Charlotte, tentando acalmá-lo, a voz firme, mas com um toque de empatia. — Não tinha nada que vocês podiam fazer.
Leona, ao lado, gesticulou com as mãos, os movimentos rápidos e frenéticos, a frustração clara em cada gesto. "A culpa foi minha. Eu fui inútil." Sua linguagem de sinais era quase violenta, os olhos cheios de lágrimas contidas, o corpo tremendo enquanto ela tentava se explicar.
— Não foi sua culpa! — interveio Ludmilla, dando um passo à frente, a voz alta e firme, os cabelos negros esvoaçando com o vento. — Você tava preocupada com eles no hospital. Ninguém te culparia por isso. — Ela colocou uma mão no ombro de Leona, o toque firme, mas reconfortante, enquanto seus olhos brilhavam com uma determinação feroz.
Do outro lado da linha invisível, Emilia, com um sorriso desdenhoso, falou alto o suficiente para que todos ouvissem, a voz carregada de sarcasmo: — Achei que aquele cara — ela se referia a Dante — não parecia do tipo que ficaria esperando. Mas agora que vejo que ele nem apareceu... talvez eu o tenha julgado errado. Talvez ele nem se importe tanto assim. — Ela ajustou o coque com um gesto elegante, os olhos brilhando com uma provocação calculada.
Luck a fuzilou com o olhar, os punhos cerrando-se com tanta força que os nós dos dedos estalaram. — Ele vai vir. Não tem como o Dante não aparecer — rosnou ele, a voz grave, quase um desafio, enquanto o Ether ao seu redor pulsava em ondas de calor, o ar tremendo como se estivesse prestes a explodir.
— Se você diz... — respondeu Emilia, o sorriso se alargando, antes de se virar com seu grupo em direção ao portão de teleporte, os passos sincronizados como soldados marchando para a batalha, o som das botas ecoando contra a pedra.
Kai, afastado de todos, encostado em uma parede de pedra fria, observava a discussão com uma mistura de frustração e silêncio. Seu uniforme, ainda marcado por manchas escuras de sangue seco, pendia solto sobre o corpo, o ombro enfaixado visível sob a manga rasgada. Seus olhos, fundos e sombrios, seguiam cada movimento, cada palavra, mas ele permanecia calado, os punhos cerrados ao lado do corpo, as unhas cravando nas palmas. As palavras de Daemon Hakurei ecoavam em sua mente, um sussurro insistente que o fazia questionar tudo: “Esse caminho luminoso e brilhante está apenas o cegando...” Ele sacudiu a cabeça, tentando afastar a dúvida, mas o peso da derrota contra Lidyan ainda o esmagava, como uma corrente invisível apertando seu peito.
De repente, duas figuras surgiram no final do corredor que levava à praça, os passos ecoando contra as pedras. Dante e Yuki. O ar pareceu mudar, a tensão aumentando enquanto todos os olhares se voltavam para eles. Um silêncio chocado caiu sobre os Corvos, pesado como uma tempestade iminente. Dante estava coberto de bandagens como uma mumia, o uniforme rasgado em vários pontos, revelando mais bandagens nos braços e no torso. Um corte profundo na bochecha que ainda derramava um pouco de sangue que havia criado um caminho de sangue seco e terra até o queixo, e seus olhos, embora exaustos, brilhavam com uma determinação feroz, como brasas. Ele parecia ter saído de uma guerra, o corpo cambaleante, mas a postura desafiadora. Yuki, ao seu lado, mantinha a cabeça baixa, a franja cobrindo parcialmente o rosto, a culpa visível em sua expressão enquanto evitava os olhares dos outros.
— O que é isso?! O que aconteceu com você?! — gritou Charlotte, alarmada, dando um passo à frente, os olhos arregalados enquanto analisava o estado de Dante, a voz tremendo com uma mistura de choque e preocupação.
— Não é nada. Podemos ir — disse Dante, a voz cansada, mas firme, como se cada palavra fosse arrancada à força de sua garganta. Ele limpou o sangue do queixo com as costas da mão, o movimento lento, mas determinado, enquanto o vento agitava seus cabelos negros, alguns fios colando na testa suada. Beatrice olhou para Yuki, que desviou o olhar, os ombros curvados, a culpa pesando como uma âncora.
— Você não pode ir nesse estado! — insistiu Charlotte, a voz subindo, quase desesperada. — Você pode acabar morrendo, Dante! — Ela gesticulou, apontando para as bandagens, o rosto contorcido em uma mistura de raiva e medo.
— Tá tudo bem — interrompeu Anna, sua voz calma, mas firme, enquanto se colocava na frente de Dante, os olhos brilhando com uma confiança que contrastava com a tensão ao redor. — Vocês sabem da nossa conexão. O Dante se cura mais rápido quando tá comigo. Ele vai ficar bem. — Ela cruzou os braços, a postura protetora, como se estivesse desafiando qualquer um a questioná-la.
Charlotte hesitou, a preocupação ainda estampada em seu rosto, mas acabou assentindo, os ombros relaxando levemente enquanto repassava o plano mais uma vez, a voz agora mais controlada, mas ainda carregada de urgência. Dante agradeceu a Anna com um olhar, os olhos suavizando por um breve momento. Em resposta, ela deu uma cotovelada leve em seu abdômen, o movimento rápido, quase brincalhão, mas com um toque de repreensão. Dante gemeu de dor, o corpo curvando-se ligeiramente, o rosto contorcendo-se em uma careta.
— Eu menti por você — sussurrou Anna, os olhos estreitando-se, mas com um toque de diversão. — Por isso é melhor me contar tudo depois.
Dante riu, o som rouco e dificultoso, como se doesse. — Logo você receberia minhas memórias de qualquer jeito. Não precisa ter pressa. — Ele endireitou o corpo, o sorriso ainda no rosto, mas os olhos voltando a brilhar com aquela determinação selvagem que parecia desafiar a morte.
Afastado, encostado na parede, Kai observava tudo, os olhos semicerrados, a respiração lenta, mas pesada. Ele sentiu. Ele sabia. Dante não havia sido atacado. Ele havia treinado – treinado até chegar àquele estado, até a beira da morte, para ficar mais forte. Um arrepio percorreu sua espinha, não de medo, mas de reconhecimento. Então é isso... pensou ele, a imagem de Dante, coberto de bandagens, mas ainda de pé, queimando em sua mente como uma chama. Ele sacudiu a cabeça, a determinação endurecendo suas feições, os punhos cerrando-se com tanta força que as unhas cravaram na pele, pequenos filetes de sangue escorrendo. Não vai ser você que vai acabar com aquela desgraçada. Vou ser eu. Mas, no fundo, as palavras de Daemon Hakurei ecoavam, um sussurro venenoso que o fazia hesitar: “Esse caminho luminoso e brilhante está apenas o cegando...” Uma sombra de dúvida cruzou seu rosto, e ele cerrou os dentes, tentando afogá-la.
Apenas Vivian, observando-o de longe, pareceu notar a hesitação, os olhos violeta dela fixos nele, como se pudesse ver através da fachada de raiva até o conflito que o consumia. Ela não disse nada, mas sua expressão endureceu, a promessa silenciosa de apoiá-lo, não importa o que viesse, brilhando em seus olhos.
Com o plano explicado, os Corvos começaram a se mover em direção ao portão de teleporte, os passos ecoando contra a pedra, cada um carregado de propósito. Os Juízes já estavam à frente, suas figuras desaparecendo na névoa luminosa do portal, que pulsava com energia arcana, o ar crepitando com o poder contido. Os Corvos seguiam atrás, duas facções rivais marchando para a mesma guerra, cada uma carregando suas próprias cicatrizes, culpas e promessas de vingança. O vento soprava mais forte agora, levantando folhas secas que rodopiavam no ar, como se o próprio mundo de Babylon estivesse prendendo a respiração, aguardando o confronto iminente.
Parte 11
12 de Setembro - Base da Verbrechen der Evolution
O ar no laboratório da Verbrechen der Evolution estava carregado, não com o cheiro metálico de ozônio, mas com o fedor acre de orgulho ferido, zombaria e tensão reprimida. As paredes de metal polido, iluminadas por luzes frias e estéreis, refletiam o brilho de monitores que piscavam com dados arcanos, gráficos de experimentos proibidos e projeções holográficas que dançavam no ar como fantasmas. O zumbido baixo de máquinas subterrâneas ecoava, misturando-se ao murmúrio de vozes ácidas e ao som ocasional de metal contra metal, enquanto armas eram preparadas e auras começavam a pulsar. Elizabeth, estava ausente, trancada em seus aposentos privados, onde, segundo rumores, apreciava sua "coleção" – um mistério que ninguém no grupo ousava questionar. Mas o resto da Verbrechen der Evolution estava reunido na câmara central, imersos em um debate acalorado que fazia o ar vibrar com energia contida.
— Você foi imprudente, Lidyan — disse Akira Prism, sua voz seca como papel, enquanto polia uma de suas bonecas de mahou shoujo com um pano de seda, os movimentos precisos, quase obsessivos. A boneca, com olhos de vidro brilhantes e um vestido de rendas mágicas que pulsava com um leve brilho de Ether, parecia viva sob seus cuidados, mas a frieza no olhar de Akira traía sua irritação. — Brincar com os Corvos daquele jeito poderia ter exposto todos nós. — Ele ergueu os olhos, os óculos refletindo a luz dos monitores, o rosto impassível, mas a aura pulsando com uma ameaça sutil, como uma lâmina escondida.
Naroke, a Kitsune, com um sorriso provocador que não alcançava seus olhos âmbar. balançava suas caudas lentamente, o movimento hipnótico contrastando com a zombaria em sua feição. Ela estava reclinada contra uma bancada de metal, as unhas tamborilando na superfície, o som ecoando como gotas de chuva em um telhado de zinco.
Em um canto da sala, Maria e William Tricky riam abertamente, suas vozes cortando o ar como facas. Uma projeção holográfica flutuava entre eles, mostrando a derrota humilhante de Algoz na Ponte de Éter, o corpo dele caindo em câmera lenta enquanto a luz de um ataque o consumia. Maria, com os cabelos vermelhos presos em um rabo de cavalo desleixado, apontava para a imagem, os olhos brilhando com uma mistura de desdém e decepção. — E ele se achava o mestre da dor — gargalhou William, sua personalidade "Coroa" em pleno vigor, o sorriso largo revelando dentes brancos como marfim. Ele gesticulava com um floreio teatral, o uniforme preto e dourado da Verbrechen reluzindo sob a luz. — No fim, foi só um degrau pro garoto do Jackpot! Patético!
— Eu queria o braço daquele garoto do cassino — resmungou Maria, a voz carregada de frustração, enquanto cruzava os braços, os dedos tamborilando impacientemente no bíceps. — Ele teria sido uma adição perfeita à minha coleção de troféus. — Seus olhos brilhavam com uma fome predatória, e o ar ao redor dela parecia mais pesado, carregado com o peso de sua obsessão.
Lidyan, recostada em uma cadeira de metal no centro da sala, parecia uma rainha em seu trono, as pernas cruzadas com elegância, os cabelos prateados caindo em cascata sobre os ombros, brilhando sob a luz fria. Suas asas negras, pareciam absorver a luz do ambiente. Ela parecia imperturbável, os olhos âmbar fixos em um ponto distante, o sorriso sutil nos lábios sugerindo que as críticas dos outros eram pouco mais que um inconveniente. — Uma hora ou outra, teríamos que lidar com os Corvos — disse ela, a voz suave, mas cortante, como uma lâmina envolta em seda. — O verdadeiro problema é quem vazou nossas informações. Moriarty. Esse é o fantasma que precisamos caçar. — Ela inclinou a cabeça, o movimento lento, quase felino, enquanto o Ether ao seu redor pulsava em ondas sutis, como um aviso silencioso.
O nome "Moriarty" caiu sobre a sala como uma pedra, silenciando as risadas de Maria e William e fazendo até Naroke parar de tamborilar as unhas. O ar pareceu ficar mais frio, o zumbido das máquinas mais alto, como se o próprio laboratório estivesse prendendo a respiração. Foi quando a porta principal se abriu com um rangido grave, o som ecoando como um trovão distante.
Noitora entrou.
O silêncio foi instantâneo e absoluto, como se o próprio ar tivesse sido sugado da sala. Ele caminhou até o centro do laboratório, cada passo deliberado, o som das botas contra o chão de metal ecoando como um tambor de guerra. Sua presença, como um Predador, era esmagadora – alta, imponente, com ombros largos que pareciam carregar o peso de um exército. Seus cabelos negros caíam em mechas desgrenhadas sobre os olhos âmbar, que brilhavam com uma fúria fria, como brasas em um fogo contido. O Ether vibrando como uma tempestade iminente.
— Eu concordo, Lidyan — disse Noitora, a voz um rosnado baixo e controlado, cada palavra carregada de uma ameaça que fazia a pele dos outros se arrepiar. — O vazamento foi o pior vacilo. E eu não vou perdoar o culpado. — Ele fez uma pausa, os olhos âmbar varrendo o grupo, como se pudesse enxergar através de cada um deles. — Mas também não vou perdoar quem fez aquilo com o Algoz. — Sua voz baixou ainda mais, quase um sussurro, mas carregada de uma raiva que parecia incendiar o ar. — Eu acreditei que, quando criasse meu mundo dos sonhos, ele estaria ao meu lado. E agora, por causa dos Corvos, isso não vai acontecer. — Ele se virou para o grupo, a postura rígida, os punhos cerrados, as unhas cravando nas palmas até pingar sangue. — Decidido. Vamos acabar com os Corvos primeiro. Depois, vamos atrás de Moriarty. Se ele acha que pode brincar conosco e sair impune, tá muito enganado.
CRASH!
Um estrondo violento sacudiu a base, o chão tremendo como se atingido por um terremoto, os monitores vibrando e alguns objetos caindo das bancadas com um estrépito metálico. As luzes piscaram e se apagaram, mergulhando o laboratório em uma escuridão de emergência, iluminada apenas pelo brilho avermelhado das luzes de segurança que pulsavam como um coração vivo, lançando sombras longas e distorcidas nas paredes. Os monitores ainda ativos projetavam um brilho azulado, refletindo nos rostos dos membros da Verbrechen, agora congelados em alerta.
Naroke sorriu, suas nove caudas se agitando em antecipação, o movimento fluido como uma dança, cada cauda brilhando com um brilho etéreo que parecia sugar a luz ao seu redor. — Parece que as presas da Lidyan chegaram mais cedo pro abate — disse ela, a voz carregada de excitação, os olhos âmbar brilhando com uma fome predatória enquanto pegava uma adaga de lâmina curva, o metal reluzindo sob a luz vermelha.
Noitora também sorriu, um sorriso predatório que revelou presas afiadas, os olhos âmbar brilhando com uma intensidade que parecia iluminar a escuridão. — Então... vamos dar as boas-vindas aos Corvos — rosnou ele, a voz carregada de promessa, enquanto esticava a mão, a aura dele explodindo em uma onda de Ether que fez o ar crepitar, como se a própria realidade tremesse diante de sua fúria.
Ele se virou, apontando para William, que ainda ria baixo, a projeção holográfica agora congelada na imagem de Algoz. — William! Vai corrigir a energia. Não podemos deixar os experimentos no subterrâneo descongelarem. — Sua voz era um comando, e William, com um aceno casual, mas rápido, desligou a projeção e correu em direção ao painel de controle, a personalidade "Coroa" dando lugar a uma eficiência fria.
O resto do grupo já se movia, cada um pegando suas armas com uma sincronia que denunciava anos de treinamento e instinto assassino. Akira guardou a boneca em um estojo acolchoado, os olhos brilhando com uma calma mortal enquanto invocava uma esfera de luz que flutuava ao seu redor, pulsando com energia arcana. Maria sacou uma lâmina serrilhada, o metal brilhando com um brilho vermelho, como se estivesse manchado de sangue fresco, enquanto suas unhas se alongavam, tornando-se garras afiadas. Naroke girou a adaga entre os dedos, as caudas dançando atrás dela como uma cortina de chamas, o sorriso nunca deixando seus lábios. Lidyan se levantou da cadeira, as asas etéreas se abrindo em um arco majestoso, o ar ao redor vibrando com a promessa de sua habilidade de Metamorfose.
O laboratório, agora envolto em sombras e luzes vermelhas, parecia um palco para o caos iminente. O som de passos distantes ecoava pelos corredores, o clangor de metal contra metal misturando-se ao zumbido das máquinas que voltavam à vida. A caçada havia chegado à porta da Verbrechen der Evolution, e o suspense de quem encontraria quem primeiro nos corredores escuros era a preliminar de um banho de sangue que prometia abalar os alicerces da base. A batalha estava prestes a começar, e o ar vibrava com a promessa de violência, vingança e a colisão inevitável de forças que não recuariam até que um lado fosse destruído.



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