The Fall of the Stars: Capítulo 1 - O Herói
- AngelDark

 - 3 de ago.
 - 49 min de leitura
 
Volume 6: Antologias do Destino
Entrelinhas: Um Sussurro Entre Páginas
As cortinas do quinto ato caíram, mas o eco da história ainda pairava no ar, denso e vibrante. Um silêncio expectante, aquele que precede uma grande revelação ou um final definitivo. Mas, para mim, era apenas uma pausa. Um momento para respirar…
— Olá, meus queridos. Sentiram minha falta?
A figura de Alpha agora era visível, naquele quarto aveludado que misturava o vermelho ao sombrio, sentada confortavelmente em uma poltrona que antes não estava ali, segurando um livro de capa escura que repousava em seu colo. Seus olhos, um abismo com figuras de estrelas, escondiam segredos, e seu sorriso vazio aumentava, sentindo um divertimento quase palpável.
— Eu sei, eu sei. Fui uma Leitora ausente neste último volume. Confesso que a tentação de intervir foi grande, de sussurrar um aviso aqui, de mover uma peça ali... mas me contive. Havia algo se desenrolando no grande palco, um evento de uma beleza tão rara que eu desejei apenas assisti-lo em sua forma mais pura, sem a minha interferência. Sem spoilers, entendem?
Ela fechou o livro com um estalo suave, pegando uma xícara de chá com a mão esquerda e virando-a na boca, o som ecoando no silêncio.
— Mas, como todo bom leitor, chega uma hora em que precisamos dar uma variada. Afinal, não acha monótono demais, em um mundo como esse, ficarmos limitados apenas ao Destino de Dante? Eu, por exemplo, agora estou ansiando por novos mundos e novas dores. Por isso, decidi que o livro de Dante descansará em minha estante por um tempo.
Um sorriso enigmático curvou seus lábios, um convite a um segredo.
— Fiquem tranquilos. Juro que a espera valerá a pena. Enquanto vocês estavam imersos na jornada dele, eu estive... colecionando. Histórias que, quando lidas na ordem certa...
Ela parou de repente, mexendo com uma pequena colher em seu chá, imaginando se devia deixar a resposta na cara ou fazer um mistério.
— Quando lidas na ordem certa, tecerão uma tapeçaria de compreensão que lhes faltava. Querem entender o que é a Horizon de verdade? O que significa ser um Rei Demônio? As respostas estão aqui.
Ela gesticulou para o nada e, por um instante, a imagem de uma biblioteca infinita, com corredores que se perdiam na escuridão, pareceu tremeluzir ao seu redor.
— Para compensar minha ausência, vou até dar uma pequena ajuda. Uma pista sobre quem eu sou. Mas vocês precisam me prometer: não deixem aquele que escreve descobrir. É um segredinho nosso, certo?
Alpha se levantou, a poltrona se desfazendo em sombras. Ela caminhou em direção a uma porta de madeira escura que surgiu do vácuo. Ao longe, risadas abafadas e o som de alguém reclamando de um jogo podiam ser ouvidos.
Acho que meu irmão trapaceiro encontrou um novo passatempo.
Ela murmurou, um toque de afeto e irritação em sua voz, antes de ignorar o som e girar a maçaneta. A porta se abriu para a biblioteca infinita, o cheiro de papel antigo e magia preenchendo o ar. Alpha entrou, fechando a porta atrás de si e mergulhando o palco na escuridão.
Sua voz, agora um sussurro íntimo e convidativo, ecoou do breu.
— Para começar... vamos a uma história que se passa no mesmo Domínio. Uma que talvez vocês devessem ter conhecido desde o início…
Parte 1
O ar na Floresta Cinzenta de Alexandria estalava com éter bruto e o som de presas a se chocarem com o aço. Um lobo colossal era o epicentro da fúria. Sua pelagem era um emaranhado de cinza e prata, os olhos ardiam como brasas famintas, e de suas costas brotavam espinhos de madeira petrificada. Era o Antigo, o governante daquele domínio moribundo.
— Javier, flanco esquerdo! Impeça-o de recuar para as árvores mais densas! — A voz de Ethan cortou o caos. Ele se movia não como um guerreiro, mas como um ponto de ancoragem, sua espada longa colidindo e refletindo as enormes patas da criatura.
BANG!
O som do revólver ornamentado de Javier, La Dama, ecoou. A bala, envolta numa energia azulada, não visava ferir, mas explodiu contra uma árvore antiga, criando uma barreira de estilhaços que forçou o lobo a se virar, expondo seu lado.
— Yeah! Hoje eu vou beber até meu fígado explodir, Ethan! — gritou o atirador, já recarregando com um movimento fluido.
— Menos conversa, mais tiros! — retrucou Lyra. A meio-elfa era um borrão de fúria. Ignorando a elegância de sua herança, ela deslizou por baixo da barriga do monstro, suas manoplas com garras rasgando profundamente a carne exposta. O lobo uivou, um som que fez as árvores tremerem, e tentou esmagá-la com o corpo.
A enorme criatura fez seu éter vibrar e, assim, uma rajada congelante jogou várias árvores para longe.
— Tenho certeza de que lobos gigantes não deveriam ser fortes assim — Javier, segurando-se para não ser jogado longe, falava mais para si mesmo que para os demais.
Foi então que a voz distraída de Merlinus "Merry" se ergueu. — Ah, fascinante! A estrutura muscular da pata traseira sugere uma fraqueza no tendão de Aquiles. Ou talvez fosse no tendão de Hércules? Espera, do que eu estava falando mesmo?
— Se concentra, velho maldito! Desse jeito a gente vai morrer! — Javier, ainda usando toda a força para não ser jogado, falava vendo o velho mago.
No instante seguinte, Merry bateu com seu cajado no chão. Correntes de energia verde-esmeralda brotaram da terra, prendendo a pata traseira do lobo por uma fração de segundo crucial.
Essa fração foi tudo o que Cinna precisava. A pequena demi-humana coelha, com as orelhas longas tremendo de concentração, tocou no chão. "A floresta não te quer mais aqui!" O solo sob o lobo tornou-se um lamaçal traiçoeiro, sugando suas patas e limitando sua mobilidade.
— AGORA! — O grito de Ethan foi o sinal.
O trabalho em equipe foi instintivo. Javier disparou novamente, desta vez visando o olho da criatura para distraí-la. Lyra, aproveitando a imobilidade momentânea, cravou suas garras ainda mais fundo, forçando o lobo a erguer a cabeça num uivo de agonia. Merry, num raro momento de foco total, murmurou um encantamento que fez os espinhos nas costas da criatura brilharem com uma luz fraca, tornando-os quebradiços.
Ethan avançou. Sua espada larga, antes usada para se defender, agora avançava para um ataque. Com um grito, ele saltou, usando o corpo inclinado do lobo como rampa, e cravou sua lâmina no ponto exato onde o pescoço encontrava a espinha e, segundos antes do contato, emitiu uma explosão de fogo na frente da lâmina para queimar a carne do lobo e torná-la mais fácil de cortar, sem aquecer a própria lâmina.
Houve um último uivo, um som que foi se extinguindo até se tornar um gemido, e a criatura colossal desabou, seu corpo fazendo o chão tremer uma última vez.
O silêncio que se seguiu foi quebrado pelo som de Javier assobiando.
— Bem, isso vai dar uma bela história para contar no bar.
Ethan, ofegante, limpou o suor da testa. A adrenalina começou a diminuir e, com ela, sua postura heroica. Ele olhou para a carcaça do lobo e depois para o grupo.
— Bom trabalho. Vamos... vamos levar isto para o vilarejo.
A chegada do grupo ao vilarejo de Pinewood foi um evento. A carcaça do Antigo, arrastada com a ajuda de uma levitação instável de Merry, era uma visão que misturava terror e alívio. Os aldeões saíram de suas casas de madeira, os olhos arregalados de espanto e gratidão.
O destino deles era o maior edifício da praça central, um prédio de dois andares com uma placa de madeira pendurada que exibia o símbolo de uma espada dentro de uma estrela partida: a Guilda dos Caçadores.
— Será que já está aberto? — disse Ethan, mais para si mesmo do que para os outros.
A guilda era uma extensão do famoso Colégio Babylon. Após a ascensão meteórica da academia, as antigas guildas de aventureiros foram absorvidas, tornando-se filiais que operavam em todos os cantos do mundo. Qualquer um podia se registrar, tornar-se um caçador e aceitar missões. Não era necessário ser um estudante. Contudo, havia uma distinção clara. O documento de um caçador da guilda era menos conveniente do que o dos estudantes de Babylon. As recompensas por completar missões eram menores, e o passe livre para cruzar fronteiras era um privilégio reservado aos estudantes.
O interior da guilda era rústico e funcional. Um grande quadro de missões dominava uma parede, e um balcão de madeira maciça separava os caçadores das atendentes da guilda, uma garçonete de roupas verdes e com um traje que se assemelhava um pouco ao de uma empregada.
Mas, antes de elas atenderem Ethan, um anão velho e barbudo, o líder da vila, se aproximou do grupo.
— Pela barba de Odin! Vocês conseguiram! — bradou o anão, os olhos brilhando ao ver o corpo do lobo. — O Antigo... finalmente derrotado!
Ethan, subitamente tímido sob o olhar de todos, apenas acenou com a cabeça. — Sim. Viemos reclamar a recompensa.
Enquanto o anão verificava a missão e preparava as moedas, os aldeões e outros caçadores presentes na guilda começaram a se aproximar. Um jovem apontou para Ethan, os olhos brilhando de admiração.
— É ele! Eu reconheci o brasão! É Ethan, o Gareth da Távola Redonda!
O murmúrio se transformou num alvoroço.
— O sexto caçador mais forte do mundo? Aqui, na nossa aldeia? — Um caçador de nível Platina! — Obrigado, grande cavaleiro! Você salvou a nossa aldeia!
Ethan ficou visivelmente desconfortável. Ele coçou a nuca, o rosto corando levemente. — Ah... não foi nada... Nós só... fizemos o nosso trabalho. — Ele era um herói no campo de batalha, mas um desastre lidando com elogios.
Foi Javier quem salvou a situação. Ele passou o braço pelos ombros de Ethan, um sorriso largo no rosto.
— Ouviram o homem! Ele fez o trabalho dele, e agora nós vamos fazer o nosso! — Ele pegou o saco de moedas do balcão, o tilintar chamando a atenção de todos. — A minha parte da recompensa paga uma rodada para todos nesta guilda! O herói aqui é tímido demais para festejar, então vamos festejar por ele! Chega de perder tempo, vamos celebrar!
Um grito de alegria encheu a guilda. Canecas foram erguidas, e a tensão da batalha foi lavada pela promessa de cerveja e histórias. Ethan, apanhado no meio da celebração, olhou para seus companheiros – Lyra, com um capuz escondendo o rosto, foi para o canto da sala esperar os demais; Merry, já a discutir os méritos da cerveja anã com o mestre da guilda; e Cinna, aceitando timidamente um doce de uma criança que a confundiu com uma criança também, por conta de seu tamanho. Um pequeno e genuíno sorriso finalmente apareceu em seu rosto. Talvez, apenas talvez, ele pudesse se habituar a isto.
Parte 2
A celebração na Guilda de Pinewood era um caos glorioso de canecas batendo, risadas altas e o som de um bardo local que já tentava, desajeitadamente, compor uma canção sobre o "Lobo Cinzento e o Cavaleiro de Platina". No centro de tudo, Javier, fiel à sua palavra, era o mestre de cerimônias, de pé sobre uma mesa enquanto narrava uma versão altamente floreada da batalha.
— Foi então que, com um olhar de aço que congelaria o próprio inferno, o nosso Ethan disse: "A tua hora chegou, besta!", e a sua espada desceu não como metal, mas como um raio divino forjado pela própria justiça!
Sentado num canto escuro, Ethan quase se engasgou com a cerveja, o rosto adquirindo uma tonalidade de vermelho que faria um tomate maduro sentir inveja. Ele tentava ativamente se fundir com a parede de madeira, um desejo que se intensificou quando Elara, uma jovem e bonita empregada da guilda com sardas salpicadas no nariz, lhe trouxe outra caneca com um sorriso tímido e admirado.
— O mestre da guilda mandou, por conta da casa... — disse ela, a voz suave.
Ethan apenas conseguiu murmurar um "O-obrigado" quase inaudível, os olhos fixos na mesa como se ela contivesse os segredos do universo, incapaz de encarar o rosto dela.
— Olhem só para ele! — gargalhou Javier, apontando com a caneca e quase perdendo o equilíbrio. — Derruba um monstro lendário sem piscar, mas fica paralisado por uma donzela gentil! Com essa timidez toda, vais morrer sozinho e virgem, meu amigo. Desse jeito, as infelizes mulheres de Alexandria que sonham com o grande caçador número seis vão morrer sedentas.
Lyra, sentada ao lado de Ethan, revirou os olhos com força suficiente para sentir um estalo, mas um pequeno, quase imperceptível sorriso ameaçou curvar seus lábios. Ela achava aquela dualidade nele — a seriedade mortal em batalha e a timidez desajeitada na vida — cativante. Mas nunca, nem sob tortura, o admitiria em voz alta.
— Não temos tempo para essa bobagem — disse ela, a voz cortante como vidro partido, uma máscara para sua diversão. — Não se esqueça, ainda temos um Majin para caçar na fronteira norte. Deveríamos estar a caminho.
— Relaxa, Leoa — disse Javier, saltando da mesa e se aproximando dela com duas canecas cheias até a borda. — Uma noite não vai matar ninguém. O Majin não vai a lugar nenhum. Beba comigo. Celebre a nossa glória!
— Tira as suas mãos imundas de perto de mim, seu idiota — retrucou Lyra, mas aceitou a caneca, seu olhar um aviso claro.
Sentindo o desafio, Javier deslizou a mão até os ombros da garota, mas foi instantaneamente respondido com um chute preciso de Lyra, que jogou o atirador em sua cadeira como um saco de batatas, para o deleite e gargalhadas dos outros caçadores, que brindaram à "Leoa".
Merry, por sua vez, já esquecera completamente a batalha. Travava agora uma discussão acalorada com a garçonete do balcão: — Pode não parecer, jovenzinha, mas se eu lutasse a sério, poderia até mesmo destruir montanhas e esmagar o antigo lobo com um único soco. Me diga, se eu conseguir, você se casaria comigo?
— Vou ter de rejeitar a sua proposta… — a garota respondeu, dando uma bebida a ele e tentando se afastar do velho senil.
— Mais um bar, mais uma rejeição... — murmurou ele para si mesmo. — Suponho que seja esse o significado da vida.
Enquanto isso, Cinna, a pequena coelha, estava sendo abraçada por um caçador bêbado e enorme que parecia um urso, tentando explicar pacientemente ao homem choroso que não, ela não era sua filha perdida, mas sim uma adulta. — Eu já disse para parar com isso! Eu não sou sua filha e nem sou uma criança! — Ah, Emily! Finalmente você voltou! Sua mãe perguntava de você todos os dias. — Será que pode me escutar?!
Lyra suspirou, ignorando o caos reinante. Sua atenção se voltou para Ethan, que agora simplesmente observava a celebração com um olhar distante, um pequeno sorriso nos lábios, como se estivesse feliz por ver os outros felizes. Ela sentou em sua mesa, perto da janela que dava para a noite estrelada, bebia enquanto sua mente ficava turva. Do lado de fora do bar, ouvia o som de uma carroça do ferreiro da vila, carregada de correntes de metal. Sob a luz da lua, seu olhar foi pesando, até que finalmente começou a adormecer.
E assim em seu sono uma memória veio sem ser convidada, como sempre fazia em momentos de calma. Lembrava-se de seu próprio reino, um lugar de palácios de cristal e luz etérea. Para os outros, um paraíso. Para ela, uma gaiola dourada. Mesmo sendo uma meio-elfa, sua incapacidade de dominar os feitiços complexos e delicados de sua gente era uma marca de vergonha. "Seu sangue humano prevalece sobre o de elfo", sussurravam, as palavras cortando como navalhas. "Uma deficiente." A pena nos olhos de seus parentes era pior que o escárnio. Cansada de ser uma aberração graciosa, ela fugiu.
A vida de caçadora era dura, suja e perigosa. Ela podia fazer o que quisesse sem se preocupar em como era vista; as pessoas nunca falavam sobre o fato de ela ser incapaz de usar magia, só elogiavam sua facilidade em conseguir realizar missões. Mas, depois de um tempo, ao subir seu nível como caçadora, as missões às quais era atribuída foram ficando cada vez mais difíceis, chegando ao ponto em que não podiam ser realizadas sozinha. Foi quando conheceu Valerius, um elfo negro carismático e promissor, que a convidou para sua equipe. Pela primeira vez em anos, ela sentiu que pertencia a algum lugar. Realizaram missões, partilharam o perigo e a recompensa. Ela confiou neles. E foi traída da forma mais cruel.
A memória era uma ferida que ainda ardia. A emboscada perto da fronteira, as correntes de ferro frio em seus pulsos, o olhar vazio e calculista de Valerius enquanto a vendia a comerciantes de escravos do Terminal Cinza. "Elfos vendem bem. Meio-elfos, quase tão bem", foi tudo o que ele disse, antes de lhe virar as costas. As semanas seguintes foram um borrão de desespero, acorrentada na escuridão de uma carroça, fraca de fome e sede, à espera de ser leiloada como um animal.
Foi então que ele apareceu. A porta de sua cela improvisada não foi aberta: foi desintegrada. A luz da manhã inundou a escuridão como uma chama de liberdade, cegando-a. E a fonte dessa luz era Ethan. Ele não a viu como mercadoria, nem como uma donzela em apuros. Seu olhar passou por ela e se focou nas correntes. Ele apenas viu alguém que precisava ser libertado. Naquele dia, enquanto ele cortava suas correntes antes mesmo de lidar com os guardas restantes, foi como se alguém tivesse aberto as cortinas de um quarto escuro, deixando a luz do sol entrar pela primeira vez em muito tempo.
Ela não confiou nos outros cavaleiros que escoltaram os escravos libertos. Em vez disso, seguiu Ethan à distância, uma sombra silenciosa em seu caminho de volta a Alexandria. Ele acabou por notá-la, claro. Era impossível não notar. Mas em vez de a confrontar ou afastar, numa noite, ele simplesmente parou junto à sua fogueira, apontou para um tronco do outro lado e esperou que ela se aproximasse.
— Se vai me seguir — disse ele com aquele seu jeito sério e direto, sem rodeios —, pelo menos caminhe ao meu lado. Não como uma perseguidora, mas como uma companheira. — Ele falava com um sorriso sincero e honesto.
Ela concordou, dizendo a si mesma que seria apenas até chegarem ao próximo vilarejo. Aquilo, porém, tinha sido há quase dois anos.
Um solavanco violento a trouxe de volta ao presente. Sua cabeça latejava com uma dor lancinante. A luz do sol da manhã invadia um quarto que cheirava a madeira e lavanda, e definitivamente não era o chão da guilda. Ela estava numa cama macia e, ao se virar, seu coração parou por um segundo e depois disparou. Ethan dormia na mesma cama, a poucos centímetros de distância, o rosto em paz, despido de sua habitual seriedade.
Um grito agudo e estrangulado escapou de seus lábios, seguido por um som de impacto surdo e um gemido de dor.
Ethan acordou no chão, a cabeça doendo de duas maneiras diferentes, olhando para uma Lyra furiosa e incrivelmente corada, sentada na cama e puxando os lençóis até o queixo. — O-o que... o que aconteceu?
A porta do quarto se abriu com um ranger e a cabeça de Javier espreitou para dentro, um sorriso malicioso estampado no rosto. — Bom dia, pombinhos! Vejo que a Leoa já acordou com as garras de fora. Desculpa, Ethan, vocês os dois desmaiaram de tanto beber ontem à noite. Parecia um desperdício pagar por dois quartos, então... de nada. — Ele piscou o olho. — Parece que perdeste a tua oportunidade de atacá-lo enquanto dormia, Lyra.
O único som que se seguiu foi o de uma almofada voando em alta velocidade e colidindo com a cara sorridente de Javier, fazendo-o desaparecer do vão da porta.
Parte 3
A estrada de terra batida que saía de Pinewood era ladeada por árvores altas, cujas folhas cinzentas farfalhavam com a brisa da manhã. O cheiro de terra úmida e de madeira enchia o ar. Após algumas hours de caminhada, a euforia da noite anterior já se tinha dissipado, substituída pelo ritmo familiar e monótono da jornada.
— Eu ainda não acredito que tive de passar a noite inteira correndo atrás de você, Merry! — A voz de Cinna era aguda de frustração, ecoando pela floresta silenciosa. Suas longas orelhas de coelho, normalmente eretas e atentas, estavam caídas para trás em sinal de pura irritação. — Dormir num barco enquanto ele flutuava rio abaixo? Sério?
— Ah, minha pequena Cinna, não seja tão dura — respondeu o velho mago, coçando sua longa barba branca com uma expressão de profunda confusão. — Eu ouvi a voz da minha querida quinta esposa, Merida. Ela estava me chamando para seus aposentos flutuantes. Tinha a certeza de que era ela. — Ele parou e franziu a testa. — Espere... o nome da minha quinta esposa era Lola. Merida era a sexta... não, espere... pensando bem, Merida era o nome do meu peixe dourado. Um excelente ouvinte, a propósito. Nunca me interrompia.
— Cale a boca, Merry! Todo mundo já ouviu as histórias sobre essas suas esposas! — Cinna gritava, furiosa, não aguentando mais aquilo. — Se você não fosse tão forte, eu já tinha pedido para o Ethan te dispensar e tinha te colocado em um asilo para velhos!
— Independentemente de quão absurdamente forte ele tenha sido no passado, um mago que esquece até mesmo de seus feitiços é só um peso morto — Javier murmurava, enquanto caminhava, ignorando o mago. — Eu tinha esquecido de comentar, Ethan, mas que bom que ficamos! A minha noite foi divina! — Ele falava, andando de costas para olhar o amigo. — Uma hora temos de voltar lá, líder, ou então as minhas amigas do bordel sentirão a minha falta. — Ele continuou, confiante: — Você nem acreditaria na seleção que eles tinham! Como eu estava meio embriagado, sabia que só estava com forças para dar conta de três, por isso escolhi as melhores: uma ruiva, uma loira e uma morena…
Ele continuava falando quando, de repente, ouviu um barulho.
ZING!
O som agudo e arrastado de metal sendo afiado fez Javier se calar de imediato. Lyra caminhava um pouco à frente do grupo, passando metodicamente uma pedra de amolar ao longo das garras de sua manopla. O movimento era lento, deliberado, e cada passagem da pedra parecia carregar um brilho assassino em seus olhos.
Javier engoliu em seco, seu sorriso murchando. — A-a propósito, Ethan — disse ele, mudando de assunto com a sutileza de um gigante —, estes Majins... são mesmo reais? Sempre achei que eram contos de fadas para assustar crianças que não comem os vegetais.
Merry, subitamente sério, estremeceu de forma teatral. — Oh, eles são bem reais. Lembro-me de um duelo que tive com um, há muitos anos. Um pavor primordial me subiu pelas pernas, gelando-me os ossos. Eu sabia, com uma certeza absoluta, que aquele era o dia em que ia morrer. — Ele fez uma pausa dramática, os olhos se perdendo na distância. — Ah, espere. Estava confundindo. Nesse dia, na verdade, eu estava vendo a minha segunda esposa, que estava zangada por eu não ter secado a louça.
Lyra bufou, um som de puro desdém. — Eu também nunca pensei que fossem reais. Apenas histórias exageradas. Mas, se forem mesmo reais, depois desta missão, o pessoal da Távola Redonda finalmente terá de nos levar mais a sério.
— Gawain nunca vai respeitar ninguém que não seja seu próprio reflexo no espelho — cuspiu Javier. — Especialmente agora que a recém-reencarnada Mordred morreu e ele voltou a ser o líder interino. Aquele tipo é um porco arrogante. Tudo o que eu espero é que isto dê mais crédito ao Ethan e que ele suba no ranking. Quanto mais famoso ele fica, mais mulheres bonitas aparecem nos bares para nos pagar bebidas!
Ethan, que tinha estado caminhando em silêncio na liderança, observando o caminho à frente, finalmente falou, e sua voz calma cortou a conversa: — Eu também quero isso, mas minha estrada para subir será árdua. Ainda não consigo me ver ultrapassando o quinto lugar. O poder dele é... absoluto.
— Contanto que não estejamos falando dos três primeiros, acho que você tem uma chance — disse Cinna, sua irritação anterior esquecida, agora totalmente focada na conversa. — Mas os três primeiros... são simplesmente monstros. Especialmente o Zero, o número um. Aquele monstro é tão forte que até Reis Demônios perderam em duelos para ele.
— Você já se encontrou com o Zero, não é, Ethan? — perguntou Javier.
Ethan assentiu, seu olhar se tornando distante, como se estivesse vendo algo que mais ninguém conseguia. — Duas vezes. Durante as reuniões anuais dos dez melhores. Ele... tem uma aura diferente. Não é como a dos membros da Távola. Não é uma aura de poder, ou de fúria, ou de orgulho. É... vazia. Silenciosa. Como o vácuo entre as estrelas. Estar perto dele é sentir que sua própria existência não passa de poeira.
Um silêncio pesado caiu sobre o grupo, o peso das palavras de Ethan pairando no ar como uma mortalha. Foi então que notaram. Os pássaros se calaram. A brisa morrera. O ar ficara mais frio, com um arrepio que não vinha do tempo. A luz do sol parecia fraca, filtrada por algo que não eram nuvens. Uma neblina espessa e de um branco anormal começou a surgir do chão e a descer das árvores, enrolando-se em torno de seus tornozelos como serpentes fantasmagóricas. Em segundos, a visibilidade foi reduzida a poucos metros.
— O que é isto? — sussurrou Cinna, as orelhas se contorcendo, tentando captar um som que não fosse o de seu próprio coração batendo descontroladamente no peito.
— Isto não é uma neblina normal — disse Ethan, a mão pousando instintivamente no cabo de sua espada, o corpo ficando tenso. — Fiquem juntos. Formação de diamante. Eu na frente; Javier e Lyra nos flancos; Cinna e Merry no centro. E mantenham-se alerta.
À sua frente, através do véu branco e rodopiante, as silhuetas fantasmagóricas de edifícios altos e tortuosos começaram a tomar forma, como lápides num cemitério esquecido. Eles tinham chegado ao seu próximo destino, um lugar que não estava em nenhum mapa, uma lenda sussurrada entre os caçadores mais velhos: a Cidade do Nevoeiro.
O grupo avançou com uma cautela que beirava a reverência, os sons de seus passos abafados pela neblina densa e úmida. A Cidade do Nevoeiro se revelou um lugar de uma melancolia industrial assombrosa. Estavam numa espécie de vale ou cratera, com um enorme buraco irregular no teto de pedra muito acima, por onde a luz cinzenta e a neblina entravam em cascata. A arquitetura era uma fusão bizarra do vitoriano, com suas varandas de ferro forjado e janelas altas, e algo mais moderno e brutalista. Edifícios de tijolo escuro e manchado eram interligados por uma teia de enormes tubos de metal que zumbiam и gemiam, libertando nuvens de vapor que se misturavam com o nevoeiro, tornando o ar ainda mais espesso e com um gosto metálico.
Uma barreira mágica invisível parecia cobrir a cidade, criando uma noite perpétua, iluminada apenas pelo brilho fraco e doentio de lampiões a gás e pela luminescência fantasmagórica do vapor.
Não havia uma única alma à vista. As ruas de paralelepípedos estavam desertas, mas um cheiro adocicado e enjoativo pairava no ar, um odor metálico que se agarrava à parte de trás da garganta. O cheiro de sangue velho.
— Este lugar... está morto — sussurrou Lyra, a mão apertando o cabo de sua manopla com tanta força que os nós dos dedos ficaram brancos.
— Morto, não — corrigiu Merry, os olhos brilhando com uma curiosidade acadêmica que contrastava com o ambiente. — Adormecido. A magia aqui é antiga, poderosa... e faminta. É como se a própria cidade estivesse digerindo algo.
De repente, uma tontura avassaladora atingiu Ethan. Começou como uma dor de cabeça surda, mas rapidamente floresceu numa vertigem que fez o mundo girar. A cidade de tubos e vapor se dissolveu num borrão de cores doentias. As vozes de seus companheiros se tornaram ecos distantes, e ele mergulhou na escuridão.
Ele era uma criança outra vez, correndo descalço pelos campos do quintal de seus pais. O sol era quente, o cheiro de terra e feno era reconfortante. "Vou ser um herói!", gritava ele para as ovelhas, brandindo um pau como se fosse a mais nobre das espadas. A risada dos outros rapazes da aldeia era cruel e cortante. "Um filho de lavrador? Um herói? Você nunca será mais do que um camponês sujo." As palavras feriam, mas o sonho era mais forte.
Anos de treino solitário, de empurrar seus limites até o ponto de exaustão, com músculos ardendo e pulmões queimando. Ninguém acreditava nele. Ele era apenas o rapaz pobre com delírios de grandeza. Até o dia em que a luz o chamou. Na antiga sala da Távola Redonda, a mesa de carvalho maciço, que estivera dormente por décadas, brilhou. No assento vazio, sob o nome "Gareth" gravado na madeira antiga, seu próprio nome, "Ethan", ardeu com uma luz dourada e crepitante.
Gawain, Tristan e Percival o encontraram no meio de um treino. A desconfiança em seus olhos era evidente, mas a magia da Távola era absoluta. Ele tinha sido escolhido. Tornou-se um cavaleiro, respeitado por sua habilidade inegável. Mas nos olhos de Gawain, ele ainda via a sombra da dúvida. Não era desprezo, era... pena.
"Sonhos heroicos são para crianças, Ethan", disse-lhe Gawain uma vez, depois de um treino particularmente brutal, seu olhar perdido em memórias que Ethan não conseguia decifrar. "O mundo tem uma forma cruel de os quebrar contra a realidade. Quanto mais alto o sonho, mais dolorosa a queda."
As palavras dos rapazes da aldeia ecoaram em sua mente. "Um camponês sujo." Talvez Gawain tivesse razão. Talvez ele fosse apenas uma criança ingênua brincando com uma espada grande demais para si...
"Não!", uma voz gritou em sua mente, sua própria voz, mas mais forte, mais determinada, forjada no fogo. "Eu não sou fraco assim!"
Ethan acordou com um sobressalto, o ar queimando-lhe os pulmões como se estivesse respirando pó de pedra. Estava num corredor escuro e úmido, o som rítmico de picaretas batendo na rocha ecoando à sua volta. Olhou para suas mãos. Estavam calejadas, sujas de terra e sangue seco. Ao seu lado, outros homens, com os rostos vazios e os olhos sem brilho, trabalhavam na construção de um túnel, movendo-se como autômatos. E na cabeça de cada um deles, incluindo a sua, uma pequena e pálida flor branca, com pétalas translúcidas, tinha brotado.
Com um grito de repulsa, ele sentiu seu éter explodir de dentro para fora. Sua espada, ainda na bainha, brilhou com uma luz intensa. Um arco de fogo puro cortou o ar, e a flor em sua cabeça foi incinerada, transformando-se em cinzas. A névoa mental que o aprisionava se quebrou com a violência de um vidro se estilhaçando. Meus amigos... onde estão eles?
Uma onda de pânico gelado ameaçou dominá-lo, mas ele a esmagou com pura força de vontade. Preocupado, ele sentiu seu éter fluir e criou à sua volta uma barreira protetora. Em seguida, começou a se mover furtivamente pelos túneis, decidido a desvendar o mistério daquela cidade sombria.
Parte 4
Ao longo dos anos, as lendas sobre a Cidade do Nevoeiro eram tidas como meros contos de terror, ecos sombrios da era de Alexandria. A existência de uma enorme cratera na Grande Floresta Cinzenta era de conhecimento público, o marco indelével da tentativa fracassada de Lancelot de ascender ao trono demoníaco. Contudo, a ideia de que uma cidade inteira pudesse existir ali, aninhada naquela cicatriz da terra, nunca pareceu plausível. Era uma fantasia. Mas talvez, no fundo, um medo sussurrado, uma suspeita coletiva, tenha sido a verdadeira semente para as lendas da cidade fantasma escondida no véu branco.
A noite perpétua da cidade começava a pulsar com vida. Portas rangiam ao se abrir, e figuras pálidas emergiam das casas de tijolo escuro, movendo-se sob o brilho doentio dos lampiões a gás.
— Boa noite, Senhorita Anna. — Boa noite, senhor Konrad.
As saudações ecoavam pelas ruas de paralelepípedos, estranhamente formais. Do alto de um telhado de ardósia, agachado entre gárgulas de pedra que choravam ferrugem, Javier observava a cena com olhos semicerrados.
— Entendi... então são vampiros — ele sussurrou para o vento metálico. — Droga, cometemos um erro. Entramos de forma muito despreocupada. Só percebi o perigo quando vi Ethan caindo primeiro.
Após testemunhar seus amigos sucumbirem um a um, os instintos de Javier, afiados por uma vida de perigos, gritaram. Num ato reflexo, ele ergueu uma barreira de éter em torno de sua mente. A proteção o salvou do controle mental, mas não da onda de choque psíquico que o arrastou para a inconsciência. Ao acordar, estava sozinho. Suas habilidades de rastreador logo notaram a ausência de marcas de arrasto. Eles não foram levados à força; eles se levantaram e caminharam por conta própria.
— Vampiros, uma cidade que não deveria existir e pessoas sendo controladas como marionetes. Tenho um péssimo pressentimento sobre isso.
— Seus instintos são realmente aguçados... para um humano.
A voz, sedosa e fria como a pedra de uma cripta, materializou-se das sombras logo atrás dele. O tempo pareceu desacelerar. Javier não hesitou. Num movimento explosivo, ele se lançou para a frente, girando no ar e disparando sua pistola, La Dama. A bala silenciosa cortou a névoa na direção da figura enquanto ele aterrissava no telhado vizinho, já em plena corrida. A perseguição explodiu pelas ruas silenciosas.
Javier corria não em linha reta, mas em zigue-zague, usando a arquitetura bizarra da cidade a seu favor. Ele saltou sobre um vão escuro entre dois prédios, aterrissou com um rolamento e deslizou por baixo de um enorme tubo de metal que pulsava com um calor doentio, o zumbido vibrando em seus ossos.
— Você não pode fugir para sempre, ratinho! — a voz de seu perseguidor ecoou, mais próxima do que deveria.
Um chicote carmesim, feito de sangue solidificado, estalou no ar, errando o ombro de Javier por centímetros e arrancando lascas de um cano de vapor. O gás sibilou, criando uma cortina branca momentânea. Javier aproveitou a cobertura, mudando de direção e mergulhando em um beco estreito e escuro.
— Se vai me matar, podia ao menos se apresentar! — gritou Javier, sua voz ecoando entre as paredes de tijolo, enquanto suas botas batiam nas poças de água oleosa.
— Que indelicadeza a minha! — a voz respondeu, agora parecendo vir de cima. — Meu nome é Julian. É um prazer caçar você.
Javier olhou para cima e viu a figura esguia correndo pelas paredes com uma agilidade sobrenatural, suas garras arranhando o tijolo. Julian saltou, aterrissando à frente de Javier, bloqueando a saída do beco. Suas costas foram cortadas no processo, um golpe rápido e preciso.
— Merda! — Javier praguejou, cambaleando para a frente, o sangue quente escorrendo por suas costas. — Minha sorte é um lixo.
— Incrível, humano. Mesmo num ataque surpresa, você instintivamente se projetou para a frente. Se não o fizesse, minhas garras teriam aberto sua barriga — disse Julian, lambendo o sangue de suas garras com um sorriso satisfeito. Seus olhos vermelhos brilhavam na penumbra.
— Uau, estou impressionado — ofegou Javier, o suor frio escorrendo por sua testa enquanto ele recuava lentamente, mantendo os olhos fixos no vampiro. — Pela sua gentileza, que tal me dizer o que está acontecendo aqui? O que fizeram com meus amigos?
— Seus amigos? Ah, eles são os convidados de honra. Nós não impedimos a entrada de ninguém, sabia? — Julian avançou, saboreando o medo que emanava de Javier. — Todos que entram neste domínio são recebidos pelo Pólen Fantasma, a habilidade da nossa Rainha. Uma flor de cristal gigante que pulsa no coração da cidade, espalhando seu pólen pelo nevoeiro. Ele se agarra a qualquer um que o respire, transformando-os em nossos dóceis servos. Mas este lugar não é apenas um ninho, é um laboratório. E a Rainha é uma cientista muito... seletiva.
Julian gesticulava com um deleite teatral. — De vez em quando, aparece uma exceção. Alguém como você. Um rato selvagem, acostumado com armadilhas e traições, que sente o perigo no ar e se protege. Eu sou o Cavaleiro encarregado de lidar com essas... exceções.
— Então eu sou só um trabalho para você? — Javier continuou a recuar, seu pé se arrastando para trás, roçando algo no chão.
— Exatamente! Então, não me culpe. Vamos acabar logo com isso.
— Conta outra, seu merda — cuspiu Javier. — Eu vejo a felicidade estampada na sua cara de demônio.
Com um sorriso largo e predatório, Julian disparou. A distância entre eles desapareceu em um piscar de olhos. Javier tentou levantar a arma, sabendo que era inútil. O vampiro desviou da pistola com um tapa, cravou as garras no ombro ferido de Javier e inclinou a cabeça, as presas se alongando.
— Hora de comer.
— Então aproveita o gosto, seu desgraçado.
SNAP!
De repente, o fio quase invisível em que o pé de Javier estava posicionado arrebentou. Com um som de madeira se partindo, dezenas de estacas de madeira afiadas, escondidas em caixotes e fendas nas paredes, dispararam na direção dos dois. Pego de surpresa, Julian urrou e largou Javier instintivamente. O caçador se jogou para trás, sentindo a dor lancinante de algumas estacas perfurando suas costas e perna.
O vampiro estava crivado de estacas. Ele tossiu, cuspindo um sangue escuro e espesso.
— Seu... merda! — ele sibilou, a voz rouca de dor. — Você usou... verbena?
Javier, caído no chão e sangrando profusamente, pegou La Dama, mirou na cabeça do vampiro e atirou. Em uma fração de segundo, o chicote de sangue de Julian se formou e defletiu a bala com um zunido metálico.
— Que bom que funcionou — disse Javier, um sorriso ensanguentado no rosto. — Aquele velhinho do mercado não me enganou.
O chicote estalou novamente, desta vez envolvendo a mão de Javier, esmagando os ossos e fazendo-o largar a arma. A ponta do chicote atravessou seu outro ombro, prendendo-o ao chão.
— ME RESPONDA, MALDITO! — rugiu Julian, furioso. — Quanto disso você planejou?
— Quase tudo — Javier engasgou, o sangue borbulhando em seus lábios. — Fingir fugir para te atrair para a minha armadilha. Fingir medo para conseguir informações... mas eu não sabia que você ia querer me morder. Isso estragou o meu tempo de reação.
Os olhos de Julian se arregalaram em compreensão e fúria. — Você... você fingiu a fuga inteira... a corrida pelos telhados... você se deixou ser ferido... tudo para me trazer até aqui? Você... FINGIU NÃO SABER QUE ÉRAMOS VAMPIROS ATÉ EU APARECER?!
— Calminha, princesa — zombou Javier, sua visão começando a embaçar. — Não me dê tanto crédito. Eu realmente não sabia que eram vampiros.
— Espera... então...?
— Eu coloquei bem mais do que só verbena nessas estacas — ele tossiu, mais sangue escorrendo. — Venenos, água benta improvisada, prata moída... infelizmente, parece que só a verbena teve um efeito real em você.
Julian olhou para as estacas em seu corpo, depois para o caçador moribundo. Um riso rouco e terrível escapou de sua garganta. — Seu idiota... ha... hahaha... Então você também vai morrer! O veneno já está no seu sangue, hahaha! Você vai primeiro!
— É o que parece, né? — a voz de Javier era um sussurro. — Mas sabe... tenho a sensação de que não vai ser bem assim...
— Ah, já estou vendo. Você mal consegue me enxergar, não é? — Julian sorriu, um sorriso vitorioso em meio à agonia. — Sua barreira de éter vai cair. E antes de morrer, o pólen vai te pegar. Você vai alucinar com seu maior desespero. Vai ser divertido de assistir. VAMOS, HUMANO MALDITO! MOSTRE-ME SEU DESESPERO!
Enquanto Julian definhava, rindo e cuspindo sangue, acreditando que ao menos veria a morte daquele que o condenou, Javier já não ouvia mais nada. As forças o abandonavam, o frio o dominava. E no limiar da escuridão, uma memória antiga, um juramento feito sob estrelas há muito esquecidas, veio à tona.
Parte 5
O primeiro a falar tinha a voz de seu pai, um sussurro áspero como o arrastar de uma lâmina em uma pedra de amolar.
"Nunca confie em ninguém, Javier. Neste mundo podre, a única regra é usar ou ser usado."
A memória o atingiu não como um eco, mas como uma onda que o arrancou do beco fétido e o jogou em um passado dourado. Ele era um menino outra vez, o cabelo chicoteando em seu rosto enquanto a carruagem voava por uma estrada de terra, o riso de seu pai mais alto que o trotar dos cavalos. Sua mãe, com os cabelos como uma cascata de noite, cantava uma canção sobre liberdade e tesouros. Eles eram os "Ladrões Fantasma", e o mundo era o seu playground particular.
— O que vamos 'pegar' hoje, querido? — perguntava sua mãe, os olhos brilhando com malícia.
— O que o nosso coração deseja! — respondia seu pai, beijando-a. — E de sobra tudo mais que couber no bolso.
Naquela noite, ao redor de uma fogueira sob um céu cravejado de estrelas, seu pai o puxou para perto. O cheiro de pinho e fumaça era o cheiro de casa. — Lembre-se, filho — disse ele, a voz séria pela primeira vez. — Nós três somos tudo o que importa. Lá fora... é uma selva. A única pessoa em quem você pode confiar de verdade é você mesmo.
E como se fosse um prenúncio do futuro, não demorou para a selva chegar até eles. Não com presas e garras, mas сom o brilho de armaduras e o som de botas marchando. E na frente de todos, estava ela. Sua mãe. O sorriso dela, que antes era seu sol, agora era uma máscara de gelo. Ela o beijou na testa, um beijo frio que não alcançou seus olhos. — Seja um bom menino, Javier.
Ele viu a confusão e a traição se transformarem em fúria nos olhos do homem que ele idolatrava. E, por fim, viu sua mãe virar as costas, caminhando em direção a outro homem, um nobre rico, sem olhar para trás uma única vez. A trindade fora quebrada. A lição de seu pai não era mais uma filosofia; era uma profecia cumprida.
Os dias no orfanato eram cinzentos. As paredes eram cinzentas, a comida era cinzenta, as faces das outras crianças eram cinzentas. O riso morreu dentro dele. Até que, em uma noite de tempestade, uma figura encapuzada o arrancou de sua cama. Era seu pai, mas era também um estranho. Mais magro, mais duro, com olhos que tinham visto o fundo do poço e não encontraram nada além de escuridão.
— Eu te avisei, garoto — ele rosnou, enquanto fugiam pela noite. — Eu te avisei. Ela nos usou. É assim que o mundo funciona. Não há honra. Não há lealdade. Apenas a mão que apunhala e as costas que recebem a facada.
Javier cresceu sob essa sombra, aprendendo a roubar não mais com a alegria de uma aventura, mas com a precisão fria de uma sobrevivência. Ele se tornou um nome sussurrado nas vielas de Londinum, um ladrão habilidoso que dançava nos telhados, perseguindo o fantasma da adrenalina de sua infância, mas cada tesouro que roubava parecia mais vazio que o anterior.
Então, ele a conheceu. E o mundo cinzento explodiu em cores.
O nome dela era Elara, e ela era uma labareda em um mundo de cinzas. Ele a viu pela primeira vez em uma taverna, colocando um mercador arrogante em seu devido lugar com nada mais do que um olhar cortante e palavras afiadas. Ele, o homem de fala mansa que podia encantar qualquer mulher, ficou sem palavras.
— O que foi, Galanteador? — ela disse, virando-se para ele, um sorriso desafiador nos lábios. — O gato comeu sua língua, ou você só sabe falar quando ninguém está olhando?
Ele foi conquistado. Não por sua beleza, que era estonteante, mas por seu espírito. Pela primeira vez em anos, ele quis mais do que apenas uma noite, mais do que um golpe. Ele a queria. Os dias se transformaram em meses. Eles discutiam, riam, amavam. Em seus braços, sob o teto de um pequeno apartamento que cheirava a chuva e a ela, ele encontrou um silêncio que não era vazio, mas sim pacífico.
Mas os fantasmas não o deixavam.
— Você me parece triste às vezes — ela disse uma noite, traçando os contornos de seu rosto. — O que você esconde, Javier?
Ele queria contar. Oh, como ele queria. Mas a voz de seu pai era um veneno em suas veias. Confiar é ser usado. Então ele mentiu. — Sou um caçador. É um trabalho perigoso. Vejo coisas ruins. A mentira era uma muralha que ele construiu ao redor de seu coração, para protegê-la, ele dizia a si mesmo. Mas, na verdade, era para proteger a si mesmo da dor que ele tinha como certa.
A queda foi tão rápida quanto brutal. Um roubo que deu errado. Um nobre, um grito, uma lâmina em sua mão. Ele estava prestes a silenciar o homem quando a porta se abriu e um menino, não mais velho do que ele era quando sua mãe o deixou, apareceu. Os mesmos olhos grandes e assustados. Javier hesitou. E nessa hesitação, sua vida desmoronou.
Ele fugiu, deixando o nobre vivo. Dias depois, seu rosto estava em todos os postes. "Procurado". O pânico o dominou. Ele fugiu dela também, sem uma palavra, convencendo-se de que era para o bem dela.
Meses se passaram. Meses de bares imundos, de noites sem dormir, do gosto amargo do arrependimento. Foi quando a amiga dela o encontrou, o rosto contorcido de fúria e dor.
— Seu covarde! — ela gritou, esbofeteando-o com tanta força que sua cabeça estalou. — Ela te esperou! Todas as noites! E você a abandonou! Você abandonou sua mulher grávida, seu desgraçado!
Grávida. A palavra o quebrou.
Ele correu. Correu como se sua vida dependesse disso, porque dependia. Mas, sem que ele soubesse, sua casa estava sendo vigiada por Caçadores. Quando ele se aproximou, eles o cercaram. Elara ouviu a comoção e saiu correndo. — Javier!
O caos explodiu. Ela tentou alcançá-lo. Um guarda a empurrou. Uma lâmina de um caçador, destinada a ele, encontrou o alvo errado. O tempo parou. Ele a pegou antes que ela caísse, o vestido dela rapidamente se manchando de um vermelho vivo.
— Eu sabia… — ela sussurrou, a mão dela fraca em seu rosto, um sorriso triste em seus lábios ensanguentados. — Eu sempre soube... que você voltaria, meu teimoso... meu galanteador bobo...
Oito anos. Oito anos em uma cela, onde a única cor era o vermelho do sangue dela em suas pálpebras fechadas. Oito anos com o eco das palavras dela e o silêncio que se seguiu.
Quando escapou, ele era um homem oco, mas decidido. Havia algo que ele tinha de fazer, alguém que tinha de encontrar. E ele a encontrou. Sua filha. Uma menina com os olhos da mãe, rindo em um parquinho. Adotada. Feliz.
Aquilo foi a única coisa para a qual ele não havia se preparado; assim, sua coragem de se aproximar e falar com ela desapareceu no momento em que viu seu reflexo e se lembrou do pai que o buscou após sair da prisão.
A partir dali, ele se tornou um fantasma na vida dela, observando de longe, o coração uma ferida aberta. Teria ele o direito de arrancar aquela felicidade? De amaldiçoá-la com seu nome, com seu sangue?
Ele decidiu partir. Mas não sem uma despedida. Uma carta. Era tudo o que ele podia dar.
No dia em que foi entregar, os guardas o cercaram novamente. Ele não resistiu. Estava cansado de lutar. Foi então que Ethan apareceu. Ele não viu um criminoso. Ele viu um homem quebrado segurando uma carta como se fosse a última coisa boa no mundo. Ele viu uma menina olhando para o homem não com medo, mas com uma tristeza confusa.
— Esperem — disse Ethan, sua voz calma, mas inquestionável. Ele se aproximou de Javier. — Essa carta... é para ela?
A maldição de seus pais gritou. Não confie! Ele vai usá-la contra você! Mas o que a desconfiança lhe dera? Uma amante morta e uma filha que nunca o conheceria. Ele olhou nos olhos sérios de Ethan. E pela primeira vez em sua vida, ele fez uma escolha diferente. Ele entregou a carta.
Anos depois, Ethan, o Cavaleiro de Platina, cumpriu uma promessa que nunca fez. Ele o tirou da prisão.
— Lute ao meu lado, Javier — disse ele, o sorriso desajeitado e sincero que Javier passara a conhecer. — Sua ficha nunca será limpa, mas seu nome pode ser honrado. Um dia, você poderá encontrar sua filha e dizer a ela quem você é, sem vergonha.
Naquele momento, Javier entendeu: seus pais até que tinham razão, o mundo era um lugar cruel, sim. Mas não era apenas isso, pois havia pessoas como Ethan e Elara lá. Por isso, às vezes, estava tudo bem confiar.
De repente, Javier ouviu o som de algo cortando e um calor, uma chama, estava o queimando. Ele abriu os olhos e viu que havia parado de sonhar com o passado e Ethan estava à sua frente.
— Ei, que ideia é essa de ir dormir? Eu não vi você pedindo permissão para o líder, então tira esse cavalinho da chuva — Ethan falava isso com calma enquanto o curava, mas com um rosto desesperado.
Javier então começou a sorrir, virando seus olhos para Julian, que perdera a consciência e começava a se desmanchar.
— Era disso que eu estava falando… eu sabia que meu líder não me deixaria tirar uma folga — ele falava baixo, com a pouca força que tinha, sorrindo.
Parte 6
A primeira sensação foi a dor, uma pontada aguda e profunda em suas costas e ombro. A segunda foi o frio do chão de pedra. A terceira, a percepção lenta e maravilhosa do ar enchendo seus pulmões. Javier abriu os olhos. O teto do beco era uma fenda escura contra o céu noturno artificial da cidade. Ele estava vivo. Uma risada rouca e dolorida escapou de seus lábios.
— Eu realmente achei que iria morrer... hahaha... — ele falou para ninguém, a voz um arranhão em sua garganta seca.
Uma sombra se moveu ao seu lado. Ethan estava ajoelhado ali, a mão brilhando com uma luz dourada e quente sobre o peito de Javier. O fluxo constante de chamas curativas era a única razão pela qual o sangue de Javier ainda estava dentro de seu corpo.
— Você quase conseguiu — disse Ethan, a voz baixa e séria, mas com um traço inegável de alívio. — Descanse. Terminei de estabilizar os ferimentos maiores.
Horas se passaram, marcadas não por um relógio, mas pelo ritmo lento da respiração de Javier e pelo zumbido constante dos enormes tubos que serpenteavam pela cidade. Ethan o ajudou a se levantar, e juntos, eles mergulharam de volta nas entranhas daquela metrópole doentia. Moviam-se como fantasmas pelas ruas de paralelepípedos, o som de suas botas abafado pelo vapor. O ar tinha um gosto metálico, de sangue e ferrugem.
Enquanto se esgueiravam pelas sombras de edifícios de tijolos escuros, cujas janelas pareciam olhos vazios, Javier contou tudo. Sobre Julian, a Rainha, a flor de cristal, o Pólen Fantasma e o mais importante: que a cidade era um laboratório.
— ...então a névoa é a armadilha. Ela não esconde a cidade; ela é a cidade — concluiu Javier, pressionando a mão contra o ombro enfaixado enquanto se escondiam atrás de uma caldeira abandonada.
Ethan assentiu, seu olhar varrendo a arquitetura desolada. Ele observava as figuras pálidas que se moviam com uma lentidão proposital, algumas empurrando carrinhos de mão cheios de rochas, outras simplesmente paradas, como estátuas à espera de ordens. — Agora faz sentido. A fraqueza que senti, as alucinações... Não era uma magia qualquer. Era um parasita. E eles não estão apenas nos usando como gado. Estão nos selecionando.
— O que quer dizer? — perguntou Javier.
— Os trabalhadores que vi nas minas, como eu, eram fisicamente fortes. Mas os outros... — O olhar de Ethan se tornou sombrio. — Se eu fosse apostar, os mais jovens e aqueles com alta concentração de mana, como Lyra, Cinna e o velho... eles são considerados "espécimes" de maior valor. Não são para trabalho escravo. São para a pesquisa.
Após uma caminhada que pareceu durar uma eternidade por aquele labirinto industrial, eles encontraram. Um prédio mais imponente que os outros, com uma chaminé que cuspia uma fumaça mais espessa e escura. Guardas vampiros, vestidos com armaduras negras e ornamentadas, flanqueavam uma enorme porta de ferro. De dentro, vinham sons abafados, mas nenhum era de trabalho ou indústria. Eram sons de medo.
Eles circularam o perímetro, encontrando uma série de grandes dutos de ventilação perto da base do prédio. Com um esforço, conseguiram abrir uma grade e deslizar para dentro da escuridão claustrofóbica. O calor era sufocante, e o ar cheirava a metal quente e a algo adocicado e enjoativo. O som de seus movimentos ecoava perigosamente pelo metal. Abaixo deles, através das grades de ventilação, eles viam salas frias e estéreis, como as de um açougue. Em uma delas, viram uma figura sendo arrastada, os olhos vazios, a flor pálida brilhando em sua cabeça.
Foi então que ouviram vozes femininas e um som... estranho. Um som de satisfação.
— Ethan, espere. — Javier parou, o suor escorrendo por seu rosto na penumbra quente. — Ali na direita... acho que é o Merry.
Eles se arrastaram até a próxima grade. A cena abaixo era bizarra. Merry estava reclinado em uma cadeira de veludo, com duas vampiras jovens e belas, uma em cada braço, mordendo seus pulsos.
— Droga, você tem razão. Temos de entrar e ajudar! — sussurrou Ethan, preparando-se para cortar a grade.
Mas então, eles notaram a expressão no rosto de Merry. Não era de dor ou medo. Seus olhos estavam fechados, e um sorriso de puro êxtase estava estampado em seu rosto.
— Ei... não me diga que aquele velho... — Javier parou, a hipótese tão absurda que ele se recusou a completá-la. Eles se aproximaram mais da grade, prestando atenção.
— Nossa, como o sangue deste velho pode ser tão saboroso? — disse uma das vampiras, sem desgrudar os lábios do pulso dele. — Eu não sei! — respondeu a outra. — Está transbordando de mana, mesmo através do sangue. É velho, mas é doce como mel. — Ai, ai, ai... isso... continuem, minhas jovens... — murmurou Merry, a voz trêmula de prazer. — Este velho pode estar longe de sua era de ouro, mas a pipa ainda pode empinar! — Do que ele está falando? — perguntou a primeira vampira, confusa. — Sei lá. Mas temos de ir logo. A Carla e as outras estão chegando, e elas vão querer sugar ele todo. — OUTRAS? — Os olhos de Merry se arregalaram. — Ahhhhh, entendo! Então foi para este momento que treinei magia por todos estes séculos! Para poder cumprir meu destino, aqui e agora, devo superar meus limites!
Ethan e Javier se entreolharam na escuridão dos dutos, a perplexidade estampada em seus rostos.
— Agora que eu reparei... — disse Ethan, franzindo a testa. — Não tem uma flor na cabeça dele como nos demais.
A expressão de Javier mudou de preocupação para pura irritação. — Aquele velho maldito... Ele deve ter percebido a habilidade no momento em que entramos na neblina e ativou uma barreira para si mesmo, sem nos avisar.
Os dois se afastaram da grade, deixando o mago para seu "destino glorioso" e continuaram pelos dutos. Minutos depois, encontraram o que procuravam: uma sala maior, onde Lyra e Cinna estavam sentadas em bancos de pedra, os olhos igualmente vazios, as flores pálidas pulsando suavemente em suas cabeças.
Sem hesitar, Ethan cortou a grade e desceu em silêncio. Com dois movimentos rápidos e precisos de sua espada, as flores foram cortadas e se desintegraram em cinzas antes mesmo de tocarem o chão. As duas mulheres piscaram, a confusão em seus rostos rapidamente se transformando em horror e fúria ao perceberem a situação.
Após uma rápida explicação, duas conclusões foram tiradas em um silêncio pesado e unânime: Eles não podiam permitir que aquela atrocidade continuasse. Merry tinha éter para alimentar toda essa cidade de vampiros, então ele podia esperar. Definitivamente…
Com o grupo reunido, não havia mais motivo para furtividade. Ethan caminhou até a porta da sala, sua espada brilhando com uma luz intensa. Com um rugido, ele desferiu um golpe poderoso. A porta de ferro foi arrancada das dobradiças em uma explosão de fogo e metal retorcido, voando pelo corredor. Sirenes estridentes rasgaram o silêncio, e o som de dezenas de passos apressados ecoou pelo prédio. A batalha havia começado.
— Isso não acaba até derrubarmos a Rainha! Não percam tempo com os peões! — A voz de Ethan cortou o caos, cada palavra uma ordem clara e assertiva. — Ok! — responderam os outros em uníssono. — Lyra! — gritou Ethan por cima do barulho. — A verbena que eu te dei! Use em suas garras! É veneno para eles, queima a imortalidade e os fere profundamente! — Entendido! — A resposta de Lyra não foi uma palavra, mas o brilho mortal de suas manoplas, já gotejando a substância esverdeada, enquanto ela se lançava sobre o primeiro vampiro que apareceu no corredor.
Parte 8
O castelo não era uma fortaleza de pedra e tapeçarias antigas, mas um híbrido profano de arquitetura gótica e um laboratório estéril. Corredores de pedra polida eram revestidos por cabos grossos e conduítes de metal, e o brilho de tochas era substituído pela luz fria e azulada de terminais de computador e painéis de controle embutidos nas paredes. O ar cheirava a ozônio, a pedra úmida e ao cheiro fraco e adocicado de sangue.
A invasão foi um borrão de violência calculada. Enquanto avançavam, Cinna desviou de um ataque e colocou a mão em um terminal de parede. Seus olhos se arregalaram. — Ethan! Consegui acessar um arquivo! É sobre a pesquisa deles!
— Continue! Precisamos saber o que estamos enfrentando! — gritou Ethan, incinerando um vampiro que se aproximava dela.
Assim que Cinna invadiu os arquivos, ao mesmo tempo que criava uma cópia para um pendrive do laboratório, uma rápida tela apareceu no enorme monitor à frente.
Arquivo de Pesquisa Confidencial Nível de Acesso: Autorizado – Pesquisador Sênior ID do Arquivo: PROJETO_EVOLUTIVO_DEMONIACO_734 Data de Criação: 01/01/10025 Última Modificação: 29/07/20025
Entrada de Log: 001 Assunto: Análise da Espécie Demoníaca - Hipótese de Involução Pesquisador Responsável: Kloven Receptáculo 014 Observações: O espécime "Demônio Bestial" foi reavaliado e cumpre todos os critérios estabelecidos para o protocolo de despertar. A análise contínua da linhagem demoníaca levanta uma questão fundamental sobre sua trajetória evolutiva. Investigações preliminares indicam uma divergência na espécie, resultando nos subtipos "Bestial" e "Humanoide". Contudo, a lógica evolutiva convencional parece não se aplicar neste caso. Dados históricos da "Grande Guerra" descrevem os progenitores demoníacos ancestrais (Demônios Originais) como seres de poder e intelecto vastamente superiores aos seus descendentes contemporâneos. Esta observação sugere uma tendência de regressão geracional, onde a espécie se torna progressivamente menos formidável. O próximo objetivo da pesquisa é determinar o catalisador ou as condições ambientais que levaram a essa aparente involução e à subsequente bifurcação da espécie.
Entrada de Log: 002 Assunto: Verificação de Dados - Projeto "Kami" Pesquisador Responsável: Kloven Receptáculo 138 Status: Concluído Resultados: A análise de dados sobre a existência dos "Kami" foi corroborada. As informações obtidas confirmam que estas entidades, os guerreiros lendários que enfrentaram as forças de Lúcifer durante a primeira "Grande Guerra", não foram extintas. As evidências indicam que sua localização atual é o "Void". Recomenda-se a alocação de recursos para investigar a possibilidade de estabelecer contato.
Entrada de Log: 003 Assunto: Análise Genética - Sujeito "Dante" Pesquisador Responsável: Kloven Receptáculo 217 Observações: Os resultados da análise genética do sujeito "Dante" (Scarlune) apresentaram uma anomalia lógica em comparação com outros membros do mesmo grupo genético. Enquanto nos demais espécimes o gene dominante se manifesta de forma clara e consistente, no sujeito "Dante" a dominância genética parece ser condicional. A sobreposição de seus genes recessivos só ocorre sob a influência de um fator externo, como a ativação de suas habilidades latentes. Hipóteses Preliminares:
Conflito Genético Oposto: Os conjuntos de genes em questão são diametralmente opostos, resultando em um estado de supressão mútua que só é rompido por um estímulo significativo.
Mecanismo de Ativação Externo: Existe um gatilho específico, ainda não identificado, que é necessário para iniciar a expressão do conjunto genético dominante.
Antes que a terceira hipótese pudesse aparecer, o monitor se desligou de repente e explodiu por conta da batalha, impedindo que eles vissem mais informações.
— Cinna, conseguiu copiar os arquivos? — disse Ethan, enquanto continuava a atacar os invasores. — Sim, mas não sei se foram todos — Cinna respondia, tirando o pendrive da fumaça. — Vai ter de servir. Vamos enviar isto para Galahad depois. Agora, saia daí e se esconda atrás de mim. Eu vou incendiar todos eles e liberar o caminho até a sala da rainha.
Finalmente, eles arrombaram um par de portas de aço reforçado e entraram no que só poderia ser descrito como o santuário da Rainha. A sala era vasta, uma catedral dedicada à ciência e ao macabro. O teto abobadado se perdia na escuridão, mas o chão era um labirinto de equipamentos tecnológicos avançados. E no centro de tudo, duas visões que paralisaram o grupo.
A primeira era um iceberg colossal, com dezenas de metros de altura, alojado no centro da câmara. Não era feito de gelo comum; pulsava com uma luz interna escura e maligna, e dentro dele, contorcia-se a silhueta de uma criatura gigantesca e demoníaca, um pesadelo de chifres e garras congelado no tempo, um Demônio bestial. Inúmeros sensores e cabos estavam cravados no gelo, conectando-o a um supercomputador próximo.
A segunda visão era a mulher de pé ao lado do computador. Ela não usava uma coroa ou um vestido de monarca, mas um jaleco branco impecável sobre um elegante vestido preto. Era jovem, com longos cabelos prateados e olhos de um violeta profundo que brilhavam com uma inteligência antiga. Ela os observou entrar, não com alarme, mas com o interesse de um pesquisador. Na tela atrás dela, uma complexa hélice de DNA brilhava sob o nome "Dante Scarlune".
— Impressionante — disse ela, a voz calma e melodiosa. — Faz séculos que um evento não planejado não me trazia tanta... novidade.
— Você é Kloven — afirmou Ethan, a espada ainda brilhando. Ele deu um passo à frente, sua postura não era de quem pedia respostas, mas de quem as exigia. — Nós vimos seus registros. A pesquisa sobre os Demônios Originais, os Kami, a teoria da "involução"... E agora, você está pesquisando Dante Scarlune. O que você quer com ele?
Kloven riu, um som genuíno de deleite. — Vocês são ratos muito mais interessantes do que eu imaginei. Invadem meu laboratório, roubam meus dados e ainda têm a audácia de me interrogar. Adorável. — Ela caminhou lentamente em direção a eles. — Já que são tão curiosos, vou satisfazer essa curiosidade. Mas primeiro, entendam com quem estão falando. Eu sou uma Primordial. Estou viva há mais de vinte mil anos.
Ela saboreou a confusão deles. — Eu morri na grande guerra, mas minha alma persiste, reencarnando em minha linhagem. Eu vi tudo. E em todo esse tempo, minha única paixão tem sido a busca pelo conhecimento. Vocês leram meus arquivos, então sabem da minha hipótese: os demônios de hoje são ecos enfraquecidos. E agora, finalmente, o universo me presenteou com a chave para todas as minhas perguntas.
Sua mão pousou suavemente no monitor que exibia os dados de Dante.
— Ele... ele é um demônio? — perguntou Javier.
Kloven caiu na gargalhada. — Um demônio? Pelos céus, não! Se antes fosse algo tão simples... ele é muito, muito mais. Há vinte anos, os Astreus, as divindades supremas, começaram a encarnar em avatares mortais. E Dante Scarlune é o espécime mais perfeito de todos.
— Por que ele? Se existem outros... — começou Ethan, conectando as informações que tinha com as que Cinna havia gritado.
— AH! — Kloven bateu palmas, os olhos brilhando. — A pergunta certa! Porque quando um Astreus encarna, a personalidade mortal é apagada. Mas Dante... Dante é diferente. Ele mantém seu ego humano. Ele pensa, sente, age como um de vocês. Isso o torna o candidato perfeito para se tornar um aliado... ou a arma definitiva. Ele é uma chama, e todas as mariposas do mundo – a Luminary Labs, a Horizon, a Ordem da Rosacruz – estão voando em sua direção.
— Eu sabia que não poderia chegar perto dele sem ser eliminada. Então, decidi pesquisá-lo à distância. E foi aí que encontrei a maior piada cósmica de todas. Sendo um Scarlune, seu DNA é uma mistura de vários genes. E quando eu finalmente consegui isolar e identificar a origem de um desses genes dominantes...
Ela se virou para eles, um sorriso de pura e maníaca ironia em seu rosto, pronta para revelar sua descoberta final.
— Já escutei o bastante — interrompeu Ethan. A raiva justa queimava em seu peito. Aquela criatura via a vida como um experimento. — Sua pesquisa termina aqui.
Parte 9
O silêncio que se seguiu à interrupção de Ethan foi pesado, carregado com o peso de milênios de egoísmo. Naquele instante, tudo se encaixou na mente do cavaleiro. Não era sobre ciência, não era sobre conhecimento. Era sobre uma criatura antiga e entediada, disposta a sacrificar incontáveis vidas inocentes, geração após geração, apenas para satisfazer sua curiosidade mórbida. Milhares de anos de dor, tudo para que ela pudesse assistir ao seu teatro particular.
Um fogo diferente de qualquer outro que já sentira queimou em seu peito. Um fogo de pura e justa fúria. Ele não podia perdoar aquilo. Não podia permitir que continuasse. Ele iria derrotá-la. E depois, para impedir que aquele garoto, Dante, se tornasse uma arma nas mãos de monstros como ela, ele mesmo o encontraria. Mas primeiro, era seu dever como cavaleiro limpar aquela terra, erradicando aquele mal pela raiz.
— Que pena. Bem na melhor parte — disse Kloven, a decepção em sua voz dando lugar a uma frieza assassina. — Então, que a aula final seja prática.
Ela estalou os dedos. O iceberg atrás dela começou a rachar com um som ensurdecedor. Ao mesmo tempo, as portas do laboratório se abriram e dezenas de vampiros de elite, a guarda pessoal de Kloven, invadiram a sala.
A batalha explodiu.
— Javier, Cinna, cuidem dos lacaios! Lyra, comigo! — gritou Ethan.
O caos foi instantâneo. Javier se tornou um redemoinho de balas de prata e verbena, cada tiro encontrando um alvo preciso. Cinna tocava no chão de metal, e enormes pilares de pedra irrompiam, esmagando e bloqueando os vampiros. Mas a verdadeira luta estava no centro.
Kloven se moveu com uma velocidade que fazia o ar estalar. Ela não lutava como uma monarca, mas como um predador. Seus braços se alongaram, transformando-se em lâminas de osso negro que se chocaram contra a espada de fogo de Ethan. Lyra flanqueou, suas garras revestidas de veneno rasgando o ar, mas Kloven era como fumaça, seu corpo se contorcendo e se remodelando para evitar cada golpe.
— Vocês não entendem! — A voz de Kloven era um sibilo de triunfo distorcido, um sorriso selvagem rasgando seu rosto enquanto seu corpo se contorcia em uma blasfema sinfonia de adaptação. A carne ondulou, endurecendo em uma carapaça de diamante vivo no instante em que a espada de Ethan a tocaria. O impacto ecoou como um sino fúnebre, arremessando-o para trás com os braços vibrando violentamente. Com um estalo úmido de ossos e cartilagem, suas costas se rasgaram, não para liberar, mas para dar à luz um par de asas coriáceas, escuras como a noite, com garras quitinosas na ponta de cada junta. Elas se abriram com a fúria de uma tempestade, o deslocamento de ar forçando Lyra a rolar para longe. — Eu sou a evolução encarnada! Eu testemunhei o nascimento de estrelas e a morte de civilizações. Eu sou o ápice!
Ethan se lançou para frente, um borrão de movimento, mas ela era um redemoinho de contramedidas biológicas. Seus punhos se tornaram martelos de osso denso que abriam crateras no chão onde ele estava um segundo antes. Ele viu o exato momento em que ela previu a trajetória de Lyra, suas garras aladas agarrando um pilar de concreto e arremessando-o como um projétil. Lyra foi esmagada contra a parede oposta, um gemido de dor escapando de seus lábios. Viu o desespero nos olhos de Javier quando o último cartucho de sua arma caiu no chão com um baque metálico patético, forçando-o a sacar suas facas. Eles não estavam apenas perdendo. Estavam sendo desmantelados.
— Você fala de evolução — ofegou Ethan, o sangue de um corte na testa se misturando ao suor. — Mas você é uma prisão. Uma coleção de truques roubados, paralisada pelo medo de desaparecer!
Ele fechou os olhos. Um único segundo de silêncio no caos. A chama bruxuleante em sua espada se extinguiu. Um sorriso de desprezo tocou os lábios de Kloven. A rendição. Seu erro fatal.
Quando os olhos de Ethan se abriram, a humanidade havia sido expurgada. Eram duas estrelas douradas em miniatura, pulsando com a fúria de um sol nascente, derramando luz líquida por seu rosto.
— Você viu o tempo passar, Kloven. Mas aposto que nunca viu isto!
O ar estalou, ionizado. Uma onda de choque silenciosa emanou dele, não de som, mas de pura energia. Chamas douradas e escarlates irromperam de seu corpo, não como fogo, mas como plasma vivo. Asas de pura luz solar, entrelaçadas com filamentos de escuridão cósmica, explodiram de suas costas, sua envergadura tão vasta que roçava as paredes opostas da câmara. O calor se tornou uma presença física, esmagadora. O metal gritava em agonia, contorcendo-se e derretendo. A Encarnação da Fênix não estava na sala. Ela era a sala.
— Impossível… — A palavra de Kloven foi um sopro de vapor, seus olhos violeta arregalados. Pela primeira vez, ela recuou, um passo instintivo de uma presa diante de um predador alfa. — Uma singularidade... um paradoxo de poder...
A batalha não recomeçou. Ela ascendeu a um novo plano de existência. Ethan não se movia; ele fluía, um rio de fogo e fúria. Ele não corria, ele irrompia. Com um movimento gracioso e devastador, ele varreu o campo de batalha. Kloven ergueu sua carapaça de diamante, mas a espada de Ethan, agora uma lâmina de luz solar sólida, a atravessou, derretendo a defesa impenetrável como cera.
Ela tentou se adaptar, seu corpo se transformando em uma névoa de esporos tóxicos, mas as asas de fênix de Ethan bateram uma única vez, criando um vendaval solar que incinerou cada partícula. Ele era a fúria de mil renascimentos, a memória de cada sol que o viu morrer e renascer. Contra ele, a estagnação de uma única vida interminável era fútil.
Com um grito que rasgou o véu da realidade – parte o rugido de um homem, parte o pio de uma ave cósmica que caça entre galáxias – ele desferiu o golpe final. Não foi um ataque, foi um julgamento. A espada de fogo solar mergulhou em seu peito, e as chamas da fênix, a essência da criação e da destruição, a inundaram por dentro. Elas não queimaram sua carne imortal; elas a desfizeram, reescrevendo sua existência em cinzas e luz.
Kloven caiu de joelhos, uma silhueta se desfazendo contra a luz ofuscante. Seus olhos violeta, tudo o que restava, encararam Ethan, o choque dando lugar a uma última e terrível centelha de compreensão.
Mas com o que seria seu último suspiro, um sorriso fantasmagórico se formou das cinzas.
— Que pena, logo quando uma nova espécie tão interessante apareceu na frente dos meus olhos… — ela falava, não dando importância para o fato de estar morrendo.
Com a morte de seu corpo, um raio de éter começou a sair de seu cadáver, indo em direção ao iceberg aprisionador. Uma teia de rachaduras fulgurantes correu pela superfície azulada, como raios invertidos buscando um ponto de fuga. O gelo estremeceu, gemendo sob uma pressão inimaginável, antes de explodir em uma cascata de estilhaços afiados como diamantes negros. Um rugido primordial, carregado de eras de tormento e poder bruto, varreu a paisagem, fazendo tremer o solo sob seus pés e estilhaçando o que restava do castelo. Das profundezas geladas emergiu um colosso de ébano e músculo retorcido, um pesadelo materializado tão vasto que sua cabeça adornada por chifres de obsidiana rasgou o teto da torre como papel, lançando pedaços de alvenaria em todas as direções. Sua sombra engoliu o campo de batalha.
Ethan, o corpo esgotado após a explosão de poder da Fênix, caiu de joelhos, a respiração entrecortada. O demônio voltou sua atenção para os sobreviventes. Um único olho infernal, do tamanho de uma pequena casa, incandescente com fúria vermelha, fixou-se neles, cada um sentindo o peso esmagador de sua atenção. A batalha, longe de terminar, atingia um novo patamar de terror.
— TRABALHO EM EQUIPE! — Javier berrou, a voz ecoando no silêncio ensurdecedor que se seguiu à libertação do monstro. Sem hesitar, eles se lançaram em um ataque desesperado. Lyra, ágil como uma sombra, escalou a perna colossal da criatura, suas garras buscando freneticamente por uma fenda na pele grossa como couro de dragão. Javier, com a determinação estampada no rosto, disparou os restos de sua munição diretamente no olho flamejante, cada projétil ricocheteando com faíscas de dor aparente, mas sem causar dano significativo. Cinna, com um grito de esforço, concentrou sua magia no chão ao redor dos pés do demônio, abrindo fissuras profundas na tentativa de desequilibrar a besta. Mas seus esforços eram como a fúria de insetos contra uma montanha ambulante. Com um movimento displicente do braço, cada músculo do membro ondulando como uma onda de choque negra, o demônio varreu o ar, e a força resultante arremessou o trio para longe, corpos caindo como bonecas de pano em meio aos escombros.
Foi então que uma voz calma, quase arrastada e carregada de um tédio cósmico, ecoou pelo campo de batalha em ruínas.
— Ah, então era aqui que meus companheiros estavam… Ah, lembrei, tenho a magia perfeita para esse tipo de situação.
Merry, que até então estava apenas observando a batalha contra o demônio gigante, bateu com seu cajado no chão. Mas desta vez, não foram correntes de energia que brotaram. A cidade inteira tremeu. As ruas se ergueram. Os prédios se contorceram e se uniram. Os tubos e canos se tornaram músculos e tendões de metal. Sob o olhar incrédulo de todos, a Cidade do Nevoeiro se levantou, transformando-se em um golem de proporções titânicas, um mecha de pedra e aço cuja cabeça arranhava as nuvens.
O demônio, pela primeira vez, pareceu hesitar. A cabeça do golem se virou para ele.
— Isso... isso não é meio injusto? — A voz de Kloven, fraca e quase desaparecida, ecoou de suas cinzas.
O colossal golem de pedra e metal ergueu o punho, um punho do tamanho de uma pequena montanha. Ele se moveu lentamente, mas com uma força que distorcia o próprio ar. E então, ele socou.
Não houve som de impacto. Houve apenas a ausência de som. O demônio, o castelo, a montanha atrás dele... tudo foi simplesmente desintegrado por uma força tão absoluta que deixou para trás apenas uma cratera fumegante e um silêncio profundo.
Quando a poeira começou a baixar, o grupo saiu dos escombros, cobertos de fuligem. O golem se desfez, a cidade voltando a ser uma ruína silenciosa. Eles haviam vencido.
— Velho, você lembrou de salvar o pessoal que estava sendo controlado, né?! — Javier perguntou preocupado.
— Por que sempre acaba assim? — Ethan falava, escondendo o rosto.
— Claro que eu lembrei... Eu acho — Merry falava, coçando a cabeça.
— E agora? — perguntou Cinna, olhando para a vasta destruição. — Ainda vamos atrás daquele Majin? Ou... vamos atrás do Dante?
— Primeiro, vamos descer e ver se os habitantes da cidade estão bem e se saíram do transe. Depois, vamos enviar os arquivos para Galahad e, em seguida, temos de ir atrás do Majin para então ir atrás de Dante.
— O quê? Mas achei que ele fosse o maior perigo agora! — Cinna perguntou, sem entender.
— Ele obviamente está pensando que seria perigoso demais para qualquer um que estivesse próximo do Majin ou tentasse derrotá-lo em nosso lugar. Bom, o que se há de fazer... É por conta dele e do velho que nosso grupo está ficando conhecido como os "Matadores de Gigantes" — disse Javier, se preparando para descer.
O grupo assentiu, começando a longa caminhada para fora da cidade morta.
— Sabe — disse Javier, quebrando o silêncio. — No caminho de volta, podíamos dar uma paradinha naquela vila de novo. Tenho certeza de que minhas amigas do bordel estão com saudades.
POW!
O único som que se seguiu foi o do punho de Lyra colidindo com a mandíbula de Javier, jogando-o no chão.
Talvez, afinal, algumas coisas nunca mudassem.
Entrelinhas: Um Brinde aos Recomeços
O cheiro de poeira e ozônio se dissipa, o eco da batalha finalmente silencia. A cortina cai sobre o palco da Cidade do Nevoeiro. Um silêncio satisfeito paira no ar, como o que se segue a uma boa refeição.
A figura de Alpha se materializa novamente em sua poltrona aveludada, uma taça de vinho tinto escuro como sangue em sua mão. Um sorriso lento e divertido brinca em seus lábios enquanto ela observa o nada, como se pudesse ver através das páginas do tempo.
— E então? — Sua voz é um sussurro sedutor que parece arrepiar a espinha. — Gostaram da pequena distração? Um herói relutante, um ladrão de coração partido, uma aberração em busca de seu lugar... e um velho pervertido. Uma combinação clássica, não acham?
Ela leva a taça aos lábios, seus olhos, um abismo de estrelas, fixos no leitor.
— Ah, não me olhem assim. Toda boa história precisa de um pouco de tragédia para dar sabor à vitória. E a dor... a dor é um tempero tão delicioso. Ela molda as pessoas de formas tão... interessantes.
Alpha se levanta, a poltrona se desfazendo em sombras atrás dela. Ela caminha até sua estante infinita, que tremeluz na existência. Seus dedos deslizam pelas lombadas de incontáveis livros, cada um contendo uma vida, uma história.
— Mas agora que nossos heróis estão a caminho de casa, com novas perguntas e velhas feridas, a questão permanece... para qual página viraremos a seguir?
Sua mão para sobre um livro de couro negro, sem título, apenas com o entalhe de uma rosa espinhosa e uma adaga. Ela o retira da estante, o peso daquela história em suas mãos.
Ela se vira, um brilho de puro divertimento em seu olhar.
— Eu me pergunto... — ela diz, a voz um convite a um jogo perigoso. — Será que vocês conseguem adivinhar de quem será a próxima história que irei lhes contar?
Alpha abre o livro. E o mundo mergulha em silêncio mais uma vez, à espera do próximo ato.



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