The Fall of the Stars : Capítulo 2 - Caminhante Vazio e A Cidade dos Sonhos
- AngelDark

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Volume 9: O Mais Fraco
Parte 1
A caverna estava fria, o ar úmido e estagnado carregado com o cheiro de musgo antigo e terra molhada. O único som era o gotejar distante da água, pingando como um relógio inexorável, e o eco oco da respiração do garoto, irregular e fraca, reverberando pelas paredes irregulares.
O garoto, agora com as roupas muito mais rasgadas, seu cabelo ainda maior e o corpo todo sujo, usava sua antiga jaqueta como um manto esfarrapado que cobria seu corpo magro. Ele parecia um fantasma assombrando seu próprio fracasso, seus movimentos lentos e deliberados, como os de um autômato, cada passo ecoando com um arrastar surdo nos cascalhos.
Ele andou até a parede da caverna em silêncio e escreveu mais uma risca, inclinando o corpo ligeiramente para frente, lascas minúsculas caindo como poeira fina. Não havia raiva ou tristeza no gesto; apenas um vazio, os olhos fixos na marca fresca sem piscar. O número agora era muito maior do que na época em que esteve com Kuro. Vários outros dias haviam se passado.
Ele então abandonou a caverna, agora totalmente vazia, virando as costas para o interior escuro sem hesitação. Ele não olhou para trás, os ombros curvados sob o peso invisível. Não havia mais nada ali para ele. Caminhou até o pequeno túmulo de pedras de seu amigo e se despediu, inclinando-se ligeiramente sobre a pilha irregular, sua voz agora muito mais fria, profunda e fraca, ecoando baixinho no vento. Ele não chorou. Apenas ficou lá, uma estátua de sujeira e trapos, enquanto o vento assobiava ao seu redor, agitando os farrapos de sua jaqueta como bandeiras derrotadas.
Ele voltou, não para a caverna, mas para a floresta, endireitando a postura com um suspiro quase inaudível. Um passo de cada vez, sem destino, seus pés mal protegidos afundando no musgo úmido, o som squishy acompanhando cada movimento enquanto a umidade penetrava na pele rachada.
A floresta era diferente, totalmente diferente do comum, o ar carregado com um brilho etéreo que fazia as sombras dançarem. Ela era azul, e pequenas luzes, como chamas etéreas, vagavam por todos os lados, piscando suavemente como estrelas caídas. Elas flutuavam como vaga-lumes preguiçosos, lançando um brilho pálido e fantasmagórico sobre a casca azul-escura das árvores, que pareciam pulsar levemente ao ritmo de um coração invisível.
O garoto continuava sua caminhada em meio ao frio, inclinando o corpo contra o vento cortante que uivava baixinho entre os troncos. Dessa vez, não parecia que ele queria ir atrás de comida ou de um paradeiro definido. O garoto vagava no escuro e frio, os olhos fixos no chão irregular. A fome era uma dor distante; o perigo, um conceito irrelevante, ignorando raízes que o faziam tropeçar levemente.
Depois de muito tempo andando, ele percebia o olhar de criaturas o observando no escuro, entre as árvores azuis, virando a cabeça devagar para captar os vislumbres periféricos. Olhos azuis e curiosos piscavam e desapareciam, como estrelas piscando no céu noturno. O som de galhos quebrando à distância, de coisas se movendo nas sombras, estalos secos ecoando como sussurros conspiradores. No entanto, ele as ignorava, seguindo em frente sem pensar em nada, os ombros encolhidos contra o frio crescente.
Assim, uma risada aguda começou a ecoar na floresta, cortando o ar como um sino desafinado.
O som foi como vidro quebrado, cortando o silêncio opressivo, reverberando pelas árvores com ecos distorcidos. Era penetrante, cheio de uma zombaria infantil e antiga, fazendo as luzes etéreas piscarem irregularmente.
O garoto, pela primeira vez, mostrou uma reação, congelando no lugar com os pés plantados. Seus pés pararam abruptamente, o corpo inteiro tensionando. O movimento de sua cabeça foi lento, enferrujado, como se os músculos tivessem esquecido como se mover. Ele observou em volta, os olhos vazios escaneando as sombras. Ele viu que o barulho vinha de perto de uma enorme, gigantesca árvore. Ela era maior que todas as outras, suas raízes grossas como muralhas se projetando do chão como veias antigas, seus galhos se contorcendo até um dossel invisível, bloqueando a luz azulada acima.
Ele observou a árvore, inclinando ligeiramente o corpo para frente, e a árvore abriu seus olhos nodosos, encarando o garoto com um rangido baixo de casca se partindo. A casca grossa rangeu e se partiu, revelando dois orbes luminosos e antigos, cheios de uma paciência milenar, que o avaliaram de cima a baixo, piscando devagar como se o medissem.
— Veja se não é o jovem sonhador — a voz da árvore era antiga e rangeu como madeira velha, vibrando pelo ar como um tremor sutil no chão. — Então, finalmente conseguiu passar pela floresta.
O garoto observava com seus olhos vazios, inclinando a cabeça ligeiramente para o lado sem responder. Ele não falou. Não recuou. Apenas existia, os braços pendendo inertes ao lado do corpo. De repente, um diabrete azul, pequeno e ágil, apareceu, escalando os galhos da árvore com saltos rápidos e espasmódicos. Ele era uma mancha vibrante de cor contra o azul profundo, todo movimento espasmódico e energia nervosa, balançando de galho em galho como um macaco hiperativo. Era dele que o garoto havia ouvido a risada.
— Desista, velha árvore! — o diabrete zombou, agarrando-se de cabeça para baixo em um galho, balançando pelo rabo fino como um pêndulo vivo, os olhos negros brilhando com diversão. — Esse garoto já está morto e vazio por dentro! Após perder seu amigo, ele comeu da macieira envenenada!
O garoto estremeceu levemente com a menção do amigo, os ombros tremendo involuntariamente.
O diabrete pulou para um galho mais baixo, olhando para o garoto com pena e desprezo, inclinando a cabeça para o lado enquanto balançava as pernas. Seus olhinhos negros brilhavam com malícia, gesticulando com as mãozinhas pequenas.
— Ele comeu várias, até não aguentar mais! — Ele gesticulava loucamente, encenando a fome desesperada do garoto, fingindo morder frutas invisíveis com mordidas exageradas. — Esperando matar sua fome, ou então, o rever! Mas a única coisa que aconteceu foi ele acordar, com a barriga doendo e o coração ainda mais vazio, percebendo que seu amigo não ia voltar!
O garoto continuava olhando, piscando devagar enquanto as palavras ecoavam. As palavras o atingiram, mas ele não tinha mais lágrimas para derramar. Era apenas a verdade, inclinando ligeiramente o corpo como se o peso delas o empurrasse. Então, ele se virou, como se fosse embora, girando o corpo devagar sobre os calcanhares.
A conversa era inútil. Tudo era inútil, os passos iniciais ecoando surdamente no musgo.
— Espere — a árvore falou, inclinando ligeiramente um galho como se estendesse uma mão. A voz era um comando, não um pedido, e o chão vibrou levemente sob seus pés, fazendo folhas azuis caírem ao redor. — Como você... chegou a este mundo?
O garoto somente a encarou, virando o corpo de volta com um movimento rígido. Seus olhos mortos encontraram os olhos antigos da árvore, fixando-se neles sem piscar. Um silêncio pesado se instalou, o vento parando como se prendesse a respiração.
— O que você quer dizer com isso, árvore? — o diabrete perguntou, parando de pular abruptamente, inclinando a cabeça para o lado com as orelhas tremendo, agora genuinamente curioso, aproximando-se do tronco para ouvir melhor.
— É impossível um Prim comer uma Maçã do Pecado e continuar vivo — a árvore explicou, sua voz séria, cada palavra parecendo pesar no ar como raízes se aprofundando na terra. Cada palavra parecia pesar no ar, os galhos tremendo levemente com o tom grave.
O diabrete engasgou, seus olhos se arregalando dramaticamente, cobrindo a boca com as mãozinhas.
O garoto olhou para baixo, para suas mãos sujas, virando as palmas para cima e examinando a sujeira sob as unhas, o sangue seco de cortes antigos e depois para cima de novo, inclinando a cabeça como se questionasse a si mesmo.
— Eu entendo... — a árvore falou, suavemente, um galho se inclinando ligeiramente como se para tocá-lo. — Então, você perdeu suas memórias…
A árvore fez uma pausa, os olhos nodosos piscando devagar. O vento uivou suavemente pelos galhos, o único som além da respiração trêmula do diabrete, que se inclinava para frente ansiosamente.
— Para onde irá agora, pequeno perdido?
O garoto, depois de todo esse tempo, finalmente falou, abrindo a boca devagar. Sua voz era um sussurro rouco, ecoando roucamente no ar parado. Parecia rasgar sua garganta, como se não fosse usada há anos, tossindo levemente após a palavra. O som do desuso e da dor.
— Caminhar.
Ele olhou para o nada, virando a cabeça para o lado. Para além da árvore, para o azul infinito e sem fim da floresta, os olhos vazios perdidos no horizonte.
— Eu não sei quem eu sou. De onde vim. Ou por que estou aqui. Mas... a única coisa que me recordo... — ele levou a mão suja ao peito, sobre o manto esfarrapado, pressionando os dedos contra o tecido puído — ...é que alguém havia dito para eu continuar vivendo. E por essa promessa, ou maldição... eu continuarei a seguir.
— Entendo — disse a árvore, inclinando um galho como se assentisse. — Mas se o jovem irá desbravar Morpheus, deverá se proteger. Pois, entre sonhos e pesadelos, há diversos perigos.
Houve um estalo alto, um som de madeira antiga se partindo, ecoando como um trovão abafado. Um dos galhos da árvore se esticou e se partiu, rangendo enquanto se desprende. Ele caiu na frente do garoto, girando no ar antes de aterrissar. Aterrisou com um baque surdo no musgo, levantando um pó azulado que dançou no ar como névoa. Era um galho longo e reto na maior parte de sua extensão. Perto de uma das pontas, ele tinha uma bifurcação em formato de "Y", com pequenos ramos saindo dela, dando a leve aparência de uma espada, as folhas residuais tremendo levemente com o impacto.
O garoto pegou o galho-espada, inclinando-se para frente com um movimento lento, envolvendo os dedos magros e sujos ao redor da madeira áspera. Sentindo a textura rugosa contra a pele calejada. Era sólida e pesada e sem dizer mais nada, nem mesmo um aceno de agradecimento, começou a caminhar, girando o corpo e prosseguindo com passos firmes.
Enquanto ele se afastava, o diabrete perguntou, inclinando-se para o tronco da árvore com as mãozinhas cruzadas:
— Por que você ajudou esse garoto?
A árvore velha observou o garoto desaparecer na floresta azul, inclinando ligeiramente os galhos como se seguisse sua silhueta. Sua forma se tornou apenas mais uma sombra entre as sombras, fundindo-se ao azul distante.
— Você estava errado, diabrete. Você disse que ele pegou as maçãs porque desistiu de tudo e não se importou de morrer para reencontrar seu amigo.
— E não foi?
— Não. Eu vi outra coisa nos olhos daquele garoto. Um brilho de alguém que, apesar de tudo, havia decidido viver.
Assim, o garoto continuou a caminhar, se afastando da árvore velha e indo mais fundo na floresta vazia, o galho-espada balançando levemente em sua mão ao ritmo dos passos.
Parte 2
O ar estava pesado, imóvel. O único som era o 'crunch' seco de seus pés sobre o musgo cristalizado e azul. Ele era uma figura esquelética contra a luz fantasmagórica.
Enquanto vagava, o garoto passava por algumas partes na floresta que eram diferentes das demais. Eram pilares quebrados, arcos de pedra que não levavam a lugar nenhum, engolidos por raízes azuis que pareciam pulsar com uma luz fraca. Agora, no interior profundo da floresta, havia ruínas, como se antigamente houvesse uma cidade onde agora era só uma enorme floresta azul. Ele caminhou, continuando em frente, ignorando as ruínas à sua volta. Ele não tinha curiosidade. Apenas um ímpeto de seguir em frente, como um rio que não pode parar.
De repente, ele viu uma enorme rachadura na terra, uma fissura que parecia a entrada de uma caverna. Era uma boca escura no chão da floresta, exalando um ar frio e úmido que cheirava a poeira e tempo. Um abismo que prometia nada.
Ele observava com atenção quando, de repente, uma coruja de penas azuladas voou para uma árvore perto dele e começou a fazer barulho. O som foi abrupto, um 'clique' e um arrastar de garras na casca, antes do chamado.
— Uh uh. Uh uh.
Ele olhou na direção da coruja, seu movimento lento, enferrujado, que virou a cabeça 180 graus para encará-lo. O movimento foi perfeitamente silencioso, seus olhos como duas lanternas, contrastavam sua aparência escura.
— Vejo que decidiu seguir e atravessar a floresta, jovem criança — a coruja falou, sua voz surpreendentemente clara. — Se quiser realmente sair dela, sugiro que siga por essa entrada. Mas cuidado.
A coruja piscou lentamente. Um movimento deliberado, quase real demais.
— O Cemitério do Antigo Reino dos Sonhos é lar de segredos, glória e riqueza. Muito mais do que se pode desejar. Mas, como dito para todos que já se aventuraram: apesar de muitos seguirem em direção à escuridão, poucos voltaram.
O garoto olhou com seus olhos apáticos e azuis. Ele sentiu que os observadores na floresta, as criaturas escondidas, ainda o encaravam. Um formigamento em sua nuca. O peso de mil olhos invisíveis, todos esperando para ver o que ele faria. Sentia que havia muito perigo à sua frente. Mas, sem hesitar, ele saltou para dentro da rachadura, escolhendo ir para onde o perigo dava, sem temor.
Não foi um salto de coragem. Foi um ato de indiferença. Ele simplesmente moveu o pé da borda e deixou a gravidade fazer o resto, caindo na escuridão como uma pedra.
A coruja, vendo-o desaparecer na escuridão, murmurou para si mesma:
— Como sempre. São aqueles com maiores ambições quem sempre se arriscam... e por isso estão mais perto de perder. Seria possível... que o erro deles teria sido sonhar?
Assim, ela voou, desaparecendo na luz azul. Uma mancha silenciosa que se dissolveu na névoa.
A queda foi curta. Ele aterrissou com um baque surdo em terra macia, levantando uma poeira que cheirava a séculos.
O garoto chegou ao fundo de uma caverna com paredes de terra e raízes grossas. As raízes pulsavam com a mesma luz azul da floresta, como veias adormecidas. Ele caminhou em frente, sem parar. Enquanto caminhava no escuro absoluto, as mesmas chamas azuis da floresta apareceram flutuando no ar, despertando de seu sono, uma por uma, à medida que ele se aproximava, iluminando seu caminho. Elas o seguiam, como uma procissão silenciosa.
Nas paredes à sua volta, existiam pinturas. Ele as observava, mesmo sem entender. Eram toscas, feitas com pigmentos vibrantes que pareciam frescos demais.
Nelas, existiam seres azuis e seres pretos. Ambos pareciam brincar juntos na mesma cidade brilhante. Mas, após algumas paredes quebradas e mais pinturas, o garoto via a imagem de um rei azul, usando uma coroa de espinhos de cristal, afastando os seres pretos para uma parte vazia e escura, não os deixando voltar. As figuras pretas eram desenhadas com as mãos estendidas, como se implorassem.
Sem entender, o garoto seguia. As imagens não significavam nada para ele. Eram apenas cores na parede.
Até que, de repente, a caverna se abriu, e ele viu. O espaço se expandiu em uma vastidão impossível. O ar ficou gelado. Um antigo castelo, em baixo da terra, como se a própria terra o tivesse devorado. Torres quebradas se erguiam em direção ao teto distante da caverna, suas janelas como órbitas vazias. Estava em silêncio de morte.
A rachadura no teto, por onde ele entrou, emitia uma pequena luz azul, um único feixe de holofote vindo do mundo superior, iluminando fracamente aquele lugar silencioso. A luz incidia sobre um pátio central coberto de musgo, deixando o resto em sombras profundas.
Ele continuava andando, explorando. Seus passos ecoavam alto na vastidão, o único som ali. Enquanto andava pelas ruínas do castelo, a arquitetura meio gótica o fazia ter flashes de memória. Uma sensação de vertigem. O mundo piscou. Uma torre... uma torre alta com arquitetura gótica... Embora suas memórias parecessem embaçadas, como se estivessem molhadas e borradas.
Ele continuava a caminhar, e a voz da garota ficava cada vez mais audível em sua mente. Como um sussurro se tornando um grito. Ele esqueceu de tudo: seu nome, sua origem, quem era. Tudo.
Menos o nome daquela garota que pediu para ele viver.
Ele murmurou:
— Nero...
O nome soou estranho em sua própria garganta seca, o primeiro som que ele fazia em dias.
Sua cabeça doeu instantaneamente. Uma pontada aguda atrás dos olhos. Ele levou a mão à têmpora, um espasmo que quase o derrubou. A frase dela voltou, clara como cristal:— Não morra… meu amado idiota.
A voz ressoava. Ele tropeçou, seu pé prendendo em um entulho que ele não viu, mas continuou andando, observando com atenção. A dor era uma âncora, um lembrete de que ele ainda estava ali.
Agora ele via estátuas danificadas pelo tempo. Elas ladeavam o que um dia foi um grande salão. Pareciam ser de noivos, mas enquanto a estátua do marido estava quebrada, despedaçada no chão, reduzida a cascalho e um pé de mármore, a da noiva parecia intacta, mas triste. Seu rosto de pedra estava virado para o marido destruído, uma mão de pedra estendida, os olhos vazios parecendo cheios de uma dor eterna.
Ele então notou. Ele parou, sua cabeça inclinando. A primeira faísca de... algo. Não curiosidade, mas percepção. Algumas partes do castelo tinham uma tintura mais nova que as outras. As pinturas da história que ele viu na caverna, e essas estátuas... pareciam mais novas que os tijolos do lugar. O desgaste não batia. A poeira sobre os tijolos era antiga; a tinta nas pinturas era vibrante. As estátuas estavam limpas, exceto pelo entulho. Como se tivessem sido feitas após o castelo cair.
Ele continuava andando, seguindo em frente, mais fundo nas ruínas. O feixe de luz da fissura estava agora longe, atrás dele. Ele estava entrando na escuridão total, guiado apenas pelas chamas azuis flutuantes.
Quando, de repente, escutou um barulho.
Ele congelou. Seu corpo inteiro ficou rígido.
Era baixo, mas claro. Um som como se fosse choro, vindo de uma direção, de um corredor escuro à sua direita. Um soluço, abafado, ecoando fracamente pelas pedras. O som de uma tristeza profunda, desesperada.
Ele olhou para a escuridão de onde vinha o som. O corredor era um breu, uma boca negra que prometia ou perigo ou respostas. O choro continuou, um soluço patético e solitário.
Parou por um segundo.
O som o puxava. Era vida. Era emoção. Tudo o que ele não tinha. Uma parte dele, enterrada muito fundo, queria ir até lá.
Mas, com seus olhos frios e apáticos, ele se virou, ignorando as lágrimas, e continuando seu caminho. Ajudar alguém exigia energia. Exigia se importar. E ele não tinha mais nada disso para dar. Seu único propósito era a promessa. Caminhar.
Parte 3
Em uma parte mais escura do castelo em ruínas, uma enorme teia negra se estendia entre dois pilares caídos. Era espessa como corda e brilhava com uma umidade oleosa. Ela bloqueava completamente a passagem. Várias das chamas azuis flutuantes, que antes iluminavam o caminho, estavam presas nela, se debatendo como insetos. Sua luz estava sendo sugada, pulsando fracamente antes de se apagar com um 'pop' sibilante.
E, no centro da teia, havia uma criatura aracnídea.
Ela tinha um corpo mais alongado e esguio que uma aranha comum, quase como se fosse feito de sombras densas. Ela comia as chamas azuis, perfurando-as com mandíbulas afiadas como agulhas, e a cada chama consumida, um brilho azul percorria seu corpo negro, fazendo-a brilhar por dentro. A luz azul iluminava seus órgãos internos por um segundo, uma visão grotesca.
Em uma parte de sua teia, havia uma pequena fadinha presa. Era dela que vinha o choro.
A pequena e chorosa fada tinha longos cabelos brancos como a neve, enfeitados por uma flor azul. Ela usava um vestido curto e esvoaçante, num tom de azul profundo. De suas costas, grandes asas azuis, como as de uma borboleta e com quase 15 centímetros, se debatiam inutilmente na teia negra. Os fios grudentos puxavam suas asas a cada movimento, rasgando o material delicado.
— Então... essa vai ser minha punição... — ela falava, como se quisesse aceitar seu destino, mas seu medo a impedia. Ela tremia toda vendo a aranha se aproximar, seus 'cliques' úmidos ecoando pelo salão, respirando pesado e pedindo por ajuda em sussurros. Parecia que seu destino já havia sido traçado.
A aranha era uma Sentinela de Pesadelos. Uma formiga-aranha gigante com longas pernas afiadas. Ela se moveu. Sua armadura quitinosa era escura como a noite, mas viva com uma luz azul espectral. A energia brilhava em seus múltiplos olhos, em seu abdômen transparente e, mais ameaçadoramente, dançava como fogo frio ao redor de suas mandíbulas.
Quando se aproximou da fadinha, os olhos dela foram perdendo a cor e o desespero tomou conta. A criatura levantou uma de suas patas dianteiras, a ponta afiada mirando o peito da fada. Sem uma rota de fuga, ela só podia aceitar sua morte.
Mas, no segundo que ela iria ser devorada, uma pedra atingiu a carapaça da aranha com um clique agudo.
O som foi alto, seco, quebrando o silêncio fúnebre.
A Sentinela se virou, irritada. Sua cabeça girou com uma velocidade sobrenatural, todos os oito olhos focando na escuridão da entrada. O garoto estava parado ali, segurando sua espada de madeira. Ele estava enquadrado pela luz fraca das poucas chamas restantes, uma silhueta magra e trêmula.
A fadinha, vendo o garoto, não conseguia acreditar. — Fuja! Saia daqui! — ela gritou. Mas o garoto, olhando para ela, presa na teia, viu a si mesmo: caído no chão, paralisado de medo da hiena-escorpião.
O vazio em seu peito se contorceu, substituído por uma pontada fantasma de pânico antigo.
Ele segurou sua espada de madeira com mais força, mesmo que seus dedos desnutridos parecessem que se quebrariam só por aquilo. A madeira do galho rangeu sob a pressão. Ele olhou nos olhos da aranha em um silencioso desafio.
Ela correu na direção do garoto. Não foi uma corrida; foi uma explosão de movimento, um borrão de pernas afiadas e quitina negra vindo direto para ele, cobrindo a distância em um instante.
O garoto sabia que era fraco. Mais fraco que a hiena. Mais fraco que Kuro. E, obviamente, muito mais fraco que a aranha em sua frente. Mas, ainda assim, ele se moveu.
Seu corpo não paralisava. O medo de reviver aquela paralisia era mais forte que o medo da morte. Mesmo com medo e sabendo que era fraco, ele tinha coragem para se mover. Ele se jogou para o lado, desviando do golpe das presas por pouco, com um rolamento desajeitado. As mandíbulas da aranha se fecharam onde sua cabeça estava, o som de 'clack' ecoando como uma armadilha de urso.
A aranha o procurava, virando-se furiosamente, suas pernas perfurando o chão de pedra, mas ele era tão pequeno que facilmente se escondia nas ruínas. Ele mergulhou atrás de um pilar caído. O problema era que a aranha era um ser que vivia nas sombras; sua visão ali era perfeita. Ele mal teve tempo de respirar antes que uma perna afiada perfurasse a pedra ao lado de seu rosto, fazendo chover farpas. Ela voltou a atacar.
O garoto continuava fugindo e se esquivando, correndo em vez de rastejar, seu corpo magro movendo-se com uma agilidade desesperada, fazendo de tudo para não ser atingido, usando a diferença de seus tamanhos para conseguir passar por baixo da enorme aranha. Ele a atraiu para perto de uma parede baixa e, quando ela atacou, ele deslizou por baixo de seu abdômen.
Quando a fez ficar presa, dando uma cabeçada contra a parede, o som do impacto da criatura fez o teto tremer, o garoto correu até a fada, tentando rasgar a teia com o galho. Ele golpeou a teia, mas ela era elástica, pegajosa. A espada de madeira grudou.
Mas a aranha viu. Recuperando-se com um guincho de raiva, com uma patada rápida, ela o jogou contra a parede. Foi um golpe lateral, um tapa de costas de mão que o pegou no ar.
Ele caiu com um baque surdo. Seu corpo bateu na pedra e deslizou para o chão como um boneco de trapos. Seu corpo estava frágil pela desnutrição. Mesmo uma simples patada foi o suficiente para o derrubar e fazer sua cabeça começar a sangrar. O sangue quente escorreu por sua têmpora, embaçando sua visão.
— NÃO! — A fadinha começou a emanar uma aura azul brilhante, tão intensa que iluminou o salão inteiro como um holofote, fazendo barulho para chamar a atenção da aranha. — Deixe-o! Corra! Fuja daqui! Eu sou uma pecadora, não mereço ser salva!
Mas o garoto não ouvia nada. Seus ouvidos estavam cheios de sangue e sua cabeça, embaçada. O mundo era um zumbido agudo e dor. Vendo aquilo—ela chamando a aranha, se sacrificando para salvá-lo, mesmo quando ele tentava salvá-la—ele lembrou de Kuro. Ele percebeu que voltou para o mesmo lugar.
Lágrimas que ele achava que não tinha mais saíram, quentes, misturando-se com o sangue e a sujeira em seu rosto, enquanto ele corria para frente. Ele usou a espada de madeira como apoio para se levantar, seu corpo gritando de dor. Ele não iria perder de novo. Nunca mais sentiria aquele vazio.
Ele arremessou outra pedra na perna da aranha, atraindo sua atenção e posicionando-se novamente à sua frente.
A fada gritava para ele correr, mas ele ficou ali, imóvel.
A aranha vinha com tudo em sua direção. Desta vez, ela não usou as patas; ela abriu suas mandíbulas para o golpe final. O vento do ataque bagunçou seus cabelos. O garoto tremia, parecia abalado. Ele fechou os olhos.
O tempo parou.
E um toque quente pareceu tocar em sua bochecha. Uma memória de um toque. Borboletas vermelhas começaram a voar. Não de fora. A primeira nasceu em seu peito, uma faísca de éter carmesim que escapou de seus lábios como um suspiro.
— Não morra… meu amado idiota.
A mesma frase. A voz ecoou, clara e poderosa, não apenas em sua mente, mas no próprio salão. Ele abriu os olhos — agora não mais vazios, mas queimando com uma luz vermelha — e cortou.
Sua espada de madeira, que antes era um galho morto, agora brilhava com um fulgor vermelho. Ele acertou em cheio a cabeça da aranha. O corte foi desesperado, fraco, mas a luz fez o trabalho.
A Sentinela soltou um guincho. Um som agudo, de dor e medo, que não parecia físico. Uma rachadura apareceu em sua armadura negra. Fumaça vermelha saiu da ferida. Ela começou a se afastar, assustada.
O garoto abriu os olhos, e viu: borboletas com um brilho vermelho saíam das rachaduras do próprio castelo, atraídas por ele, voando ao seu redor. Elas pousaram em seus ombros e na lâmina improvisada.
A aranha, com medo e sentindo dor, correu, arrastando-se desajeitadamente para trás, desaparecendo nas sombras de onde veio.
O silêncio voltou, quebrado apenas pelo choro suave da fada e pela respiração ofegante do garoto. O brilho vermelho pulsava com seu coração, e a sua volta.
A fada olhava, sem acreditar, vendo o garoto em pé, cercado por aquela luz. Ela não entendia, mas se perguntava... por que algo assim era tão lindo?
Parte 4
O silêncio do salão era pesado, quebrado apenas pela respiração ofegante do garoto e o choro baixo da fada. A luz vermelha pulsou uma última vez, em uníssono com o coração dele, e depois se extinguiu, mergulhando o lugar de volta na penumbra azulada.
O garoto ficou parado, observando a maioria das borboletas vermelhas se afastar, voando para dentro das rachaduras do castelo, como sangue reverso sendo sugado de volta para as veias da pedra, até que desaparecessem. Ele olhou para a espada de madeira em sua mão, que agora era apenas um galho comum novamente. Estava leve. Inerte. Inútil.
Sem entender o que havia acontecido, ele se virou e foi na direção da fada. Seu corpo protestou a cada passo. O sangramento em sua cabeça o deixou tonto, e o mundo parecia inclinar.
Ele usou o galho para rasgar as teias negras e pegajosas, libertando-a. A teia resistiu, grudando no galho, mas a força desesperada dele foi suficiente para rasgá-la. A fada caiu no chão, em um baque surdo, tossindo e esfregando os pulsos. Ela olhava para o garoto, que agora, com a adrenalina desaparecendo, tinha uma expressão triste e frágil. O vazio apático em seus olhos foi substituído por uma dor física, sua mandíbula cerrada contra ela.
— Você... você me salvou... Obrigada... — ela começou a dizer, mas antes que pudesse agradecer direito, ele se virava e ia na direção da saída, mancando por causa dos ferimentos da aranha. Ele não tinha mais nada ali. A tarefa estava concluída. Ele precisava seguir.
— E-espere! — a fada pediu, voando rapidamente para a frente dele, suas asas batendo em um borrão azulado, criando uma pequena corrente de ar, bloqueando seu caminho. Ele parou, olhando para ela com seus olhos azuis vazios. A exaustão o tornava pesado, seus ombros caídos.
Ela bufou, inflando as bochechas. Uma faísca de vida teimosa que contrastava com a ruína ao redor. — Percebi que você é do tipo que não gosta de falar. Será que ao menos sabe como falar? — Ela voou mais perto, inspecionando o sangue seco em sua testa com uma carranca de preocupação. Ela cruzou os braços, sua expressão ficando séria. — De qualquer forma, andar por aqui é perigoso. Além disso, também é difícil, quase um labirinto. Mas, para agradecer, eu o levarei para a saída. Por isso, peço que me siga.
O garoto a observou por um momento e, lentamente, começou a segui-la. Um aceno quase imperceptível. Ele não tinha energia para recusar.
Enquanto caminhavam, a fada voava ao redor de sua cabeça. Como um beija-flor nervoso. — Quem é você, afinal? Você tem um nome? E o que foi aquela luz vermelha? Você é forte? — Suas perguntas batiam contra o silêncio dele, ecoando sem resposta. Mas o garoto continuava caminhando, inexpressivo, sem dar qualquer resposta ou se alterar.
Até que ele parou. Tão abruptamente que a fada quase se chocou contra a nuca dele. Ele estava olhando para outra parede com pinturas. A fada, que quase bateu nele, parou também.
A pintura estava dividida. Uma rachadura real na pedra servia como divisa. De um lado, havia uma princesa feita de tinta preta, com olhos vazados que pareciam chorar poeira, em pé em um lugar cheio de rachaduras, quebrado e vazio. Do outro lado, uma princesa com tinta azul estava em um elegante castelo azul brilhante, cercada por outros seres azuis e pelo rei da pintura que ele vira antes. As duas princesas eram idênticas, exceto pela cor e pelo destino.
A fada, se virando, percebeu que ele olhava com atenção para a pintura. Ele estava imóvel, sua cabeça inclinada, como se tentasse decifrar um código. Sendo essa a única coisa que ele havia feito até então, ela foi até ele. — Você acha as pinturas bonitas ou algo assim? — O garoto não respondeu. Ignorando-a, ele continuou andando em frente.
— Ei! Espere! — ela gritou, voando atrás dele. — Sou eu quem está mostrando o caminho! — Ela bufou de frustração, mas acelerou para alcançá-lo e reassumir a liderança.
Depois de mais um tempo em silêncio, enquanto o guiava por um corredor quebrado, onde o chão havia cedido, forçando-os a andar por uma viga estreita, a fada perguntou: — Você quer saber a história por trás daquelas pinturas?
O garoto parou novamente e, desta vez, olhou diretamente para ela. O movimento foi deliberado. Seus olhos vazios focaram nos dela pela primeira vez. A fada notou a diferença. — Ah... — ela disse, surpresa. Ela parou de voar, pairando no ar. — Você realmente deve estar curioso, já que não respondeu apenas com a costumeira falta de semblante.
Ela pousou em uma pedra quebrada, suas asas azuis caídas. A luz azul da floresta, agora visível ao longe, banhava seu pequeno rosto, realçando sua tristeza. — Esse era o Antigo Reino dos Sonhos. Um lugar onde Sonhos e Pesadelos viviam alegres e cheios de prosperidade. Mas... um dia, tudo mudou. — Ela olhou para as próprias mãos. — Tudo por conta de um amor... um casamento... e uma mensagem não entregue. — Ela tocou o peito. — Meu pecado. E para pagar por esse pecado, eu estou aqui. Sozinha. E enquanto não pago, eu registro neste lugar, onde tudo começou, a história por trás de tudo. Mesmo que isso não possa mudá-la.
Um silêncio pesado se instalou, preenchido pelo gotejar distante da água.
Eles chegaram à saída, a mesma rachadura na terra por onde o garoto havia entrado, agora emitindo a luz azul da floresta. Era uma rampa íngreme de terra e raízes. O garoto saiu com passos lentos, usando o galho como apoio para subir, vendo o lado de fora da caverna, enquanto a fada permanecia dentro dela, na escuridão. Ela não passou do limite onde a luz tocava.
— Você só precisa continuar a caminhar — ela disse, sua voz pequena ecoando. — Eu não sei o que o aguarda mais à frente. Mas, se você continuar caminhando em frente, chegará a algum lugar.
O garoto se virou. Ele estava agora na luz, ela na sombra. Duas figuras em mundos diferentes. Ele apontou para ela, e depois para o lado de fora, como se a chamasse para vir junto.
A fada ficou agitada, recuando. Suas asas se eriçaram como as de um pássaro assustado. — Não! Eu não posso! Nem pense nisso! — ela disse, balançando a cabeça. — Eu cometi um pecado. E eu devo pagar por ele. Sozinha.
Ela olhou para ele, lembrando do brilho das borboletas. — E além disso... eu não sei quem é você, nem por que está aqui. Mas eu senti. Aquele brilho quente e vermelho... Eu sinto que você pode ter um propósito. Um motivo para caminhar por aí. E seja qual for esse propósito, você não o encontrará aqui, nessas ruínas.
O garoto se virou. Novamente, ele sentiu aquela dor e aquele vazio dentro de si. Mas, ainda assim, he começou a caminhar, se afastando. A fada o observou do escuro, sua expressão mudando para uma tristeza profunda.
O garoto, de repente, parou. Seus ombros caídos hesitaram. Ele se virou, a luz azul do lado de fora iluminando seu rosto sujo e ferido.
— ...Obrigado.
A voz dele era fraca e rouca, quase inaudível. O som do esforço de falar era palpável. A fada prendeu a respiração.
— Um dia... eu voltarei. — ele disse, com dificuldade. — Quando eu descobrir o motivo pelo qual estou caminhando. E eu não deixarei você só.
Assim, ele se virou e caminhou, desaparecendo na floresta azul. Seus passos, embora mancados, eram firmes. Ele não olhou para trás.
A fada, deixada sozinha na escuridão do castelo, perdeu as forças para voar. Ela caiu no chão de pedra e, sem saber direito o motivo, talvez pela promessa, talvez pela primeira gentileza em séculos, começou a chorar. Seus soluços pequenos e solitários foram a única coisa viva que restou nas ruínas.
Parte 5
Uma garota coberta por um manto corria desesperadamente para fora da cidade, em direção ao campo aberto antes da floresta, o ar fresco da noite carregado com o cheiro de cristal úmido e flores etéreas, mas de repente o chão à sua frente borbulhou com um gorgolejo viscoso. Um líquido negro pegajoso disparou do chão como um tentáculo vivo, serpenteando pelo ar com um sibilo úmido, agarrou sua perna e a puxou para o alto com um thwip nojento, deixando-a pendurada de cabeça para baixo, balançando como um pêndulo invertido, o sangue subindo à cabeça enquanto ela girava levemente.
Dois homens se aproximaram, rindo, o som arrogante ecoando entre as árvores como um deboche ecoado, inclinando-se para frente com as mãos nos joelhos enquanto observavam a cena. Eram os mesmos do restaurante, trocando olhares cúmplices.
— Olha só, irmão! Bandida capturada! — disse o mais esguio, apontando com o dedo e dando uma cotovelada no companheiro.
— Você teve muito azar de roubar logo quando nós estávamos lá, gracinha — respondeu o maior, cruzando os braços grossos e inclinando a cabeça para o lado com um sorriso sarcástico.
Ela tentava se soltar, se contorcendo violentamente, os músculos das pernas tensionando enquanto chutava o ar, mas o laço era forte, apertando como uma serpente viva, e os irmãos riam, batendo palmas leves em zombaria.
— Vamos logo ver quem era essa tal bandida — murmurou o esguio, virando-se para o irmão com uma piscadela.
Um deles, impaciente, estendeu a mão com garras de Éter que faiscavam azuladas, e rasgou o pano que a cobria com um puxão rápido, o tecido se rasgando com um som seco.
A garota diante deles era uma mistura desconcertante de realeza e estilo urbano, pendurada ali com os cabelos magenta avermelhado caindo como uma cascata invertida. Seus longos cabelos magenta avermelhado, presos por laços roxos, eram adornados por uma coroa dourada e pontiaguda que balançava levemente. Ela usava um casaco bege folgado, caído sobre os ombros, revelando uma regata branca simples e shorts pretos justos, cingidos por um cinto de ouro que tilintava com o movimento. Seus olhos azuis, mesmo de cabeça para baixo, brilhavam com uma confiança inabalável, fixando-se neles com desafio.
Os irmãos pararam de rir por um segundo, analisando-a, o choque visível em seus rostos enquanto trocavam um olhar rápido, as sobrancelhas erguidas.
— Olha só... pelo Éter dela, é um Pesadelo — murmurou o maior, inclinando a cabeça para o lado enquanto semicerrava os olhos.
— Pois é, irmão. Parece que ninguém ensinou a ela o que acontece quando os Pesadelos entram nos Reinos dos Sonhos. Ainda mais as bonitinhas como ela — respondeu o esguio, cruzando os braços e dando um passo à frente com um sorriso torto.
A garota, ainda pendurada, bufou, soprando uma mecha de cabelo do rosto com um sopro rápido, inclinando ligeiramente o corpo para encará-los melhor.
— Quanto mais vocês planejam me deixar presa aqui em cima? — perguntou ela, erguendo uma sobrancelha apesar da posição desconfortável.
Ela apontou o dedo indicador, alinhando a mira com precisão mesmo invertida, os músculos do braço tensionando. Uma pequena quantidade de Éter azul disparou, voando na direção deles como um dardo luminoso. Os irmãos desviaram, inclinando-se para os lados com movimentos sincronizados, e o disparo atingiu o líquido negro que a prendia, dissolvendo-o instantaneamente com um chiado ácido, bolhas efervescentes subindo no ar. Ela caiu no chão, girando no ar com um rodopio controlado e aterrissando com agilidade felina, em uma postura agachada, os joelhos flexionados para absorver o impacto.
— A sua engraçadinha! — o outro irmão rosnou, endireitando a postura com os punhos cerrados. — 'Tá mesmo querendo nos irritar?
Ele criou uma espada de Éter azul em sua mão, a lâmina distorcendo o ar ao redor com um zumbido baixo, e a jogou na direção dela como um dardo mortal, o braço estendendo-se em um arremesso fluido. Ela olhou por cima do ombro, seus olhos se arregalando ao perceber que o golpe vinha rápido demais, girando o corpo instintivamente para tentar desviar. Ela não teria tempo de desviar, o ar assobiando com a aproximação da lâmina.
Quando, de repente, o garoto apareceu, emergindo das sombras da floresta como uma visão espectral.
Ele irrompeu da lateral da floresta, um borrão de trapos e sujeira, os pés pisando forte no musgo. Ele saltou sobre a garota, que não teve tempo de reagir, piscando surpresa, e a empurrou para o chão com o peso de seu corpo, os dois caindo juntos em uma pilha desajeitada, fazendo-a se abaixar forçadamente.
ZIIING!
A espada de Éter passou zunindo por cima de suas cabeças, o som cortando o ar como um chicote, e se cravou em uma árvore, que imediatamente começou a apodrecer ao redor do impacto, a casca escurecendo e rachando com um crepitar baixo. Os dois irmãos pararam, confusos, trocando olhares rápidos com as sobrancelhas franzidas.
— Ela tem companheiros? — murmurou o esguio, inclinando a cabeça para o lado enquanto avaliava o novo intruso.
A garota se levantou, empurrando o garoto de cima dela com as mãos nos ombros dele, endireitando a postura com um suspiro ofegante.
— Não sei quem é você, mas... agradeço de verdade — disse ela, virando-se para ele com um aceno rápido de cabeça.
Mas quando ela viu o estado dele — sujo, esquelético, coberto de feridas secas e um corte feio com sangue novo na cabeça, escorrendo pela têmpora — ela entrou em choque, piscando devagar enquanto estendia a mão hesitante.
— Meu... meu deus! Você está bem?! — perguntou, inclinando-se para frente com as mãos pairando perto dele, como se quisesse tocá-lo mas temesse machucá-lo mais.
Os dois irmãos, vendo aquilo, começaram a rir alto, uma risada debochada que ecoou pelo campo, inclinando-se para frente com as mãos na barriga.
— Hahaha! O que é isso? — zombou o maior, apontando com o dedo trêmulo de tanto rir.
— Ele está tão magro e ferido que só o ar já deveria derrubar ele! — acrescentou o esguio, limpando uma lágrima falsa do canto do olho.
Eles se aproximaram, agora confiantes, suas posturas relaxadas, os passos casuais pisando na grama úmida.
— Ei, pirralho. Saia daqui. Temos assuntos para resolver com essa garota — disse o maior, gesticulando dismissivamente com a mão como se espantasse uma mosca.
O garoto olhou para ela, virando a cabeça devagar, depois olhou para eles, inclinando ligeiramente o corpo. Seus olhos estavam vazios, apáticos, fixos neles sem piscar. Lentamente, ele tirou sua espada-galho da cintura improvisada, o movimento calmo, quase ritualístico, os dedos sujos envolvendo o cabo com firmeza.
Os irmãos riram ainda mais, trocando cotoveladas leves enquanto observavam.
— O que ele acha que vai fazer com isso? Tocar em nós? — zombou o esguio, inclinando a cabeça para o lado com um sorriso sarcástico.
A garota, no entanto, levantou-se confusa, tentando entender algo enquanto olhava para o garoto, semicerrando os olhos e inclinando a cabeça para analisar melhor. Os dois pararam de rir abruptamente, vendo que ele ainda os encarava com a mesma expressão apática, sem medo, sem raiva, endireitando as posturas com uma pitada de inquietação.
— Ei... — um dos irmãos disse, seu tom agora sério, a diversão sumindo enquanto cruzava os braços, semicerrando os olhos. — Você percebeu? Ele não tem marcas.
— Marcas? — perguntou o outro, virando a cabeça para o companheiro com uma sobrancelha erguida.
— Nem pretas, nem brancas. Pelo corpo. E o Éter dele... eu não sinto nada. Ele não é um Prim.
Eles se entreolharam, a confusão se transformando em cautela, trocando um aceno sutil de cabeça.
— O que você é, garoto? Um Sonho ou um Pesadelo? — perguntou o maior, inclinando-se para frente com os punhos cerrados ao lado do corpo.
O garoto continuava na mesma posição, a espada-galho apontada para baixo, os dedos apertando levemente o cabo. A garota, atrás dele, murmurou baixinho, inclinando-se para o lado para observá-lo melhor:
— Ele... ele tem razão. Ele não é nenhum dos dois.
Irritados com o silêncio, um deles gritou, dando um passo à frente com o braço estendido:
— Maldito! Não vai responder?
— Talvez ele seja só um animal em forma humana que saiu da Floresta dos Sonhos — sugeriu o outro, inclinando a cabeça com um sorriso forçado.
— É. Concordo. Chegou a hora de ensinarmos uma lição a esse animal, então — respondeu o primeiro, estalando os nós dos dedos.
A garota, vendo o perigo, puxou o garoto pelo manto, os dedos envolvendo o tecido puído com urgência.
— Vem, vamos! — disse ela, virando o corpo e começando a correr, arrastando-o inicialmente.
Ela o puxou e começou a correr, os pés pisando forte na grama. Ela ficou surpresa com a facilidade com que o pegou; ele era tão leve quanto uma pluma, o corpo dele cedendo ao puxão sem resistência.
— Não adianta correr! — gritou o irmão atrás deles, inclinando-se para frente com um sorriso predatório. — Para nós, Cavaleiros Reais, cuidar de uma ladra e um animal selvagem é muito fácil!
A garota, correndo, entrou em pânico ao ouvir aquilo, tropeçando levemente enquanto olhava por cima do ombro, os olhos se arregalando.
— Cavaleiros... Cavaleiros Reais?! — murmurou ela, apertando o passo.
O irmão usou sua habilidade e lançou outra espada feita de Éter azul na direção dos dois, estendendo o braço em um arremesso fluido, esta assobiando mais rápido que a primeira, cortando o ar com um zumbido agudo.
— Droga! — a garota gritou, olhando para trás enquanto corria, tentando calcular se conseguiria desviar, virando o corpo ligeiramente para preparar uma esquiva.
Mas o garoto, em suas mãos, deslizou, largando o pedaço de sua antiga jaqueta que ela segurava, o tecido escorregando dos dedos dela. Ele correu. Não para longe. Mas na direção da espada, impulsionando-se para frente com passos decididos.
— Ele é suicida! — o irmão zombou, inclinando a cabeça para trás com uma gargalhada curta.
Mas o garoto não se abalava. Ele correu sem medo, seus olhos vazios agora focados na lâmina que se aproximava, os músculos tensionados. Usando sua espada de madeira, ele girou o corpo em um movimento que parecia impossivelmente rápido para seu estado, o ar assobiando ao redor dele. Ele bateu no cabo da espada de Éter no momento exato, o galho conectando com um estalo seco.
CRACK!
O som de madeira batendo em energia pura ecoou, vibrando pelo ar. O galho não quebrou. Ele redirecionou a lâmina para outra direção, a espada desviando com um zumbido irregular. A espada negra voou e se cravou em uma rocha, quebrando-a com um estrondo, fragmentos voando como poeira.
O irmão ficou sem acreditar, de boca aberta, piscando devagar enquanto processava.
Antes que ele pudesse reagir ou sequer invocar outra arma, o garoto já estava na frente dele, cobrindo a distância em um piscar. O espaço entre eles desapareceu. Ele acertou o homem com a espada-galho bem na nuca, com toda a força que seu corpo magro podia reunir, o impacto ecoando com um baque surdo. O homem caiu no chão, inconsciente, rolando levemente na grama.
O outro irmão notou, chocado, piscando rapidamente enquanto virava o corpo para encarar a cena, a boca se abrindo em surpresa. Antes que ele pudesse reagir, o garoto mirou nos pontos fracos tanto da espada em movimento quanto do irmão para suprir a propria fraqueza, inclinando ligeiramente a cabeça como se calculasse o próximo movimento. Mas ele sorriu, um sorriso cruel que curvou seus lábios enquanto cerrava os punhos.
— Eu notei... ele realmente é um animal. Só pode ser isso. Afinal, ele fez tudo isso…. sem nem usar Éter.
O garoto se virava para ele, sua respiração pesada, mas o rosto ainda apático, endireitando a postura com o galho-espada ao lado do corpo. O irmão bateu a mão no chão com um tapa seco, o impacto reverberando.
— Tolo!
O líquido preto explodiu do solo, borbulhando como um gêiser viscoso, prendendo o garoto facilmente, envolvendo seu corpo e começando a apertar com um squish úmido. Ele não teve tempo de reagir, o tentáculo se enrolando como uma cobra. O garoto se contorceu de dor, seus ossos estalando audivelmente, gemendo baixinho enquanto tentava se libertar. O outro irmão finalmente relaxou, rindo do garoto, inclinando-se para frente com as mãos nos joelhos.
— Ele quase me fez ficar com medo. Mas agora não resta dúvida. Ele não consegue usar Éter.
— Mas eu sei!
A garota, ao longe, gritou, erguendo o braço com determinação. Um enorme chakram dourado, que não estava lá antes, apareceu flutuando ao lado de seu braço estendido, girando lentamente no ar com um zumbido baixo, com um giro rápido do pulso, se transformou em um arco gigante, o metal reluzindo sob a luz azulada. Ela esticou os dedos do polegar e indicador, alinhando a mira com precisão, e disparou uma flecha de Éter azul, o projétil faiscando enquanto cortava o ar.
A flecha atingiu o outro irmão em cheio no peito, explodindo em impacto com um clarão cegante e lançando-o para longe, o corpo girando no ar antes de colidir com o chão em uma nuvem de poeira. Com o conjurador nocauteado, o laço de éter negro se dissolveu com um chiado, libertando o garoto, que caiu no chão, ofegante, rolando levemente para o lado enquanto recuperava o fôlego.
Ela correu, mas não para o garoto, os passos rápidos pisando na grama úmida. Ela correu até o irmão caído e começou a vasculhar os bolsos dele, as mãos ágeis revirando os tecidos com urgência, inclinando-se sobre o corpo inerte.
O garoto ficou encarando, piscando devagar enquanto se sentava, os olhos fixos nela com curiosidade vazia.
— Ei! — ela falou, sem tirar os olhos do que fazia, virando ligeiramente a cabeça para encará-lo por cima do ombro. — Antes que você tenha a ideia errada, estou confirmando se eles têm mesmo uma Insígnia Real.
Depois de checar, ela se levantou, frustrada, endireitando a postura com um suspiro irritado e chutando levemente o chão.
— Não tem nada! Malditos! Estavam mesmo se passando por Guardas Reais!
Ao escutar aquela palavra — "Guardas Reais" — a cabeça do garoto começou a doer de novo, uma dor lancinante que o fez pressionar as têmporas com as mãos sujas. Ele balançou, tonto, inclinando o corpo para o lado como se o mundo girasse.
A garota viu ele balançando e correu, o ajudando e o apoiando com os braços ao redor dos ombros dele, inclinando-se para sustentar seu peso.
De repente, uma sirene alta começou a tocar, vinda da cidade Oníria, um som penetrante que ecoou pelo campo como um alarme vivo, fazendo as árvores tremerem levemente.
— Droga! — ela gritou, virando a cabeça para a cidade distante com os olhos arregalados. — Agora eles sabem que eu estou aqui! E que sou um Pesadelo! Por isso eu não queria usar muito Éter tão próxima da cidade!
O garoto, em seus braços, finalmente cedeu à exaustão e à dor, os olhos se fechando devagar enquanto o corpo amolecia. Ele desmaiou, a cabeça pendendo para o lado.
— Ei! Ei! Você está bem?! — ela o segurou, sacudindo-o levemente pelos ombros, mas vendo o estado de seu corpo, sentiu que já tinha a resposta, mordendo o lábio enquanto avaliava as feridas.
A sirene foi ficando mais alta, e luzes começaram a piscar ao longe, flashes azuis iluminando o horizonte. Ela olhou para o garoto inconsciente, para a floresta escura e para a cidade que se aproximava em ameaça.
— Droga! Agora não tem mais escolha! — murmurou ela, ajustando o garoto em seus braços com um grunhido de esforço.
Parte 6
O cheiro de fumaça e ervas medicinais o atingiu antes mesmo que ele abrisse os olhos. O mundo estava embaçado, sua cabeça latejando com uma dor surda. O último som de que se lembrava era... um choro.
O garoto acorda em um pulo, mas o movimento brusco envia uma onda de dor por seu corpo. Ele solta um gemido baixo, a mão indo instintivamente para o ferimento em sua cabeça, sentindo a textura estranha de um pano limpo.
Ele estava de volta à floresta azul, o ar frio contrastando com o calor de uma fogueira crepitante à sua frente. As chamas etéreas habituais da floresta pareciam manter distância deste fogo real, laranja e amarelo. Ele olhou em volta e viu a garota de cabelos magenta dormindo, encolhida perto das chamas.
Ele a reconheceu. A garota-ladra da cidade. Eliza. Sua mente confusa tentou juntar as peças. Ele estava nas ruínas... a fada... a aranha... e depois... escuridão.
Ele se levantou, seus membros fracos, protestando com a súbita falta de sangue, e se aproximou dela. Ele só queria ver se ela estava realmente ali, ou se era outro sonho estranho.
No momento em que deu um passo, ZIIIING.
O som rasgou o ar, agudo e metálico. Mais rápido que o olho. O chakram dourado dela voou do nada, parando a centímetros do pescoço dele, girando no ar. A borda afiada da arma brilhava à luz do fogo, tão perto que ele podia sentir a vibração dela em sua pele. O garoto congelou, nem mesmo piscando.
A garota começou a acordar, abrindo um olho. Um olho verde-esmeralda sonolento, mas perigosamente focado. — Péssima ideia, pirralho — ela bocejou. O bocejo foi interrompido por um sorriso preguiçoso. — Se acha que vai ser fácil me pegar de surpresa, saiba que não vai. Um passo em falso e a Lyra vai te cortar em dois.
O garoto ficou encarando ela com o mesmo semblante vazio. Ele olhou em volta, para a floresta, e depois para ela.
— Se quer saber quem te trouxe de volta pra floresta, fui eu. — ela disse, sentando-se e se espreguiçando. Ela esticou os braços acima da cabeça com um gemido satisfeito, os músculos das costas se definindo sob a roupa. — Precisávamos escapar da cidade, e eu precisava tratar esses seus ferimentos. Lá não ia dar certo.
Foi quando ele percebeu. Ele olhou para baixo. Ele estava com algumas bandagens limpas enroladas em sua cabeça e braço. Eram de boa qualidade, brancas contra sua pele suja. Ele olhou para ela e, com a voz rouca, disse:
— ...Obrigado.
O chakram dourado parou de girar. Ele caiu da mão dela, que o pegou no ar com um movimento fluido.
Ela ficou surpresa. — Ah. Então você sabe falar. — Ela se levantou, limpando a poeira da roupa. Ela era mais alta do que ele se lembrava, ou talvez ele estivesse apenas mais fraco. — Mas não precisa agradecer. Eu apenas não queria ficar devendo pra você. Eu não faço favores de graça, mas também odeio ficar devendo.
O garoto então se levantou com esforço e, como antes, começou a se afastar, indo para a escuridão. Seu único propósito retornando: caminhar.
— Ei! Para aí! — ela falou. O ZIIING foi ainda mais rápido desta vez. O chakram voou de novo, parando na frente dele. Ele se enterrou no tronco de uma árvore azul logo à frente de seu rosto, vibrando com força. — Agora que eu sei que você fala, eu quero que me explique: quem diabos é você?
O garoto olhou para ela, sem responder. Ela ficou encarando ele nos olhos, mas ele nem piscou. Foi um impasse. O silêncio da floresta contra a teimosia dela.
Ela suspirou, frustrada, revirando os olhos, e afastou Lyra. O chakram voou de volta para sua mão com um estalo. — Entendi. Você realmente não parece ter medo. Nem mesmo da morte. Sendo assim, ameaçar não vai levar a nada.
Ela foi até sua bolsa. Uma mochila de couro pequena, que parecia impossível conter qualquer coisa de valor. — Ao invés disso... — ela disse, com um sorriso astuto. Seus olhos brilhavam com travessura. — ...não está disposto a negociar?
Ela puxou uma marmita de sua bolsa. Uma marmita que parecia bem maior que a própria bolsa. Ela a tirou com um puxão teatral, como um mágico tirando um coelho da cartola. Ela a abriu.
Um 'clique' de plástico. E então, o aroma. Um cheiro delicioso de arroz quente e carne cozida subiu com o vapor, fazendo o garoto babar instantaneamente. Ele engoliu em seco, a saliva de repente inundando sua boca seca. Seu estômago, que estava silencioso por dias, acordou com violência. Seu estômago roncou tão alto que ecoou na floresta.
Ele sentiu o rosto esquentar de vergonha, mas a fome era mais forte.
Ele começou a se aproximar, hipnotizado. Seus olhos, antes vazios, agora estavam fixos na comida com uma intensidade desesperada.
— Opa! — ela o parou. Ela levantou a mão, e ele parou como se tivesse batido em uma parede invisível. — Estou disposta a dar para você, caso você concorde em conversar.
Ele se aproximou, balançando a cabeça vigorosamente. Um aceno rápido e faminto.
— Já disse! — ela falou. Ela balançou a marmita, e o cheiro o atingiu novamente. — Quero ouvir você falando.
Ele parou, engolindo em seco. Sua garganta estava apertada pela fome e pelo desuso.
— ...Eu... aceito.
— Hmm. Não 'tô sentindo honestidade nessa fala.
Ele olhou para a comida, desesperado. Ele podia sentir o calor dela mesmo à distância. — Por favor. Me dê um pouco de comida... em troca de falar com você.
Ela sorriu. — Assim 'tá começando a ficar legal. — Ela se sentou em uma pedra. — Agora, se ajoelhe na minha frente.
Ele fez. Automaticamente. Seus joelhos bateram no chão de musgo sem hesitação.
— Agora, me dá a patinha.
Ele levantou a mão, confuso, sua mão suja e trêmula pairando no ar, mas desesperado pela comida.
Ela riu alto. — Que obediente! Certo, você pode comer.
Ela deu a comida para ele. O garoto começou a comer desesperadamente, enfiando a comida na boca com as mãos sujas. Ele nem mesmo usou os hashis que estavam presos ao lado. Ele agarrou punhados de arroz e carne, gemendo baixinho. Logo em seguida, ele começou a engasgar.
— Calma, calma. — Ela deu um tapa nas costas dele, um pouco mais forte do que o necessário. Ela retirou uma garrafa de suco da bolsa — outra impossibilidade dimensional — e deu para ele também. Ele bebeu avidamente, o suco escorrendo pelo queixo.
Ela começou a assistir enquanto ele comia, sorrindo. Mas seu sorriso foi sumindo, substituído por uma expressão mais suave, quase terna, e ela ficou meio triste vendo o estado do corpo magro dele, as costelas visíveis sob a jaqueta rasgada, a forma como ele tremia, a desnutrição evidente.
Quando ele diminuiu o ritmo, finalmente capaz de respirar entre as mordidas, ela começou. — Certo. Quem é você?
Ele respondeu, entre mordidas: — Não sei. Não lembro. Um dia, eu acordei... perto da floresta. Do outro lado.
— Mentira. — ela disse, séria. — É impossível alguém cruzar a Floresta dos Sonhos.
Ele parou de responder, apenas comendo. Ele baixou os olhos para a comida, escondendo-se atrás da tarefa de comer. Ela olhou para ele e pensou que, apesar disso, ele era uma incógnita ambulante. Talvez pudesse até ser verdade.
— Você realmente não consegue usar Éter?
— ...O que é Éter?
— Certo. Já consigo saber a resposta. — Ela suspirou. — Você ao menos é um Prim?
Ele continuou olhando confuso. Ele mastigou mais devagar, a exaustão tomando conta agora que a fome estava sendo saciada.
— Você realmente é só um mistério ambulante... — ela reclamou. — Não foi uma troca justa. Eu não descobri nada!
Ele continuou comendo. Ela olhou para o céu azulado. As "estrelas" de Morpheus, que eram apenas mais bolhas flutuantes, brilhavam suavemente.
— O que você vai fazer agora?
— Vou continuar caminhando.
— Pra onde?
— Também não sei.
Ela o encarou. Ele terminou o último grão de arroz e olhou para a marmita vazia com uma tristeza palpável.
— Você tem alguém?
Ele parou de comer. Colocou a marmita, agora vazia, no canto. O gesto foi lento, final.
— ...Não….
O único som era o crepitar da fogueira. A palavra pairou no ar, pesada e fria.
Ela ficou olhando para ele por um longo tempo. — Por que você não vem comigo?
Ele olhou para ela, surpreso. Sua cabeça se levantou bruscamente, seus olhos vazios mostrando a primeira centelha de confusão real. — Por que... você está me ajudando?
— Quê?! — ela ficou vermelha. Um tom magenta brilhante que subiu de seu pescoço até as orelhas. — 'Tá imaginando coisa! Eu não 'tô te ajudando! Isso é... só uma negociação! — Ela se apressou em dizer. — Na verdade, eu sempre quis ter um ajudante. E também... eu senti que gostaria de ter um cachorrinho, mas seria difícil no meu ramo.
— ...Ramo de bandida?
— Eu não sou uma bandida!
— Você roubou a cidade.
— Sim, mas foi apenas um evento solto!
Ele continuou olhando para o vazio. Ela viu que ele não estava convencido, e começou a olhar para a fogueira, cutucando as brasas com um graveto, pensando que era verdade. Ele não tinha razão para confiar nela do nada. E ela não o julgava.
Ela falou baixo, quase murmurando para si mesma: — Não posso prometer que não vai ter dias difíceis. Nem posso prometer uma vida sossegada. Mas... ao menos uma fatia de pizza e refrigerante pode acontecer. — Ela fez uma pausa. O fogo estalou, lançando faíscas. — E também... você não teria que ficar sozinho.
A última frase o atingiu. Sozinho. A palavra que ele mais temia, a que ele sussurrou na caverna.
O garoto olhou para ela. Ela estava olhando para o fogo, parecendo quase tímida. O reflexo das chamas dançava em seus olhos verdes.
— ...Pode ser.
Ela se virou, um sorriso enorme no rosto. A timidez desapareceu, substituída por um entusiasmo explosivo. — Perfeito! Certo! Amanhã de manhã eu mostro a nova "casa" pra ele! — Ela bateu palmas. — E acho que eu deveria escolher um nome pro meu novo cachorrinho!
O garoto ergueu uma sobrancelha. Uma expressão lenta, enferrujada, mas definitivamente lá.
— Essa parte... era séria?
— Óbvio que era!
E assim, os dois, uma princesa ladra e um garoto sem memória, ficaram conversando enquanto a noite passava na floresta azul. Ele não falou muito, mas pela primeira vez em muito tempo, o silêncio não parecia tão vazio.
Parte 7
O primeiro som é o rugido abafado do oceano, como se estivesse sendo ouvido debaixo d'água. Em seguida, o som áspero de areia molhada. caída na praia uma mão se fechava, os nós dos dedos brancos, na areia encharcada.
De repente o dono dessa mão, Dante começa a despertar e se vira de lado, vomitando água do mar.
Ele começa a enxergar tudo embaçado, mas nota a garota ao seu lado. Uma mancha escura contra a areia pálida. Ele se arrasta até ela, seus membros pesados e encharcados, a exaustão quase o vencendo, mexendo nela, tentando despertá-la. — Ludmilla! Ei, Ludmilla, acorda!
Ela começa a tossir violentamente, cuspindo água do mar, mas acorda. Seus olhos se abrem, selvagens e confusos, enquanto ela luta por ar.
Dante continuava limpando os olhos, a água salgada ardendo. O mundo era um borrão de luz e cor. Ele piscou, e de repente, o foco se ajustou. Quando ele finalmente olha para frente, não acredita no que vê.
Seu corpo congelou. A mão que ele usava para limpar o rosto parou no ar.
— Ludmilla... — ele murmura, atordoado. — O quão confiante você é nos seus olhos?
Ludmilla, sentindo uma forte dor de cabeça, se senta. Ela geme, pressionando a palma da mão contra a têmpora. — Do que... do que você 'tá falando?
— Eu 'tô vendo algo... — ele diz, apontando. Seu braço estava pesado, mas ele o ergueu, o dedo tremendo. — Mas eu não sei dizer se posso confiar nos meus olhos.
Confusa, Ludmilla olha para onde ele estava olhando. E assim, ela vê algo inacreditável.
Uma cidade brilhante. Suas construções, de um mármore branco luminoso, lembravam vagamente a arquitetura grega, mas era tanto quanto mágica. Parecia brilhar de dentro para fora, contra um céu de um azul profundo e estranho. Havia rios de água cristalina correndo por toda a cidade desafiando a gravidade em meio ao ar. Bolhas gigantes flutuavam ao fundo, iridescentes como sabão, perto de onde se via uma enorme roda gigante que girava lentamente. Era uma cidade branca e brilhante, como algo saído de um sonho. O som distante de sinos melódicos flutuava na brisa salgada.
— Onde... — Dante ia se levantando. Ele se apoiou nos joelhos, a água escorrendo de suas roupas. — Onde a gente 'tá?
Ludmilla encarava, também sem acreditar no que estava vendo. Eles então começam a sair da água, tropeçando, completamente desorientados, como sobreviventes de um naufrágio, quando, de repente, uma mulher se aproxima. Ela não veio da cidade; ela parecia ter simplesmente aparecido na linha da maré, seus pés descalços. Ela tinha cabelos amarelos brilhantes e usava roupas brancas simples.
— O que vocês dois estavam fazendo ali na água?
Dante e Ludmilla se entreolham. — A gente também não tem ideia.
E assim o tempo passa.
A garota os ajudou. Ela os levou para dentro da cidade brilhante e encontrou novas roupas para eles, já que as suas estavam encharcadas. A cidade era cheia de alegria, habitada por pessoas de rostos serenos que mal pareciam notá-los. O ar cheirava a ozônio e flores desconhecidas. Ela os ajudou, levando-os até sua casa, uma estrutura arejada, cheia de cortinas brancas e luz suave, onde podiam se trocar.
Dante, em um dos quartos, olhava pela janela e via a mulher que os ajudou, lá fora no jardim, esperando. Ela estava parada, perfeitamente imóvel, olhando para uma flor azul que ele nunca tinha visto antes.
Ele fala meio baixo, sua voz um sussurro tenso que mal atravessa a parede, para ver se Ludmilla podia ouvir do outro quarto: — Ludmilla?
— Sim — ela responde. Sua voz também abafada, do outro lado.
— Você tem ideia do que 'tá rolando?
— Só posso imaginar — ela fala, do outro cômodo — que fomos puxados pelo portal que aquela mulher e a "Anna"... haviam ativado.
Dante passa a mão no rosto em frustração. Ele se vira da janela, batendo de leve a testa contra a parede fria. — Eu tinha imaginado isso, mas não queria acreditar. — Ele respirou fundo, soltando o ar, exasperado.
— Você faz ideia de onde a gente 'tá? — Ludmilla pergunta.
— Suponho que estejamos em Morpheus. Como aquela mulher possuindo o corpo de Anna havia chamado.
Dante pensou consigo mesmo — “...aquela avatar maluca que eu encontrei também tinha falado algo sobre eu acabar indo pra Morpheus."
— Morpheus? — Ludmilla fala, saindo do quarto dela, já com roupas secas e novas. — Eu nunca ouvi falar de nenhum lugar assim. E olha que eu já investiguei muito os mapas de outros reinos.
— Eu também, e também não faço ideia — Dante diz, saindo de seu quarto. — Talvez seja uma outra dimensão. Ou um universo de bolso, Pode até mesmo ser uma black box como o País das Maravilhas. Mas a gente precisa investigar antes de tirar qualquer conclusão.
Dante também pensava que aquele lugar era bem diferente da "Cidade Meia-Noite" de seus pesadelos. Este lugar era luz; seu pesadelo era sombra. Mas ambos pareciam... errados.
Eles se encontram no corredor.
— O que a gente faz? — Ludmilla pergunta, cruzando os braços. — Escapamos da nossa "nova amiga"?
— Ainda é cedo — Dante fala. colocando a mão nos bolsos, surpreendentemente relaxado. — Cedo para dizer que ela é o impostor. Normalmente você espera umas rodadas antes de apontar o dedo pros amiguinhos.
Ludmilla fica encarando ele.
— que que foi?
— Eu só reparei agora... mas você está um pouco diferente.
— Diferente como?
— Logo antes de sermos pegos pelo portal, você estava meio desesperado e nervoso. Mas agora... parece totalmente calmo. Relaxado.
Dante pensa por um momento e dá de ombros. — Eu também reparei. Mas acho que foi só eu percebendo que não tinha que me desesperar. As coisas vão se resolver com calma. Afinal, o protagonista já está em ação.
Ele sorri. Um sorriso fácil, confiante, que não combina com a situação. Assim eles começam a descer as escadas.
Ludmilla achava aquilo estranho. Ela não lembrava dele sendo tão confiante assim antes. Mas ela guarda essa parte para si. Ela o segue, mas mantém uma distância de um passo, observando-o com cautela.
— Mas... tinha outra coisa que eu reparei — ela fala.
— O quê?
— Seus olhos. Ambos... estão vermelhos.
Dante para no meio da escada, confuso. Seu sorriso vacila. — O quê?
Ele pula por cima do corrimão, aterrissando com um baque surdo no chão de madeira, indo em direção a um espelho que tinha visto no primeiro andar. Ele olha, sem acreditar. Ele se aproxima do espelho, seu rosto a centímetros do vidro.
Era verdade. Ambos os seus olhos, que antes eram um azul e um vermelho (e que recentemente ficaram totalmente azuis), agora estavam totalmente vermelhos. Um vermelho rubi, profundo e brilhante. Como duas luzes de aviso.
Dante começa a colocar a mão na cabeça, se perguntando o que estava acontecendo. — Primeiro ficaram totalmente azuis... agora totalmente vermelhos...
Enquanto mexia no cabelo, ele nota outra coisa. Seus dedos param. Eles traçam uma linha abaixo da franja. Ele congela. Em sua testa, logo abaixo da franja, havia dois pequenos calombos duros. Chifres. Que não deviam estar lá. Pequenos, mas inegavelmente pontudos, como dentes crescendo no lugar errado.
— Dante? — Ludmilla se aproxima, sua voz agora cheia de preocupação real, perguntando se ele estava bem.
Ele rapidamente abaixa a franja, cobrindo a testa. Um movimento brusco, quase culpado.
— Sim. 'Tô bem.
Ele se vira, forçando um sorriso. O sorriso não alcança seus novos olhos vermelhos. É uma máscara. Ambos vão até a porta, onde a garota que os ajudou estava esperando. Dante pensava que era melhor deixar essa parte dos chifres para lá. Não precisava preocupar Ludmilla sem motivos.
Parte 8
Uma bolha de sabão flutuava até o céu e em seu reflexo distorcido, dava para ver Dante e Ludmilla caminhando pela cidade cintilante.
Ao saírem da casa ambos conseguiram ver sua misteriosa salvadora. Philia estava brincando com algumas crianças pequenas perto da calçada, ajudando-as a pegar bolhas de sabão que flutuam baixo. Sua risada era leve e clara, misturando-se com os sinos distantes da cidade.
Antes de se aproximarem, Ludmilla e Dante observam o lado de cima. Eles param por um momento, dois pontos de quietude e suspeita em meio a um mar de movimento sereno. Algumas pessoas cavalgavam em carruagens douradas, movidas por cavalos brancos que mais pareciam nadar em meio ao ar, como se o céu fosse um oceano. Eles batiam as patas em um movimento lento e rítmico, como se estivessem em um trote subaquático, sem fazer som algum.
As pessoas estavam todas alegres, com visuais únicos e próprios; as roupas, em maioria, eram brancas com detalhes dourados. Elas pareciam nem se importar com os dois recém-chegados, continuando a comprar em lojas abertas e a se divertir. Um casal brindava com taças de cristal que pareciam cheias de luz líquida; um homem-brinquedo, feito de madeira polida, ajudava a empilhar frutas.
Dante e Ludmilla encaram tudo com os olhos cheios de curiosidade. Os olhos recém-vermelhos de Dante se estreitaram, varrendo a arquitetura, as pessoas, as saídas. Seus instintos de caçadores estavam afiados. Ludmilla se aproximou de Dante. Ela falou sem mover os lábios, mantendo o olhar fixo em um dos cavalos flutuantes.
— O que você acha?
— Não é muito diferente de algumas cidades de Elysium... isso em um primeiro olhar. — Dante respondeu, baixo. Sua voz um murmúrio que mal cortava o som ambiente de alegria. — Mas quando você concentra mais, nota que os cavalos não estão flutuando. Eles realmente parecem estar nadando e carregando as carruagens com tranquilidade. Algumas pessoas parecem ser brinquedos... e ninguém parece ter qualquer preocupação.
Era isso que mais o incomodava. A falta de preocupação.
Eles continuavam encarando.
— Além disso — Dante continuou —, por algum motivo, eu sinto que o Éter desse lugar inteiro, incluindo o das pessoas, parece ter a mesma propriedade. É totalmente diferente do mundo real.
Ludmilla concordou. Ela deu um leve aceno de cabeça. — É melhor continuarmos apenas observando.
Assim, eles chegaram até a garota. Philia se levantou, com uma graça fluida, se despedindo das crianças, e caminhou até eles com um sorriso gentil. Era um sorriso aberto, sem nenhuma malícia.
— Muito bom! Agora vocês parecem bem melhores. As roupas combinaram com vocês.
Dante e Ludmilla agradecem o elogio. Eles inclinam a cabeça, seus movimentos rígidos e calculados em contraste com a fluidez dela.
— Quem é você? — Dante perguntou, direto. Sem rodeios.
A garota levou a mão à boca, notando seu erro.
— Ah! É verdade! Eu não me apresentei! Meu nome é Philia. Prazer em conhecer.
— Dante.
— Ludmilla.
— Pelo menos vocês sabem seus nomes, então já é um começo! — Philia sorriu. Ela gesticulou para que começassem a andar, e eles a seguiram, mantendo-a entre eles. — Antes de tudo, vocês sabem de alguma outra coisa? Da cidade de onde vieram, por exemplo? Ou o que estavam fazendo antes de aparecerem no mar?
Ludmilla e Dante trocaram olhares por uma fração de segundo, um entendimento silencioso, como se combinasse que deveriam seguir a mesma deixa. Ludmilla deu um passo à frente. Ela assumiu o papel, sua expressão mudou de suspeita para uma confusão vulnerável.
— Não. Eu não lembro de mais nada. Eu só lembro do meu nome, e que... eu conhecia o Dante. E além disso, de ter acordado na praia.
— É o mesmo pra mim — Dante completou. Sua voz neutra, apoiando a mentira.
Philia colocou o dedo no queixo.
— Eu estava imaginando... Até porque, é estranha a situação de vocês. Acordar assim no meio do Mar das Nuvens...
— "Mar das Nuvens..." — Ludmilla pensou, analisando o nome.
— Já teve algum caso parecido registrado antes? — Dante perguntou.
— Nunca ouvi falar. — Philia respondeu. — Mas está tudo bem! Em situações assim, o mais certo a se fazer é levar vocês para conversar com a Sacerdotisa. Ela saberá como lidar com essa situação.
Dante e Ludmilla novamente trocaram um olhar rápido. “Sacerdotisa”. Uma figura de autoridade. O jogo estava ficando mais complexo. Eles começaram a seguir ela.
Enquanto caminhavam pelas ruas de mármore branco, Dante quebrou o gelo. Ele forçou um tom casual, o caçador se fingiu de presa.
— O que você estava fazendo na praia naquela hora? Foi realmente muita sorte termos nos encontrado com você, Philia.
— Ah! — a garota respondeu, animada. — Eu estava só caçando Conchas dos Sonhos!
— Conchas dos Sonhos? — Dante perguntou.
Philia se alarmou, percebendo que eles não sabiam.
— Oh! Mas faz sentido... não é algo muito conhecido nas outras Cidades dos Sonhos. — Ela explicou: — Conchas dos Sonhos são conchas que aparecem na praia do Mar das Nuvens. Com elas, é possível ouvir os sonhos dos "Despertos", se a colocar nos ouvidos. É muito legal! É como escutar uma história de um livro.
— O que é um "Desperto"? — Dante perguntou.
Philia ficou mais perplexa, parando de andar. Ela se virou para eles, seus olhos azuis brilhantes arregalados de genuína surpresa.
— Vocês... esqueceram até disso?
Ela voltou a caminhar. Eles a seguiram, passando por baixo de um aqueduto de onde não caía água, mas sim uma cascata de pequenas luzes.
— "Despertos" e como chamamos as "sombras" que aparecem no Reino de Morpheus. De acordo com a lenda, eles seriam as sombras dos humanos, que vêm a Morpheus em seus sonhos. Mas... ninguém sabe se isso é realmente verdade ou apenas lenda.
Ludmilla começou a pensar. — "Aquele lugar talvez seja algo como a Terra dos Sonhos... o que faz sentido, já que em algumas lendas Morpheus era o deus dos sonhos grego."
Philia continuava caminhando, enquanto eles passavam por pessoas com seus filhos comendo um doce colorido, parecido com sorvete, mas se comportava como nuvem.
— É estranho vocês esquecerem até disso — Philia falou. — Eu achava que era um conto tão comum que deveria ser impossível de ser esquecido. Tipo... o dos Astreus.
O mundo pareceu parar. O zumbido alegre da cidade, os sinos, a risada das crianças — tudo pareceu recuar.
Dante, ouvindo aquilo, parou. Ele parou de andar abruptamente. Ludmilla quase trombou com ele.
— Astreus?
A garota se virou, surpresa. A inocência dela era uma arma contra a qual eles não tinham defesa.
— Não vai me dizer que esqueceram dos Grandes Senhores Astreus também?!
Dante murmurou, com a cara meio fechada: Sua calma recém-adquirida evaporou, substituída por uma cheia de desgosto.
— "Grandes Senhores", é...
Ludmilla entrou na frente. Ela se moveu rapidamente, colocando-se entre Dante e Philia, bloqueando a expressão dele da vista da garota.
— Não! A gente não esqueceu! Só... 'tá meio confuso. Mas é aquilo, os 16 Astreus, não é? Os seres que originaram tudo.
Philia olhou para ela, estranha.
— 16? Do que vocês estão falando? Existem apenas 5 Astreus.
Dante e Ludmilla congelaram. Desta vez, o choque foi mútuo. Eles se entreolharam por cima do ombro.
— Espera, 5? — Dante caminhou, indo pra mais perto. — Certeza?
— Sem dúvidas nenhuma! — Philia respondeu, convicta. — Isso é algo que todo Prim sabe desde o momento em que nasce!
— Quais são eles? — Dante perguntou.
— Obviamente: a Senhorita Morte, a Senhorita Vida, a Senhora Guerra, o Senhor Destino... e Aquele que Originou Tudo, a Senhorita Memória.
Dante caminhava ainda mais confuso. Os nomes eram iguais, mas a contagem era diferente. A hierarquia estava errada. Ele olhou para Ludmilla, que também parecia não estar entendendo nada.
Preocupada, Philia se virou. Ela agora os olhava com uma pontada de pena.
— Não vai me dizer que vocês esqueceram como usar o Éter também?
Ludmilla e Dante pararam.
— “Isso era um teste?” — A preocupação atingiu os dois ao mesmo tempo.
— Não. Eu ainda sei como usar — Dante disse.
— Eu também — Ludmilla concordou.
Philia respirou, aliviada. — Ufa! Menos mal.
— Por quê? — Dante perguntou. Seu tom de caçador de volta. — Existe algo perigoso na cidade?
Philia o encarou, confusa. Depois, riu, entendendo.
— Não! Não é isso! Eu só fiquei preocupada pois a maioria das coisas na cidade funciona a partir do Éter. Então seria difícil viver caso vocês não soubessem utilizar.
— "A maioria das coisas funciona a partir do Éter..." — Dante pensou.
— "Agora faz sentido esse lugar ter um Éter tão forte e intenso..." — Ludmilla olhou em volta.
— Mas vocês não precisam se preocupar! — Philia sorriu, voltando a andar. — Nada de ruim acontece na cidade de Wonder. Afinal... “Ele” está aqui.
A frase pairou no ar. Dante sentiu que acabou de se deparar com uma bandeira vermelha gigante, uma sirene gritando em sua cabeça, mas achou melhor deixar por isso mesmo. Por enquanto.
Assim, eles olharam para frente e repararam no destino para onde ela os levava: Eles saíram da rua principal para uma praça enorme, e lá estava. um gigantesco parque de diversões, com uma roda-gigante no centro e montanhas-russas que mergulhavam nas nuvens. Os trilhos brilhavam como ouro branco, e os carrinhos passavam soltando faíscas coloridas, o som de gritos alegres ecoando.
— Bem-vindos... — Philia apresentou, com os braços abertos. Ela girou no lugar, seu sorriso abrangendo a cena inteira. — ...ao Parque Wonder!
Ludmilla e Dante se maravilharam com a visão de um verdadeiro parque de diversões saído de um sonho. Eles olharam para cima, para a roda-gigante que tocava o céu, e seus rostos, apesar da suspeita, não puderam esconder o genuíno espanto.
Parte 9
O som bateu neles primeiro: uma cacofonia alegre de música de órgão, os gritos agudos de pessoas em alta velocidade e um cheiro adocicado de pipoca.
Eles começaram a andar pelo parque. Philia, animada, foi até uma das barraquinhas coloridas e comprou três sorvetes. — Sorvete de nuvem! — ela entregou a eles.
Dante o pegou com hesitação; Ludmilla o cheirou primeiro, como se procurasse por veneno. Tinha a mesma propriedade etérea de uma nuvem, era doce e delicado. Era inacreditável.
Dante olhou para o sorvete e depois para o parque. Seus olhos vermelhos, analíticos, tentavam encontrar sentido na loucura alegre. — Espera aí. A gente não estava indo atrás da Sacerdotisa?
— Sim! — Philia respondeu, dando uma mordida no seu. — E ela normalmente está por aqui.
Isso deixou Dante meio confuso. Ele imaginava uma pessoa importante, velha e séria, trancada em um templo, guardada por soldados, e agora duvidava. — “Podia mesmo uma pessoa importante passar seu tempo assim, em um parque de diversões?”
Eles caminharam em meio às atrações barulhentas e pessoas se divertindo. O contraste entre a alegria despreocupada ao redor e a tensão de Dante e Ludmilla era palpável. Eles se moviam como predadores, rígidos, enquanto Philia saltitava.
Assim, Philia apontou para um grande carrossel dourado. — Ali! Aquela é a Senhorita Silence!
Dante e Ludmilla se surpreenderam.
O dedo dela, passava por uma montanha-russa que mergulhava em uma nuvem de algodão-doce, até apontar diretamente para a figura. Ela não era nada do que eles imaginavam. Era uma garota pequena, parecendo uma criança, de longos cabelos vermelhos e olhos azuis muito claros. Envolta em um vestido branco e dourado esvoaçante, com uma graça serena e quase irreal.
— SENHORITA SILENCE! — Philia chamou, acenando.
A garota, montada em um cavalo do carrossel que subia e descia lentamente, a avistou e acenou de longe, sorrindo. Mas, ao acenar, ela se desequilibrou e quase caiu do cavalo. O cavalo de madeira desceu, e o impulso quase a ejetou da sela. Ela soltou um pequeno 'eep!' agudo, largando o sorriso e se agarrando desesperadamente. Ela se agarrou no poste do brinquedo, parecendo toda assustada.
Dante e Ludmilla trocaram um olhar que dizia claramente: — "Essa é a Sacerdotisa?"
Um tempo depois, a garota saiu do carrossel, e eles foram até um banco, onde ela começou a respirar fundo, se recuperando do susto de quase ter caído. Sua mãozinha estava sobre o peito, e ela parecia pálida. Ludmilla analisava como a garota era delicada e frágil. Parecia que uma simples brisa poderia a lançar para longe.
— Philia, que bom ver você! — ela disse, sua voz suave como sinos.
— Eu digo o mesmo, senhorita sacerdotisa. Acontece que eles perderam a memória e pensei que, com sua habilidade, a senhorita conseguiria discernir o que eles deveriam fazer. — Philia explicava, enquanto limpava uma mancha de sorvete da bochecha da delicada garota.
— Ela se curvou levemente. — Eu sou Silence. A Sacerdotisa de Wonder.
Ela observou os dois com atenção. Seus olhos claros foram de Ludmilla... até Dante. E ela se surpreendeu.
— Você!
Dante e Ludmilla saltaram para trás, instintivamente em guarda, Ludmilla colocando a mão no quadril onde sua arma deveria estar, Dante flexionando os joelhos, pronto para ativar seu Éter, se perguntando se ela havia descoberto quem eles eram. Mas Silence apontou para Dante, seus olhos brilhando de alegria. — Ele finalmente chegou!
O choque da alegria dela foi mais desarmante do que um ataque.
Dante ficou confuso, olhando para si próprio.
— O que você quer dizer? — Philia perguntou.
— Há um tempo — Silence disse, animada ela praticamente vibrava no lugar, recuperando a flutuação, — eu previ! Eu previ que outro, assim como eu, havia chegado em Morpheus!
— Outro...? — Ludmilla murmurou.
— Outra Cria de Astreus apareceu! — Silence sorriu.
Dante e Ludmilla se encaravam, sem entender. Eles se aproximaram de novo. Suas posturas de combate relaxaram, substituídas por pura confusão. Ludmilla relembrou vagamente que, no bestiário do mundo, existia algo sobre "Cria de Astreus" na parte sobre a Caçada Selvagem.
— O que é isso? — Dante perguntou.
— Eu já imaginava que você não iria saber! — Silence disse. — Eu posso explicar!
Philia bateu palmas, pronta para ouvir a história.
— Crias de Astreus são seres que receberam o olhar direto das divindades. Por essa aproximação, seus Éteres acabaram recebendo uma purificação, que os aproximava dos Astreus que concederam essa bênção. — Silence explicou, como se o que dissesse fosse algo trivial e corriqueiro.
Dante e Ludmilla continuavam confusos, mas conseguiram ter uma ideia.
— Se eu sou um Avatar de Astreus… — Dante pensou — ...é óbvio que meu Éter deveria ser parecido com o de um Astreus.
— E que Astreus concedeu a bênção para você? — Dante perguntou.
— O Senhor Destino! — ela disse, orgulhosa. Ela inflou o peito. — Eu sou a Sacerdotisa responsável por tecer e escrever as futuras memórias que irão acontecer!
— Entendi. E você… sabe que Astreus olhou para mim?
Ludmilla olhou com uma cara preocupada. Ela deu um passo sutil para mais perto, pronta para intervir. Ela não tinha como saber como a garota reagiria ao descobrir que havia sido um Astreus desconhecido dos 16. Mas Dante parecia querer confirmar algo.
Silence colocou as mãos na frente dos olhos, como se estivesse fazendo um binóculo para ver Dante mais de perto. Uma leve luz dourada brilhou entre seus dedos enquanto ela o "escaneava". — Hmm... Ah! Foi a Senhorita Memória!
Ludmilla e Dante ficaram sem entender.
Mas Philia saltou, chocada. — Não é possível! Uma Cria feita especialmente pela Senhorita Memória?! Isso significa que...
— ...é bem possível! — Silence interrompeu, vibrando de animação. — Ele deve ser o Cavaleiro da Lenda!
— Que lenda? — Dante perguntou, já se arrependendo.
— Há muito tempo foi prometido que um jovem cavaleiro apareceria no Reino dos Sonhos! Ele seria o mais fraco e frágil entre todos em Morpheus! — ela olhou para Dante de cima a baixo, como se confirmasse. — Ele também seria aquele quem acabaria com a guerra interminável entre os Sonhos e os Pesadelos, e traria paz a este mundo!
Dante começou a falar: — Olha, com certeza esse não devia ser...
Ludmilla, ao lado dele, começou a rir, sem conseguir aguentar.
— Você não deveria levar todas as lendas do Destino no literal! — Silence riu.
Dante notou que ela falou no plural. — Existem mais lendas?
— Sim. Mas as outras são ainda mais confusas. — Tem uma que por exemplo nem eu mesma consigo entender.
— Poderia contar ela ?
Silence se sentou no banco, e o ar ao redor dela mudou. Seu rosto ficando sério pela primeira vez. O barulho alegre do parque pareceu recuar, abafado por sua súbita seriedade.
— A lenda era sobre várias pessoas que estavam presas em uma caverna.
No fundo dessa caverna, havia uma entrada que dava direto na superfície. Através dela, a luz do sol e da lua chegavam lá dentro. E, por passar em estalactites e estalagmites, formavam sombras nas paredes da caverna. — Os prisioneiros, que nasceram dentro dela, acreditavam que aquelas sombras eram a realidade. O mundo de verdade em que viviam. Sem saber que estavam presos. — Certa vez, um dos prisioneiros conseguiu se soltar. Ele era curioso e, diferente das demais "sombras" que apenas aceitavam a escuridão, ele escalou a caverna, indo para o lado de fora. E descobriu que o mundo, que ele achava ser tudo que existia, não passava de sombras em uma parede. — Depois disso, ele voltou. E tentou contar o que viu para seus amigos.
De repente, ela parou de falar. O silêncio que se seguiu foi pesado, cheio apenas do 'whoosh' distante da montanha-russa.
— E...? O que aconteceu? — Dante perguntou.
— Eu também não sei. — Silence deu de ombros. — O Destino nunca me contou o final.
Dante olhava ao redor, como se aguardasse algo mais.
— Tá vendo, Por isso eu disse: você não deve levar todas as profecias ao pé da letra. Algumas são só contos estranhos, sem qualquer significado.
Ela se levantou, como se um interruptor fosse ligado, seu humor alegre voltando instantaneamente. — De qualquer forma! Esta é a primeira vez que eu vejo outra Cria de Astreus! Eu finalmente encontrei alguém que posso ver como família! — Ela começou a puxar Dante pela mão. O toque dela era frio e leve, mas surpreendentemente forte. — Por isso, não podemos mais perder tempo! Temos que brincar!
Ela o arrastou na direção de uma montanha-russa. Dante, pego de surpresa, tropeçou para segui-la, sendo puxado pela multidão, a seguiu, ainda pensando na história que acabou de escutar. O mesmo valia para Ludmilla, que ficou para trás.
Philia, ao lado dela, suspirou. Ela observava os dois se afastando com um sorriso melancólico.
— Eu me senti igual.
— O quê? — Ludmilla foi pega de surpresa.
— Quando eu ouvi aquela história da primeira vez — Philia disse, olhando para Dante e Silence se afastando. — Eu me senti igual. Triste pela solidão do garoto.
— Solidão?
— É a única resposta. — Philia falou, agora com um olhar triste. Ela olhava para as próprias mãos. — Eu tenho certeza. O único motivo para o garoto fazer algo como tentar sair de seu mundo... é porque ele percebeu que as sombras não podiam respondê-lo ou conversar, não importa o que acontecesse. Por isso ele fugiu. Mas, ao chegar no lado de fora e ver a infinitude do mundo, ele percebeu ainda mais como estava sozinho. E por isso voltou.
— Mas... não é uma história boa, então? — Ludmilla perguntou. — Já que no final ele volta para a caverna?
Philia olhou para ela com tristeza. — Mesmo que ele voltasse... eu tenho certeza de que aqueles que viviam na sombra nunca acreditariam nele. Nunca iriam entender. Eu acredito que o final da história... era a lição que o Destino queria dar. Que aqueles que nasceram de certa forma... não podem mudar.
Ludmilla achou aquela uma interpretação meio sombria, mas guardou aquilo para ela. Ela olhou para o parque barulhento, que de repente parecia um pouco menos alegre, um pouco mais como uma caverna bem iluminada.
Philia se levantou, forçando um sorriso. — Enfim! Devemos ir atrás deles?
Ludmilla concordou
Parte 10
Assim, Dante e Silence começaram a brincar. O som alegre da música do parque e os gritos agudos de Silence enchiam o ar.
Eles foram da montanha-russa que mergulhava nas nuvens, E fazia os cabelos de Dante chicotearem contra seu rosto até a roda-gigante que dava vista para o "Mar das Nuvens" ao longe. Dante se viu tendo que acompanhar a energia inesgotável da garota, que corria animadamente de um brinquedo para o outro.
Mas, em sua mente, enquanto Silence tentava ganhar um urso de pelúcia em uma barraca, ele juntava as várias peças bizarras do quebra-cabeça que reuniu.
— “Cinco Astreus. Ela ter visto a Memória olhando para mim, no lugar da Possibilidade. Aquela outra Avatar maluca. O fato desse lugar ser totalmente diferente dos pesadelos que eu tinha..." — E ainda tem a questão da Anna e Yuki.... — murmurou ele, as costas apoiadas num poste de luz.
Ele percebeu que havia conseguido muito mais perguntas do que respostas, e bufou, frustrado.
— O que aconteceu? — Silence perguntou, parando, seu sorvete de nuvem pela metade. — Você não está se divertindo?
Ele então olhou para ela, vendo que a garota realmente estava apenas querendo brincar, alheia a tudo. Sua inocência era tão brilhante e ofuscante quanto a própria cidade. Ele respirou fundo. Ficar ali apenas pensando não iria levar a lugar nenhum. Ao invés de ficar de cara emburrada, por enquanto, ele podia só... brincar.
— Desculpa — ele sorriu. Um sorriso que, pela primeira vez em muito tempo, pareceu quase genuíno. — Eu estava sendo um companheiro meio chato. Mas agora sim, eu 'tô pronto.
Ele começou a segui-la, desta vez competindo de verdade na barraca de argolas e comendo um pouco da pipoca sabor morango e do refrigerante de sete sabores. Era, realmente, um parque saído dos sonhos.
Ludmilla, por sua vez, continuava ao longe, apenas observando Dante. Ela o via rindo na barraca de argolas, uma expressão que ela não via nele há... talvez nunca. Ela sentia que realmente alguma coisa estava errada com ele. Ele parecia... mais leve do que o normal.
Philia chegou perto de Ludmilla, enquanto ela bebia um refrigerante. — Você gosta dele, não é?
Ludmilla se engasgou com o refrigerante, tossindo. Ela cuspiu o líquido colorido, batendo no peito com força.
— O quê?! — ela olhou para Philia, vermelha. — De onde você tirou isso?!
— Ué — Philia sorriu, astuta. — Você não para de olhar pra ele desde que ele e a Silence saíram pra brincar. Estava pensando se você não estava com ciúmes.
— Não! — Ludmilla protestou. — Além do mais, eu seria maluca de ter ciúmes de uma... criança!
Philia começou a rir.
De repente, eles escutaram um grito. Não foi um grito de diversão. Foi agudo, cheio de raiva e medo. A música alegre do parque não parou.
Um homem, com roupas pretas desgastadas e sombrias, cabelos bagunçados, puxava uma mulher pelos cabelos e colocava uma faca em seu pescoço. Ele tropeçou para o centro da praça de alimentação, seus olhos selvagens e desesperados, uma mancha de sujeira no mundo branco e limpo.
— Todos vocês! Agora! Larguem tudo que for de valor e deem o fora, ou eu mato ela!
As pessoas olharam para ele... Houve uma pausa. Um silêncio momentâneo na multidão... e depois começaram a rir. Não foi um riso de pânico. Foi um riso de diversão, como se assistissem a um comediante ruim.
A mulher, que era a refém, falou, irritada: Ela nem parecia estar com medo, apenas... aborrecida, tentando afastar a lâmina com os dedos. — Eu não sei o que você está pensando, mas sabia que o cabelo de uma mulher é a sua própria vida? Que tal então parar de puxar?
O homem rosnou: — Calada! Por acaso quer morrer?
A mulher começou a rir. — E quem iria me matar?
Do outro lado da praça, a pipoca de morango caiu da mão de Dante.
Dante, vendo aquilo ao fundo, parou de brincar e começou a olhar, preocupado.
.— O que houve? Não vamos no próximo? — Silence perguntou, vendo-o parar.
—.Ele apontou e alertou: — Isso pode acabar ficando perigoso.
A garota olhou e falou, ainda com o mesmo sorriso: — Ah, isso? Não precisa se preocupar. Vamos logo para o próximo brinquedo!
Dante ficou encarando ela, sem entender. Ela falava aquilo com uma naturalidade assustadora. Seu sorriso não vacilou. Para ela, aquilo era apenas uma inconveniência, como uma fila longa. E, quando ele percebeu, as pessoas ao seu redor continuavam suas vidas, sem qualquer medo ou preocupação. Uma família passou por ele, comendo algodão-doce, dando a volta no agressor para chegar a um brinquedo.
Dante não entendia o que estava acontecendo.
— CALADA, MULHER MALDITA! — o homem gritou. Desesperado pela falta de reação, ele pressionou. Ele então colocou a faca mais próximo do pescoço dela, a ponto de fazer sangrar.
Uma gota de sangue vermelho-vivo escorreu pelo pescoço pálido da mulher.
Dante, vendo o sangue, agiu. A visão do sangue quebrou sua paralisia. Ele puxou seu Éter, tentando entrar no modo "Deus da Velocidade", mas...
Ele flexionou os músculos, esperando o estalo familiar, o puxão do mundo se distorcendo. Nada. Um som surdo.
De repente, ele percebeu algo. Embora seu Éter estivesse ali, uma energia morna e sem propósito, ele não sentiu algo essencial. Algo que fazia parte dele mesmo. Ele olhou para as próprias mãos, assustado.
— "Onde... Onde está o Tempo?"
Era um buraco em seu ser, uma sensação de membro fantasma. A parte de seu poder que o definia havia desaparecido.
A mulher presa pelo homem gritou — desta vez um grito real de dor — por causa da pontada da lâmina.
Dante, ignorando sua confusão, começou a correr. Usando apenas a força física, parecendo desesperadamente lento para si mesmo.
— Dante! — Silence o impediu, segurando seu braço. Sua mãozinha era leve, mas o agarrou com uma força impossível.
— Por que você 'tá fazendo isso?! — ele gritou.
— Eu já falei que você não precisa se preocupar!
Do outro lado, Ludmilla também se preparava para ir, sua mão indo para um coldre que não existia em sua nova roupa, mas Philia parou ela. O braço gentil de Philia em seu ombro foi como uma barra de aço.
— Calma. É só um Pesadelo louco tentando fazer confusão.
— Ainda assim! Aquela mulher vai se machucar!
— Não vai, não. — Philia disse, calma. Ela olhou para o céu. — Eu já expliquei uma vez. Não existe nenhum perigo nesta cidade. Pois... Ele está lá.
Um zumbido agudo preencheu o ar. Todos, exceto Dante e Ludmilla, olharam para cima, não com medo, mas com expectativa.
Um feixe de luz branca caiu do céu, explodindo em cima do homem e da mulher. Foi uma coluna de energia pura, cegante e quente, que atingiu o chão com o som de um trovão. O impacto levantou uma nuvem de poeira de mármore e vapor.
— NÃO! — Dante se desesperou, imaginando o pior, e correu, se livrando de Silence.
Ludmilla se virou, assustada com a explosão.
— Viu só? — Philia falou. — Ele já chegou.
Quando Dante atravessou a fumaça que foi levantada, ele viu. Ele parou de correr, horrorizado. A mulher estava lá, completamente ilesa, sem nenhum único arranhão. O homem que a detinha estava caído no chão, carbonizado, sua forma contorcida e fumegante, cuspindo sangue e cheio de cortes.
E, segurando a mulher nos braços, em um estilo heroico, estava um homem de cabelos brancos, com uma auréola e asas de anjo. Ele desceu suavemente, suas seis asas brancas se dobrando perfeitamente. Seus olhos eram azuis e frios. Ele olhou para o corpo no chão com total indiferença.
— Aquele — Philia falou para Ludmilla — é o protetor da cidade de Wonder. Teth.
De repente, Silence passou pela multidão e se aproximou de Dante. — Viu só? Eu falei que não tinha com o que se preocupar.
A multidão começou a aplaudir. Um aplauso educado, como se o show tivesse acabado.
Dante observava a cena. Só de escutar, o borbulhar final do sangue do homem, ele conseguia perceber: o homem no chão não estava só ferido. Ele estava morto.
— Por quê...? — Dante perguntou, chocado. Ele se virou para Silence, sua voz um sussurro trêmulo. — Por que as pessoas estão batendo palmas? Por que ele fez isso? Por que ele o matou?
Silence o olhou, confuso. — Era inevitável. Ele tentou matar um Sonho. O que mais ele podia fazer?
— Devia ter outra maneira! — Dante protestou. — Ele podia prender, ou algo assim!
— Eu acho que prender alguém por toda a eternidade é uma punição muito pior. — Silence disse.
— Eu não iria tão longe! — Dante falou, frustrado. — Ele só precisava ficar preso por um tempo! Até aprender!
Silence o olhou com uma cara infantil e confusa. Como um pássaro tentando entender um som novo. — O que você quer dizer com aquilo?
— Que ele só precisava ficar preso... até aprender.
— Entendi essa parte. — Silence inclinou a cabeça. — Mas... o que você quis dizer com... "tempo"?
Agora foi Dante quem ficou confuso. O sangue gelou em suas veias. — Do que você está falando?
Os dois se olharam, confusos. Ele, com horror crescente. Ela, com pura e inocente perplexidade.
— Eu nunca ouvi essa expressão antes — Silence disse, com sinceridade. — O que, afinal, significa... "tempo"?
E assim, Dante sentiu novamente aquela sensação estranha e gelada. Um buraco onde seu poder costumava estar.
Um mundo sem tempo.



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