The Fall of the Stars Ashes of the Crimson SkyVolume: Capítulo 1- A Princesa sem elegância
- AngelDark

 - 27 de out.
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Volume 1: A Busca da Espada.
Parte 1
A noite era uma constante em Umbra, mas em Zohan, ela era magnífica.
Aninhado no fundo de um colossal cânion circular, o reino era um segredo gravado em rocha negra e lisa. As paredes subiam por quilômetros, quase arranhando um céu perpetuamente coberto por nuvens de tempestade que jamais desabavam. A única luz vinha de duas fontes: uma névoa baixa e etérea, a Névoa Lumina, que serpenteava pelo solo emitindo um brilho suave de azul e violeta; e os gigantescos veios de cristal incrustados nas paredes do cânion, que bebiam a pouca luz do alto e a derramavam sobre o vale em padrões lentos e dançantes.
Era um santuário de tranquilidade sombria, um lar para uma Ordem Demoníaca surpreendentemente pacífica. Diabretes, súcubos e demônios guerreiros viviam suas vidas sob a luz alienígena dos cristais, em uma paz que agora parecia prestes a se estilhaçar.
E era exatamente sobre isso que a Princesa Rozaliya estava espionando.
Agachada atrás de caixotes de armas mal empilhados na entrada do quartel, com os joelhos flexionados e o corpo inclinado ligeiramente para frente para equilibrar o peso, ela ouvia o murmúrio desanimado dos soldados de seu pai.
— ...não faz sentido. A cada dia, as legiões de Qin avançam mais — disse uma voz grave, a de um demônio de chifres curvos, que gesticulava com as mãos abertas, como se tentasse afastar o ar pesado ao seu redor. — Nossas barreiras mágicas no norte caíram ontem.
— Ouvi dizer que eles nem sequer saqueiam. Apenas anexam e seguem em frente — comentou outro, um íncubo afiando uma lâmina com movimentos lentos, inclinando o corpo para frente sobre a bancada, os ombros caídos e os dedos apertando o cabo da arma com uma lentidão deliberada. — Para que lutar? Para que morrer? Talvez a rendição seja o melhor caminho. Teremos novos mestres, só isso.
Rozaliya sentiu uma veia pulsar em sua testa, seu corpo tenso como uma corda esticada, os músculos das costas se contraindo involuntariamente. “Covardes”, pensou, cerrando os punhos com tanta força que suas unhas cravaram em suas palmas, fazendo-a morder o lábio inferior para conter um grunhido baixo. “Como ousam ter uma mentalidade tão patética?”
Ela, a Princesa Rozaliya, o epicentro da existência, a joia mais preciosa de Zohan, não seria "anexada" por ninguém. A simples ideia era um insulto.
O estopim foi a última frase.
— Não há mais pelo que lutar...
BAM!
Um pontapé desajeitado, mas cheio de fúria principesca, mandou uma pilha de escudos de metal ao chão com um estrondo ensurdecedor, seu pé direito se lançando para frente em um arco impulsivo, o corpo girando ligeiramente para ganhar impulso. O som ecoou pelo quartel, silenciando todas as conversas.
Rozaliya emergiu das sombras, o queixo erguido e os olhos faiscando com desprezo sob a luz violeta da névoa, endireitando os ombros com um movimento fluido e plantando os pés firmemente no chão, como se reivindicasse o espaço ao seu redor.
— Vocês se chamam de soldados do grande Reino de Zohan? — sua voz, embora jovem, cortou o ar como vidro quebrado, enquanto ela gesticulava com as mãos, apontando acusadoramente para o grupo, os dedos estendidos como lâminas. — "Não há mais pelo que lutar"? Vocês estão ouvindo a si mesmos? Que tipo de mentalidade fraca e ingênua é essa? Estão esperando que o inimigo lhes dê um tapinha na cabeça e um prato de mingau por se renderem tão facilmente?
Os soldados, antes relaxados em sua miséria, pularam de pé, batendo continência de forma desordenada. O pânico estampou-se em seus rostos, com alguns piscando rapidamente e outros desviando o olhar para o chão.
— P-Princesa Rozaliya! N-nossas desculpas!
— Desculpas não vão reconstruir nossas barreiras mágicas! — ela retrucou, apontando um dedo acusador para o demônio mais próximo, inclinando o corpo para frente em um gesto agressivo, os músculos do braço tensionados. — É essa mentalidade de ovelha que nos levará à ruína! O universo não recompensa os fracos, ele os devora! E eu me recuso a ser devorada!
— Princesa.
Uma voz firme e calma se sobrepôs à sua. O cavaleiro líder, Sir Kaelan, um demônio imponente com uma armadura de obsidiana polida, estava parado na entrada, com os braços cruzados sobre o peito largo e os pés plantados firmemente, exalando uma postura inabalável. Seu rosto era uma máscara de disciplina, mas seus olhos revelavam o cansaço de lidar com a garota, piscando lentamente como se reunisse paciência.
— O Rei deseja vê-la. Agora.
Assim, sem demora ou espera por uma explicação Kaelan levou Rozaliya consigo em seu ombro acalmando os guardas em pânico.
O salão do trono estava banhado pela luz prismática que atravessava os cristais do cânion. O Rei, pai de Rozaliya, não estava sentado em seu trono, mas sim debruçado sobre um mapa estratégico, com as mãos espalmadas sobre a mesa, os dedos traçando linhas imaginárias no pergaminho, e os ombros ligeiramente curvados sob o peso da concentração.
— Se esgueirando pelos quartéis de novo, Rozaliya? — ele disse sem se virar, endireitando levemente a postura ao perceber a presença dela, mas mantendo os olhos fixos no mapa. — Já conversamos sobre isso. Da última vez, Kaelan a encontrou escondida no vestiário masculino. Foi extremamente problemático explicar a situação… Você já é uma jovem moça... Não fica bem.
Rozaliya bufou, cruzando os braços com impaciência, inclinando o quadril para um lado e batendo o pé direito no chão em um ritmo irritado. — Não sei por que ficaram tão agitados. Não é como se eu tivesse visto o pau de nenhum deles. Eu apareci antes que todos ficassem nus.
O Rei se virou bruscamente, uma ruga de exasperação se formando entre suas sobrancelhas, seu corpo girando com um movimento rápido, as mãos se fechando em punhos ao lado do corpo antes de relaxarem. — Essa não é a questão, e você sabe disso! E princesas não deveriam falar... "baixarias" como essa! Onde estão seus modos?
— Meus modos estão ocupados tentando impedir que o reino caia porque o seu rei já desistiu! — ela explodiu, a frustração transbordando. — O que não fica bem é o senhor ter aceitado a derrota! Os soldados desistiram porque o senhor desistiu!
Havia uma profunda melancolia visível nos olhos inchados do Rei. — Nós somos fracos, criança. Essa é a verdade. Qin é um império. Nós somos um vale. Não há nada que possamos fazer, a não ser, lutar com honra até o fim. Lutar para que, quando a conquista for inevitável, Qin veja algum valor em nós e nos permita manter alguma dignidade.
— Dignidade? — ela cuspiu a palavra como veneno, inclinando a cabeça para o lado com desdém. — Rejeito isso! Rejeito essa sua lógica pragmática e covarde! Se não temos força, então precisamos de uma arma! Eu irei atrás de Murakame!
O silêncio tomou o salão. Sir Kaelan, postado ao lado da porta, enrijeceu, seu corpo se tensionando visivelmente, os músculos dos braços se contraindo sob a armadura e os pés se afastando ligeiramente para uma postura mais defensiva. O Rei suspirou, um som que parecia carregar séculos de cansaço, passando uma mão pelo rosto em um gesto lento e cansado, os ombros caindo ainda mais.
— Murakame... A história da lâmina demoniaca que pode cortar a própria realidade — ele deu um sorriso triste, inclinando a cabeça ligeiramente, os cantos da boca se erguendo de forma forçada. — É apenas um conto de fadas bobo, querida. Uma história para dar esperança a crianças em tempos sombrios. É impossível que você a encontre.
— O senhor está errado! — declarou ela, o corpo tremendo de convicção e batendo o pé no chão para enfatizar. — Eu sei, melhor do que ninguém, que toda história tem como base algo real! Eu sinto dentro de mim..
Ela se virou, marchando em direção à saída, com passos largos e decididos, os braços balançando ao ritmo da determinação. Sir Kaelan instintivamente estendeu o braço para detê-la, esticando a mão com um movimento fluido, mas hesitante.
— Não adianta tentar me impedir! — ela se desvencilhou com um puxão surpreendentemente forte, girando o ombro para se libertar e continuando a andar sem olhar para trás. — Eu irei de todo jeito!
E com isso, ela saiu correndo do salão do trono, seus passos ecoando como uma promessa furiosa, o corpo se inclinando para frente na corrida, as mãos cerradas em punhos ao lado do corpo.
Sir Kaelan olhou para seu rei, virando a cabeça lentamente, as sobrancelhas franzidas em preocupação. — Majestade, devo mandar os guardas atrás dela?
O Rei caminhou até uma das grandes janelas de cristal, seus passos pesados e deliberados, parando com as mãos unidas atrás das costas, observando a figura pequena e determinada de sua filha começar a cruzar a praça principal.
— Não, Kaelan. Deixe-a ir.
O cavaleiro franziu o cenho, inclinando o corpo ligeiramente para frente, como se questionasse. — Mas, meu senhor... o mundo lá fora...
— Eu a mantive sob muita proteção. Impedi que ela visse o mundo como ele é — disse o Rei, sua voz baixa e cheia de uma complexidade que Rozaliya jamais entenderia, virando-se devagar com um suspiro profundo. — Esta é a chance perfeita para ela ver. Para aprender. Porque, quando formos conquistados, eu não serei mais rei. Ela precisará viver por conta própria.
Ele se virou para o leal cavaleiro, um brilho de astúcia em seus olhos cansados, estendendo uma mão em um gesto sutil de comando.
— No entanto... ela não precisa ir completamente sozinha. Mande sua filha, se possível. Aquela jovem cavaleira... Leilah. Diga a ela para ser a sombra de Rozaliya.
Um raro e sutil sorriso curvou os lábios do Rei, inclinando a cabeça levemente, os olhos se semicerrando com uma mistura de afeto e estratégia.
— Minha filha vai procurar por um conto de fadas… espero que ao menos ela faça uma boa viagem.
Parte 2
O Reino de Umbra, um domínio desde sempre habitado por demônios e seres forjados na ambição e no conflito, estava em uma encruzilhada como nunca antes. A antiga era, conhecida como a "Guerra sem Vencedores", onde incontáveis estados e cidades independentes lutavam brutalmente pela coroa de Overlord — o demônio supremo que reinaria sobre toda Umbra —, havia finalmente chegado ao fim. Agora, uma nova e aterrorizante "Era dos Grandes Impérios" havia começado, e os ventos da mudança varriam o reino com uma força que fazia até os mais resolutos estremecerem, seus corpos enrijecendo ao ouvir os rumores distantes de exércitos marchando.
De um lado, erguia-se a sombra colossal do Imperador Qin. Em poucas décadas, sua bandeira, um dragão negro ascendente, já tremulava sobre setenta por cento de Umbra, suas cores escuras ondulando com orgulho nos mastros enquanto demônios sentinelas, com armaduras reluzentes, erguiam-na em cerimônias precisas, seus movimentos sincronizados como máquinas. Qin era um enigma: seus discursos prometiam paz, o fim dos conflitos eternos e um futuro unificado contra ameaças externas que, segundo ele, os reinos enfraquecidos jamais poderiam enfrentar. Ele falava com uma voz grave e hipnótica, gesticulando com mãos largas e confiantes, os dedos traçando arcos no ar como se desenhassem o futuro que prometia. Mas sua paz era conquistada com um punho de ferro. A trilha de seu império era uma de fogo, aço e reinos outrora orgulhosos reduzidos a estados vassalos, suas culturas e tradições subjugadas em nome da ordem imperial. Em seus territórios, anciãos demoníacos, com rostos sulcados por rugas de desespero, curvavam-se relutantemente perante os estandartes de Qin, enquanto jovens guerreiros, com os ombros tensos e punhos cerrados, engoliam sua revolta em silêncio. Muitos o viam não como um salvador, mas como um tirano com uma retórica talentosa, e a grande aposta de todos era que ele seria o próximo a clamar para si o posto de Overlord, que permanecia desocupado, seus olhos brilhando com uma ambição fria enquanto contemplava mapas de Umbra em salões iluminados por tochas.
Do outro lado, em um contraponto de puro caos, urrava o Reino de Zan. Dominando vinte por cento de Umbra, Zan era menos um reino e mais um pesadelo anárquico. Liderados pelo demônio primordial Ptolemy, um colosso de escamas negras e olhos flamejantes que se movia com a graça predatória de uma fera, seus seguidores abraçavam uma filosofia selvagem: a de que a civilização havia enfraquecido a verdadeira essência demoníaca. Ptolemy comandava com gestos amplos e brutais, suas garras cortando o ar enquanto rugia ordens, o corpo inclinado para frente como se sempre estivesse prestes a atacar. Em Zan, não havia lei, apenas o instinto; não havia honra, apenas o desejo; não havia sociedade, apenas uma cadeia alimentar brutal. Seus guerreiros, com cicatrizes expostas e posturas curvadas de predadores, moviam-se em bandos, seus olhos faiscando com fome enquanto atravessavam as planícies devastadas. Suas terras eram um testemunho vivo de sua crença, um inferno de predação onde os fortes devoravam os fracos sem remorso, os sons de ossos quebrando e rugidos ecoando pelas ravinas escuras, enquanto os mais fracos se encolhiam em esconderijos improvisados, suas respirações ofegantes traindo seu medo.
E então, havia os dez por cento restantes. Reinos como Zohan, com seus habitantes movendo-se com uma mistura de cautela e orgulho, as mãos sempre próximas às armas, os olhos vigilantes erguidos para o horizonte. Cidades-estado, enclaves escondidos e alianças menores que, por sorte ou teimosia, ainda não haviam sido engolidos por nenhum dos dois titãs. Eram ilhas de um mundo antigo, vivendo os últimos suspiros de sua autonomia, seus líderes reunindo-se em conselhos tensos, gesticulando com mãos trêmulas enquanto debatiam estratégias, os corpos inclinados sobre mesas cobertas de mapas e pergaminhos. Para eles, o futuro era um dilema sem resposta: curvar-se à ordem opressora de Qin, com seus soldados marchando em fileiras perfeitas e rostos impassíveis, ou ser consumido pela anarquia bestial de Zan, onde até os mais fortes hesitavam, seus corpos enrijecendo ao ouvir os uivos distantes de seus predadores?
A paz em Zohan, com sua beleza sombria e delicada, era uma anomalia, uma vela acesa em meio a um furacão que se aproximava. Seus habitantes moviam-se com graça sob a luz dos cristais, seus gestos fluidos enquanto realizavam tarefas diárias, mas com olhares furtivos para as muralhas, como se pressentissem a tempestade iminente. Crianças corriam pelas ruas, suas risadas ecoando, mas paravam abruptamente, os corpos congelando ao ouvir o som distante de trovões que não vinham de nuvens, mas de exércitos em marcha.
Parte 3
Se havia uma única pessoa em Zohan cuja força Rozaliya respeitava — além da sua própria, é claro —, essa pessoa era Rui. Órfão, quieto e forjado nas ruas antes de ser pego sob a asa de Sir Kaelan e ser treinado para virar um cavaleiro, ele era um prodígio, com bastante conhecimento sobre o mundo real, o que o tornava um aliado ideal para a futura jornada.
Ela encontrou o quarto dele nos alojamentos dos aspirantes a cavaleiro, suas botas ecoando contra o piso de pedra enquanto atravessava o corredor com passos decididos, o queixo erguido e as mãos cerradas ao lado do corpo. Sem cerimônia, arrombou a porta com um chute, a perna direita se lançando em um arco firme. Rui dormia profundamente, o peito subindo e descendo em um ritmo calmo, o rosto relaxado sob a luz fraca. Com um sorriso malicioso curvando os lábios, Rozaliya sacou uma adaga, girando-a habilmente entre os dedos antes de segurá-la com firmeza. Ela se aproximou da cama com passos leves, quase dançantes, o corpo inclinado para frente, os músculos tensos de antecipação. O silvo da lâmina cortando o ar foi a única advertência, enquanto ela a arremessava com um movimento rápido do pulso.
Rui rolou para fora da cama com uma velocidade impossível, o corpo girando em um movimento fluido, as pernas se dobrando enquanto caía de cara no chão. A adaga se cravou no travesseiro onde sua cabeça estava segundos antes. Ele endireitou a postura lentamente, os músculos dos braços tensos, como se estivesse pronto para reagir a qualquer movimento.
— Você está tentando me matar, princesa? — sua voz era calma, mas com um tom cortante, enquanto ele se levantava, os pés se posicionando firmemente no chão.
— Claro que não, seu idiota! — ela negou, com uma naturalidade ultrajante, jogando a cabeça para trás em um gesto dramático. — Só vim te acordar. Da última vez, você não quis abrir os olhos por nada, então tive que ser mais... enfática.
Os olhos de Rui se desviaram para trás dela, estreitando-se ao notar as armas dispostas contra a porta: um pequeno machado de arremesso, sua lâmina reluzindo com um brilho frio; uma maça, pesada e ameaçadora; e uma besta carregada, o gatilho tenso, pronta para disparar. — E as outras armas? São para garantir que eu nunca mais acorde?
Rozaliya começou a assobiar, endireitando os ombros em uma tentativa de parecer digna, embora o canto de sua boca tremesse com um sorriso contido. — Detalhes. Precisamos conversar sobre assuntos importantes. Estou partindo em uma jornada para encontrar a Murakame e salvar este reino, e você vem comigo — disse, apontando um dedo acusador para ele, o corpo inclinado para frente com determinação.
Rui a encarou por um longo momento, o cansaço de quem já ouviu aquela história antes gravado em seu rosto, as sobrancelhas franzidas e os lábios apertados em uma linha fina. — Não. Já tivemos essa conversa. A Murakame é uma lenda para crianças, não é real. Essa sua 'jornada' é suicídio. Fique aqui onde está segura.
— Segura? Segura para ser subjugada por Qin? Eu me recuso! — ela insistiu, batendo o pé no chão com força.
— Certo. Você quer ir para o mundo lá fora e quer que eu seja seu guarda-costas? — Rui a interrompeu, a voz fria e cortante, enquanto dava um passo à frente, os olhos fixos nos dela, o corpo inclinado ligeiramente, como um predador avaliando sua presa. — Então vamos fazer uma transação, como se faz no mundo real. Com o que planeja me pagar? Lembre-se que as coisas custam dinheiro e, por mais que você leve em sua jornada, haverá momentos em que o dinheiro não será suficiente. Digamos que essa hora chegou, princesa. O que você faria?
— Isso é ridículo! Você já está tendo o privilégio de andar com uma bela e jovem dama virgem como eu. Não é pagamento o suficiente? — ela respondeu, com uma arrogância desconcertante, erguendo o queixo e cruzando os braços, um sorriso presunçoso curvando seus lábios enquanto inclinava a cabeça para o lado.
Rui massageou as têmporas, o rosto se contorcendo de vergonha, os ombros caindo enquanto exalava um suspiro pesado. — Pare de falar coisas que me fazem querer enfiar a cabeça debaixo da terra, maldita! Não consegue levar nada a sério? Se quer a minha ajuda, pague o preço.
— Bom, tudo bem... — ela cedeu, um pouco irritada, descruzando os braços e gesticulando com as mãos abertas, como se tentasse afastar a tensão no ar. — Se chegarmos a essa situação, terei que negociar para acertarmos isso de outra forma que não envolva dinheiro, obviamente.
— Esperta. Muitos viajantes não têm dinheiro, mas sempre há algo para dar. O que você poderia oferecer, princesa? — ele perguntou, dando mais um passo à frente, os pés movendo-se com precisão deliberada, o corpo agora mais próximo, a postura firme.
Rozaliya o encarou, confusa, seus olhos se arregalando ligeiramente, as mãos hesitando no ar antes de se apoiarem nos quadris.
— Você não tem força, então algo como 'eu te ajudo com um problema ou inimigo' está fora de questão — ele continuou, a voz baixa e séria, inclinando o corpo para frente, os olhos travados nos dela. — Poderia fazer uma promessa de favor real, mas aí estaria colocando em risco o próprio reino que quer proteger. Contudo, um homem faminto, ou um homem mau... ele poderia querer um pagamento diferente. Algo que você não pode simplesmente substituir. Talvez o seu corpo. Então, princesa, o que faria em tal situação?
Ele se aproximava dela a cada palavra, os passos lentos e calculados, o corpo inclinado para frente, os músculos tensos sob a camisa leve. Ela, hesitando, recuou, os pés arrastando ligeiramente no chão, até suas costas baterem contra a parede fria do quarto, o impacto fazendo-a inspirar bruscamente. Ele se inclinou, o rosto a centímetros do dela, o calor de sua respiração roçando sua pele, e sussurrou, os lábios mal se movendo:— Olha só como já está tremendo.
TAPA!
A cabeça de Rui virou para o lado com a força do golpe, o som ecoando pelo quarto. Rozaliya estava com o rosto vermelho, uma mistura de raiva e humilhação, o peito subindo e descendo rapidamente, a mão ainda erguida, tremendo com a adrenalina.
— Tudo bem, seu teimoso! Fique aí e apodreça com os outros covardes! Eu não preciso de você! — ela se virou, os cabelos esvoaçantes enquanto girava nos calcanhares, marchando para a porta com passos largos e furiosos. Parou na soleira, olhou por cima do ombro, mostrou a língua em um gesto infantil, e disse com o máximo de desdém que conseguiu reunir, a voz carregada de sarcasmo: — Tomara que esse seu pau caia, já que não está usando ele para nada!
Um travesseiro voou pela sala, arremessado com força por Rui, que se endireitou bruscamente, os punhos cerrados. Do outro lado, ela pôde ouvir o grito abafado dele, carregado de frustração: — MALDITA PRINCESA BOCA-SUJA!
De volta a seus aposentos, Rozaliya jogou uma mochila sobre a cama com um baque surdo, o movimento brusco fazendo o colchão ranger. Com fúria contida, ela começou a enfiar coisas dentro, suas mãos movendo-se com precisão nervosa: roupas de viagem dobradas às pressas, rações embrulhadas em tecido, e uma fileira de calcinhas sexy, que ela alinhou cuidadosamente antes de guardá-las. Sua mão parou sobre uma pequena moldura de prata na mesa de cabeceira, os dedos hesitando antes de tocá-la, o corpo relaxando por um instante.
A pintura de sua mãe, com a mesma teimosia no sorriso, parecia fitá-la. A memória a atingiu como um soco: as noites em que ela e um Rui mais novo ouviam, fascinados, a história da Murakame e do Dragão Negro, sentados aos pés da mãe, os olhos de Rozaliya brilhando de excitação enquanto suas mãos pequenas gesticulavam no ar, imitando golpes de espada. Rozaliya pegou a moldura, o olhar fixo no da pintura, os dedos traçando o contorno do rosto com reverência.
— Eles acham que é um conto de fadas, mamãe — ela disse, a voz firme, endireitando os ombros e erguendo o queixo. — Vou enfiar essa espada na garganta de cada um que duvidou da senhora. — Ela colocou o quadro de volta com um clique decidido, o som ecoando no quarto silencioso, jogou a mochila sobre o ombro com um movimento rápido e marchou para fora.
A caminhada até os portões foi uma despedida à sua maneira. Um velho diabrete em sua barraca de frutas acenou com uma garra enquanto segurava uma fruta reluzente.
— Indo caçar, princesa? Não se esqueça de levar algo para comer! — Ela deu um sorriso afiado, o corpo inclinado para frente.
— Pode deixar, Jorin!
Mais à frente, um grupo de demônios guerreiros derramou-se de uma taverna, enquanto cambaleavam, as mãos segurando canecas de bebida que transbordavam.
— Princesa! Vai se juntar a nós pra depenar uns idiotas no carteado? — gritou um deles, erguendo a caneca com um gesto exagerado.
— Tentador — ela gritou de volta, girando o corpo para encará-los sem parar de andar, as mãos nos quadris. — Mas primeiro tenho que encontrar uma espada pra salvar suas bundas preguiçosas! Guardem meu lugar, eu volto pra tomar até as cuecas de vocês! — As gargalhadas a seguiram, ecoando pelas ruas enquanto os guerreiros batiam nas mesas, suas vozes roucas de tanto rir.
Enquanto passava pela rua dos prazeres, um gemido ritmado vindo de uma janela do segundo andar de um bordel chamou sua atenção. Lyka, uma súcubo de cabelos vermelhos, estava com a cabeça para fora, os braços apoiados no parapeito, o corpo se movendo languidamente enquanto ofegava.
— Rozaliya! Que pressa é essa, querida? Ah...!
— Vou salvar o mundo, Lyka! Missão super importante! — ela gritou, sem parar de andar, acenando com a mão em um gesto rápido.
— Maravilha! Leva o Rui com você pra te proteger... hmm... ah! Ele ia adorar! — a súcubo ofegou, inclinando a cabeça para o lado com um sorriso malicioso. Rozaliya sentiu uma fisgada, os punhos se cerrando ao lado do corpo, o passo acelerando ligeiramente.
— Aquele idiota se recusou a vir.
— O quê? Mas ele nunca vem aqui... sempre achei que era por sua causa. Que estranho ele te deixar ir sozinha...— Lyka respondeu, erguendo uma sobrancelha enquanto se inclinava mais para fora da janela.
Rozaliya cerrou os punhos com mais força, o rosto aquecendo, e acelerou o passo, deixando a voz de Lyka para trás, o coração batendo com uma mistura de raiva e algo mais, os ombros tensos enquanto marchava.
E foi assim que ela finalmente chegou aos grandes portões de Zohan, o corpo ereto, a mochila balançando ao ritmo de seus passos determinados. Mas alguém a esperava. Uma jovem demônio em uma armadura leve e funcional, seu cabelo escuro preso em um rabo de cavalo prático, estava parada com os pés firmemente plantados no chão, as mãos unidas atrás das costas. Leilah, a filha de Sir Kaelan. Uma cavaleira diligente e irritantemente perfeita, sua postura impecável exalando disciplina.
— Princesa Rozaliya — disse ela com uma reverência impecável, inclinando o corpo com graça, os olhos fixos no chão por um momento antes de se erguerem para encontrar os de Rozaliya. — Fui designada como sua guarda-costas.
Rozaliya a fuzilou com o olhar, os olhos estreitados, o corpo inclinado para frente enquanto cruzava os braços. — Eu não pedi uma babá.
— Com todo o respeito, não foi um pedido — Leilah respondeu, endireitando ainda mais a postura, os ombros retos e o queixo elevado, a voz firme, mas calma. — São ordens diretas. Se a senhorita não me permitir acompanhá-la, os cavaleiros do seu pai a levarão de volta ao castelo.
Rozaliya rangeu os dentes, o maxilar travado, os punhos cerrados ao lado do corpo enquanto dava um passo à frente, como se desafiasse a cavaleira com sua proximidade. Era um beco sem saída.
— Que seja — ela rosnou, passando por Leilah como um pequeno furacão, o corpo girando com um movimento brusco, a capa esvoaçando atrás dela enquanto marchava em direção aos portões. — Mas fique fora do meu caminho.
Assim que as duas saíram para além da segurança dos muros de Zohan, sob a luz fantasmágrica do céu de Umbra, encontraram uma terceira figura encostada em uma rocha, o corpo relaxado, mas alerta, uma mochila jogada displicentemente sobre o ombro. Era Rui, os braços cruzados, o rosto marcado por uma expressão irritada, as sobrancelhas franzidas e os lábios apertados em uma linha fina.
Rozaliya parou, surpresa, o corpo congelando por um instante, os olhos se arregalando antes de se estreitarem em suspeita. — Mudou de ideia?
Ele desviou o olhar, o rosto corado de um jeito que ele jamais admitiria, coçando a nuca com uma mão enquanto deslocava o peso do corpo de uma perna para a outra. — Alguém precisa garantir que sua alteza mimada não tropece na primeira pedra e quebre o pescoço.
Parte 4
A saída de Zohan se deu pela Íris de Ébano. Anéis colossais de pedra deslizaram uns sobre os outros, abrindo uma passagem circular na própria parede do cânion, com um rangido grave que ecoava como o gemido de uma fera. Poeira antiga se ergueu, revelando rachaduras na rocha que pareciam veias pulsantes de um coração petrificado.
O ar que entrou foi um tapa na cara: selvagem, cheirando a terra úmida e decadência, carregado de umidade que grudava na pele como um manto invisível. Para Rozaliya, foi como respirar pela primeira vez, enchendo os pulmões com o frescor cortante que contrastava com o ar estagnado e metálico das profundezas de Zohan. Seus olhos se arregalaram ao vislumbrar o céu aberto acima, um vasto ceu escuro iluminado por dezenas, centenas, incontáveis estrelas. O caminho do lado de fora era uma trilha sinuosa que descia pela montanha, serpenteando entre afloramentos rochosos afiados como presas e penhascos que despencavam em abismos enevoados, onde o vento uivava baixinho, carregando ecos distantes de criaturas invisíveis.
Mal deram dez passos e os problemas começaram. Enquanto andavam pelo solo cinza e arenoso, cercado por árvores pretas como carvão, os primeiros sintomas de um grupo mal organizado começaram a aparecer.
— Não confio nele — Leilah disse de repente, a mão perto do punho da espada, o olhar fixo nas costas de Rui, seus dedos tamborilando levemente no cabo ornamentado da espada.
Rui parou e se virou lentamente. — Nunca esperei por essa confiança de qualquer jeito, filhinha do papai — Sua voz saiu baixa, mas afiada como uma lâmina.
— Mesmo após ter sido chamado para fazer parte dos cavaleiros a mando do meu pai, você continuou fazendo apenas o que queria. Era desobediente com as ordens dos superiores e vivia faltando aos treinamentos. Te chamar de aprendiz de cavaleiro é uma desgraça para todos os outros — Leilah rebateu a provocação irritada, dando um passo à frente. O chão instável a fazendo tropeçar ligeiramente, o que só aumentou sua fúria.
A tensão pairava no ar como uma névoa tóxica, o silêncio interrompido apenas pelo zumbido de insetos distantes e o crepitar de pedras soltas rolando pela encosta. Rozaliya sentiu o ar crepitar entre eles, como se faíscas invisíveis pudessem incendiar o momento a qualquer instante.
— Chega! — a voz de Rozaliya cortou a tensão, ecoando pela trilha como um trovão contido. Ela se postou entre os dois, os ombros retos, o queixo erguido. — Escuta aqui, Leilah. A babá é você. Ele é meu amigo. Prefiro ter ele por perto do que você. Então, se quiser vir, vai ter que se acostumar. Entendido? — Seus olhos flamejavam com uma intensidade que não admitia réplica, e ela plantou as mãos nos quadris.
Leilah engoliu a raiva, assentindo rigidamente, seus dentes rangendo audivelmente enquanto forçava os músculos do pescoço a relaxarem. Depois de um silêncio tenso, pontuado pelo sussurro do vento através das rochas e o ocasional estalo de galhos secos sob os pés, ela perguntou: — E qual é o plano, princesa? Agora que estamos... aqui fora. — Sua voz saiu mais baixa, quase relutante.
Rozaliya hesitou por um microssegundo, o coração acelerando ligeiramente enquanto olhava para o vazio.
— Já imaginava — Rui zombou, parando de repente e falando com os olhos fechados. — A rainha da impulsividade. Deixa eu adivinhar o plano: 1. Sair de Zohan. 2. Achar a espada. 3. Salvar o mundo. Acertei? — Ele ergueu uma sobrancelha.
— Cale a boca e ouça com atenção! — Rozaliya retrucou, dando um peteleco na testa dele, fazendo Rui piscar surpreso. — Por acaso você não sabe que as mulheres não gostam dos precoces? — Ela riu, um som leve e musical que cortou a tensão remanescente, ecoando pela encosta e atraindo o olhar curioso de um falcão que circulava alto no céu.
Rui ficou vermelho como um pimentão, o calor subindo pelo pescoço até as orelhas, enquanto ele desviava o olhar para o horizonte. — Tomara que você tropece e morra! — ele murmurou, completamente envergonhado.
— Como eu ia dizendo — ela continuou, saboreando a pequena vitória, —, eu sei para onde ir. Passei anos decifrando aquela história. A lenda diz que um antigo herói demônio usou a Murakame para derrotar o Dragão Negro, um Majin que dominava tudo, cuspindo chamas que devoravam céus inteiros e escravizando nações com seu rugido. Antes de morrer, o herói escondeu a espada, mas deixou uma pista para encontrá-la na cidade onde ele começou sua jornada.
Ela fez uma pausa dramática, o silêncio se estendendo enquanto o vento uivava mais forte, carregando o cheiro de árvores distantes e o som abafado de uma cachoeira invisível ecoando de algum vale oculto.
— E qual o nome da cidade? — perguntou Rui, cruzando os braços, seus olhos fixos nela.
Rozaliya sorriu, um pouco sem graça, mordendo o lábio inferior enquanto o rubor subia às suas bochechas, o sol poente pintando sua pele de tons quentes. — Então... essa é a parte que eu não lembro. — Ela deu de ombros, tentando disfarçar a falha com um gesto casual, mas o peso da admissão pairava como uma sombra.
Rui bateu a mão na própria testa, o som ecoando como um tapa autoimposto, enquanto soltava um suspiro longo e sofrido que se misturava ao zumbido dos insetos ao redor. — É claro que não.
— A cidade se chama Sancro — disse Leilah, surpreendendo os dois, sua voz saindo firme e clara. — Meu pai também contava essa história. É para lá que vamos? Fica depois da Floresta-Ossuário.
Rozaliya abriu um sorriso triunfante, como se aquele fosse seu plano o tempo todo, os dentes brancos reluzindo contra o céu, enquanto batia palmas uma vez, o som cortante como um sinal de partida. — Exato! Cidade Sancro! Não temos tempo a perder! — Ela girou nos calcanhares, a trilha agora mergulhando em uma descida íngreme.
E com sua líder recém-informada marchando à frente, o trio continuou a trilhar seu caminho por aquele deserto cinza e arenoso, indo em direção à escuridão da floresta. Com o caminhar de seus passos, assim como o chão mudava de um deserto para um solo firme cheio de raízes, a luz e a escuridão faziam uma transição gradual, fazendo o coração de Rozaliya, que via tudo aquilo pela primeira vez, bater mais forte.
Como a maioria das florestas de Umbra, aquela não era uma floresta de madeira e folhas. Era um labirinto petrificado onde o chão rangia sob os pés como ossos frágeis se partindo, e o ar era espesso, impregnado de um cheiro de mofo antigo e decomposição lenta, como se o próprio tempo tivesse apodrecido ali. As "árvores" eram estruturas colossais e pálidas, todas cheias de espinhos. Esqueletos fossilizados de dragões e outras bestas titânicas esquecidas pelo tempo preenchiam o lugar, suas formas retorcidas erguendo-se como sentinelas mudas, com crânios vazios que pareciam observar os intrusos com órbitas negras e vazias.
Toda floresta ficava embaixo de uma enorme coluna vertebral de alguma criatura gigantesca e morta. As costelas retorcidas se entrelaçavam no alto, bloqueando quase toda a luz e criando um dossel de osso que filtrava o luar em feixes espectrais, pintando o caminho com listras fantasmagóricas.
Eles caminharam em silêncio por um tempo, o ar pesado com o cheiro adocicado e doentio do lugar, cada passo ecoando como um sussurro conspiratório nas galerias ósseas, enquanto gotas de umidade condensada pingavam dos galhos acima, caindo como lágrimas frias em suas nucas e ombros. O som distante de algo rastejando nas sombras os mantinha alertas, e o frio se infiltrava pelas roupas, arrepiando a pele exposta.
— Princesa — Leilah quebrou o silêncio. — Posso perguntar por que decidiu fazer isso?... não é o que se espera de uma princesa. — Seus olhos varriam as sombras, captando o brilho intermitente de um fungo próximo. — Na verdade, não é o que se espera de um demônio, agir em benefício de outras pessoas, mesmo que seja a princesa do reino.
Rui soltou uma risada abafada, o som ecoando baixo e rouco. — Rozaliya é tudo, menos o que se espera de uma princesa. — Ele chutou uma pedra solta, que rolou e se perdeu na escuridão.
— Quer levar outro tapa, idiota? — ela ameaçou, antes de se virar para Leilah, o movimento fazendo seu cabelo ruivo chicotear o ar como uma chama viva. — É porque eu gosto do meu reino como ele é. Gosto da alegria, da liberdade, de como todos vivem sem se preocupar. — Ela falava com um sorriso sincero e aliviado no rosto. — Tenho a sensação de que, quando Qin dominar tudo, Zohan não será mais o mesmo. E ninguém parecia querer fazer nada, então eu resolvi fazer, porque o silêncio é o primeiro passo para a rendição.
— Entendo — disse Leilah, Embora o brilho de curiosidade continua-se em seus olhos. — “Ainda assim parece estranho que essa tenha sido sua única motivação.”
— Demônios só respeitam a força. Por isso, para conversar de igual para igual com Qin, preciso de poder. E o que é melhor do que uma espada lendária? Além do mais — Rozaliya continuou, com uma careta de nojo —, se fôssemos conquistados, eu teria que me casar com ele, virando só mais uma mulher no harém daquele tirano. Eu jamais aceitaria isso. — Ela estremeceu visivelmente, o ar frio da floresta amplificando o calafrio que subia por sua espinha.
Rui, que andava um pouco à frente, mudou o ritmo de seus passos de repente, sua face se fechando um pouco mais.
Rozaliya deu de ombros, o gesto casual contrastando com o brilho desafiador em seus olhos. — Eu quero ter o meu próprio harém, isso sim. Uma beldade como eu não nasceu para ser conquistada, mas para conquistar, reunindo ao meu redor almas que me adorem como uma deusa. Claro, se aparecesse um cavaleiro sem igual, que fizesse meu coração disparar e minhas pernas tremerem... eu até poderia considerar entrar para o harém dele. Mas duvido que isso aconteça. — Ela riu, aliviando o ar opressivo por um instante.
— Tsk,Por que as únicas opções são alguém fazer parte do harém de alguém? — Rui resmungou, mais para si mesmo do que para elas.
Leilah e Rozaliya o encararam como se ele tivesse acabado de dizer que tinha visto um unicórnio pintando o céu de verde. — Do que você está falando? — perguntou Leilah, confusa, inclinando a cabeça enquanto franzia a testa. — É normal. É a ambição em seu auge. O destino de um demônio é conquistar ou ser conquistado. Um vencedor quer mais e mais vitórias, inclusive no campo de batalha do amor.
— Não liga pra ele, Leilah — disse Rozaliya, divertida, um sorriso travesso curvando seus lábios enquanto ela observava Rui com olhos semicerrados. — O Rui é diferente. Ele não briga, a não ser que o ataquem primeiro. Não humilha os derrotados. Não bebe álcool e nunca foi se aliviar num bordel. Uma verdadeira agulha no palheiro. — Ela gesticulou para ele com um floreio exagerado.
Leilah olhou para Rui com uma expressão de estranhamento total, seus olhos percorrendo-o de cima a baixo como se ele fosse uma relíquia exótica de um museu, o silêncio entre eles preenchido pelo zumbido baixo de insetos luminescentes que dançavam no ar. Ele apenas revirou os olhos, acostumado com aquele tipo de reação. Vendo aquilo, Rozaliya se aproximou dele, passou o braço pelo dele e o puxou para perto, aninhando o braço dele entre seus seios, o calor de seu corpo contrastando com o ar gélido.
— Mas quer saber? — ela sussurrou, olhando para o rosto corado dele, o hálito quente roçando sua orelha. — Acho que foi por isso que eu me interessei tanto por ele. — Suas palavras pairaram no ar, carregadas de uma intimidade que fez o coração de Rui martelar, e ela apertou o braço dele um pouco mais, guiando-o adiante enquanto o caminho se estreitava.
Eles continuaram a caminhar assim, seus passos ecoando pela floresta, até que todos pararam de repente, o ar congelando em seus pulmões. Um som ecoou pela floresta de ossos, um estalo seco, muito próximo, como o estilhaçar de uma vértebra antiga sob pressão invisível, seguido de um farfalhar baixo que fez os pelos de suas nucas se arrepiarem.
De repente, um velho demônio com um sorriso desdentado apareceu em um galho de uma árvore acima deles, sua silhueta encurvada emergindo das sombras como um espectro saído de um túmulo, a pele enrugada esticada sobre ossos, olhos amarelos brilhando como brasas em um crânio vivo. — Estão perdidos, criancinhas? — ele grasnou, enquanto se balançava no galho com garras curvas cravadas na superfície porosa.
Rui olhou para cima, desconfiado, estreitando os olhos contra o brilho fraco que iluminava o rosto enrugado do velho, sentindo um calafrio. — Não. Estamos apenas cruzando para chegar à cidade de Sancro. — Sua mão se moveu instintivamente fechando o punho.
O velho soltou uma gargalhada que parecia o ranger de ossos, o som reverberando pelas estruturas ao redor como uma avalanche em miniatura, fazendo poeira fina cair dos galhos. — Pegaram o pior caminho para isso! Mais à frente, vive uma terrível manticora; se seguirem por este caminho, com certeza vão acabar morrendo. E se tentarem dar a volta agora... levaria mais um dia e meio de viagem.
Rui lançou um olhar mortal para Rozaliya, que estava na frente, liderando o caminho, seus olhos flamejando com uma mistura de frustração e acusação silenciosa, enquanto o velho observava a troca com um divertimento malicioso. — Por que está me encarando? — ela perguntou, inocentemente, inclinando a cabeça com um sorriso que não chegava aos olhos, embora o rubor de culpa tingisse suas bochechas.
Rozaliya estufou o peito, o gesto fazendo sua silhueta se destacar contra o brilho pulsante dos fungos, como uma rainha desafiando as trevas. — Você já deveria ter previsto isso. Eu nunca saí de casa antes! — Ela ergueu o queixo, o tom quase orgulhoso, como se a admissão fosse uma medalha de honra em vez de uma falha.
Rui mais uma vez bateu a mão na própria testa, incrédulo que ela estava se gabando até da própria incompetência.
— Eu posso ajudar — disse o velho, descendo do galho com uma agilidade surpreendente. Seus pés descalços tocaram o musgo sem um som, e um cheiro de terra úmida e ervas amargas emanava de suas roupas esfarrapadas. — Conheço um método para fazer a manticora dormir: uma música tocada por uma flauta especial que possuo.
Rozaliya sorriu, inclinando-se ligeiramente para a frente. — Perfeito, então nos empreste essa flauta! — exclamou, ignorando o olhar de advertência de Rui.
— Com prazer — ele disse, os olhinhos brilhando com uma luz faminta. — Se você vier comigo até aqueles arbustos ali e me mostrar esses seus peitões balançando para me ajudar a aliviar... — Suas palavras se arrastaram em um tom lascivo, a mão ossuda estendendo-se em um gesto obsceno, enquanto um riso gorgolejante borbulhava de sua garganta.
BANG!
Uma bala passou onde a cabeça do velho estava, o estampido ecoando como um trovão. Ele se esquivou, rindo, o corpo se contorcendo com uma velocidade sobrenatural que desmentia sua aparência frágil.
— Morra, pervertido de merda! — Rozaliya gritou, materializando uma pistola em sua mão, o metal gravado com runas que brilhavam. O velho continuou a rir, desviando de mais dois tiros, os projéteis ricocheteando em ossos fossilizados com faíscas que iluminavam brevemente seu rosto contorcido em deleite sádico, enquanto ele saltava de galho em galho.
— Pare com isso — Rui disse, segurando o braço dela com firmeza, sentindo o tremor de raiva em seus músculos. — O único jeito é seguir em frente e passar pela manticora. — Ele a puxou gentilmente, mas com urgência, enquanto o eco dos tiros ainda reverberava, atraindo guinchos distantes de criaturas despertas nas profundezas.
— Do que está falando? É mais seguro voltarmos! — Leilah gritava, discordando.
— Acha mesmo? Não percebeu… Desde que entramos nessa floresta, estávamos sendo vigiados. Achei que era por criaturas selvagens, mas, vendo como esse velho se movimenta, agora entendi: ele e outros já estavam nos observando há algum tempo. Se perdermos um dia inteiro aqui, acabaremos tendo que acampar, e esse local não parece nem um pouco propício para isso. — Os instintos de Rui o fizeram perceber a armadilha.
— Ah, vejo que você é diferente das garotinhas nascidas em berço de ouro, não é, garoto? — O velho falava com seu sorriso estranho em cima de um galho.
— "Droga, como eu não percebi isso..." — Leilah mordia o lábio de frustração, olhando para o velho em cima do galho com uma feição de fúria.
Assim o grupo caminhava se afastando do velho que gritou atrás deles:
— um aviso, garoto! se for continuar daqui pra frente, tira essa ruiva peituda da direção! sei como deve ser tentador ir atrás vendo a bunda dela, mas é como dizem: mulher no volante, perigo constante! — Sua voz se perdeu em uma cascata de risos roucos, ecoando como fantasmas zombeteiros enquanto ele desaparecia nas sombras, deixando para trás um rastro de esporos que dançavam no ar como confetes.
Com Rozaliya sendo puxada com uma expressão de fúria, eles seguiram para a parte mais escura da floresta, onde a manticora se escondia, o caminho se estreitando em um túnel de ossos entrelaçados que pareciam fechar-se como mandíbulas, o ar crescendo mais pesado com o cheiro de predador à espreita.
Parte 5
À medida que o trio se aprofundava no centro da floresta, o ambiente, que já era alienígena, tornava-se ativamente hostil, sussurrando ameaças através do vento que uivava baixinho entre as estruturas ósseas, carregando ecos distantes de estalos que faziam o coração acelerar em um ritmo irregular. A trilha desapareceu, forçando-os a navegar pela paisagem óssea, onde raízes fossilizadas emergiam do solo como garras petrificadas, forçando-os a contornar obstáculos, o suor escorrendo pelas costas e misturando-se ao cheiro úmido de decomposição que impregnava o ar.
Mas sem temor eles continuaram em frente, Os Fungos-Coração, que antes eram esporádicos, agora dominavam a paisagem, crescendo em aglomerados que pareciam tumores inchados na carne da floresta, um musgo vermelho como sangue fazia veios pela terra.
TUM-TUM... TUM-TUM...
O som grave e rítmico ecoava pela floresta, quanto mais eles adentravam nela.
E no centro dela, repousava o marco principal: o crânio colossal de uma criatura, com rachaduras que pareciam cicatrizes de batalhas. Era do tamanho de uma colina, com órbitas oculares que eram cavernas escuras e dentes do tamanho de menires, projetando sombras abissais que engoliam a luz ao redor. Espalhados ao redor do crânio, como oferendas grotescas, estavam os troféus da Manticora: estátuas de cristal de criaturas e pessoas, presas em poses de terror eterno, com expressões congeladas em gritos silenciosos que pareciam ecoar na mente, e os restos enferrujados de armaduras e poças de sangue de aventureiros menos sortudos cercavam o local.
Este não era um simples habitat. Era um matadouro, um lugar onde a morte se acumulava como camadas de poeira antiga, o ar carregado de um silêncio expectante que precedia o caos, e o chão marcado por sulcos profundos que pareciam cicatrizes de presas arrastadas.
Enquanto caminhavam, Rozaliya ainda resmungava sobre o encontro anterior, sua voz ecoando baixinho contra as paredes ósseas, misturando-se ao pulsar distante dos fungos, enquanto ela chutava uma pedra solta que rolava para a escuridão com um clique acusador. — Aquele velho... até entendo ele ter despertado desejos por mim. É óbvio que com toda a minha beleza, todos os homens ficam de pau duro e abanando o rabinho atrás de mim. Mas ainda assim, ele deveria aprender a se controlar. — Seu tom era uma mistura de irritação e vaidade, os olhos flamejando com o resquício de raiva.
— Controle a boca por agora, princesa, não parece ser um bom local para conversarmos — Rui a puxava, falando e observando sua volta como se tentasse ficar pronto para qualquer ataque surpresa.
Leilah, caminhando ao lado dos dois, observava a princesa com ainda mais curiosidade. Mesmo naquele momento de tensão, ela parecia estranhamente calma. Com admiração nos olhos, tentando ser mais como ela, Leilah falou: — É incrível, alteza. Sua aparência realmente consegue encantar quem a vê, mesmo à primeira vista. — Sua voz saiu suave, quase reverente.
— Sério? Não me diga que você também vai começar a agir como ela… — Rui murmurava sem tirar os olhos dos arredores.
Já Rozalia parou e se virou para ela com um sorriso malicioso, o movimento súbito fazendo o ar ao redor se agitar ligeiramente. — Oh? E você? Ficou toda molhadinha por mim também? Se for o caso, eu posso até te dar uma chance. Uma noitada, só nós duas. Mas só depois que a gente resolver o problema dessa manticora, óbvio. — Seus olhos dançavam com provocação, inclinando-se ligeiramente para frente.
O rosto de Leilah se tornou um tomate, o calor subindo pelo pescoço até as orelhas, enquanto ela piscava rapidamente. Ela gaguejou, completamente sem reação, as palavras embolando na garganta como se o ar tivesse se tornado espesso demais para falar. — N-não! Alteza, não foi isso que eu quis...
— É óbvio que ela não estava falando nesse sentido. — Rui interveio, a voz cansada. — Era so um elogio. Pare de trocar os pés pelas mãos.
— Entendo, entendo... uma pena — disse Rozaliya, fazendo um biquinho de decepção e olhando Leilah de cima a baixo, seus olhos percorrendo as curvas da garota com uma apreciação exagerada, o sorriso curvando-se em diversão. — Eu também queria experimentar um pouco de você. — O tom era leve, mas carregado de uma insinuação que fazia o silêncio seguinte parecer mais pesado.
Leilah ficou ainda mais vermelha, se é que era possível, o rubor espalhando-se como fogo selvagem, enquanto ela desviava o olhar para as sombras dançantes nas paredes ósseas, sentindo o coração martelar. — M-mas não há por que querer algo assim... não tem nada de interessante em mim. — Sua voz saiu baixa, quase um sussurro, carregada de insegurança que contrastava com sua postura guerreira.
— Claro que tem! — Rozaliya retrucou, como se fosse óbvio. — Você é fofa, toda delicada. Seria ótimo ver como você iria gemer na cama. — O riso borbulhava em sua garganta, ecoando levemente contra o dossel ósseo acima.
— DÁ PRA PARAR DE COMETER ASSÉDIO SEXUAL COM MEUS OUVIDOS?! — Rui explodiu, o grito ecoando pela clareira silenciosa fazendo as aves escondidas nas árvores voarem.
O grito foi um erro, rompendo o equilíbrio precário do ambiente como uma pedra atirada em um lago calmo.
Algo se moveu, um contorno pálido se destacando contra a escuridão absoluta, o ar vibrando com um zumbido baixo que fazia os dentes zumbirem em ressonância. Quando finalmente emergiu sob a luz pulsante, ficou claro que esta criatura não pertencia a nenhum bestiário conhecido, nem mesmo aos contos de fadas mais sombrios dos humanos, uma abominação, com movimentos que desafiavam a lógica da natureza.
Seu corpo era de um leão, mas onde deveria haver pelo dourado, havia placas sobrepostas de quitina pálida, da mesma cor e textura das árvores-osso que os cercavam. Uma camuflagem nascida no inferno, perfeita e aterrorizante, que fazia o contorno da besta se fundir com as sombras até o último instante. Asas de morcego gigantescas, que tapavam toda luz do céu e mergulhavam a floresta abaixo dele em total escuridão.. Mas a verdadeira abominação era seu rosto, uma visão que queimava na mente como um ferrete quente.
Tinha um formato vagamente humanoide, mas desprovido de pele, músculos ou qualquer vestígio de expressão, uma máscara negra e retorcida que evocava um pavor primal. múltiplos olhos negros e facetados, brilhando com uma inteligência fria e predadora. Em vez de um rugido, a criatura emitiu uma série de estalidos agudos e um som sibilante que imitava a cadência da fala humana — uma zombaria grotesca da linguagem, como se zombasse da humanidade dos intrusos com ecos distorcidos de palavras incompreensíveis.
Assim, voando até o solo, a enorme criatura pousou e, pela primeira vez, soltou seu rugido, que parecia uma mistura de rugido de leão ao mesmo tempo em que diversos gritos de desespero ressoavam em conjunto. O instinto gritou. O trio explodiu em movimento.
— Proteção da Égide! — A voz de Leilah foi um trovão. Ela não recuou; ela avançou. Ela bateu Punho no solo. Uma onda de luz dourada irrompeu criando um escudo de ether na frente deles, uma barreira instantânea que desviou uma saraivada invisível de... pressão de ar. A Manticora tinha se movido, suas asas de morcego criando um vácuo que tentou sugar o grupo para suas garras.
— Sai da frente! — Rozaliya gritou. O éter vermelho criava duas pistolas em suas mãos, que ela usava para desferir uma chuva de tiros na manticora.
No entanto, as balas batiam contra o escudo de Leilah e não chegavam até o alvo.
— O que você acha que tá fazendo? Desse jeito eu não vou acertar! — Ela então criou um detonador abaixo de seus pés, não para atacar, mas para se mover. Usando a explosão como propulsão, ela disparou por cima do escudo de Leilah e, novamente, tentou atirar.
— Dança Rúnica: Fogo Fátuo! — ela gritou.
Dessa vez, ela não atirou uma saraivada; ela disparou uma tempestade. Projéteis de energia vermelha e flamejante cortaram a escuridão, cada tiro iluminando os múltiplos olhos da besta.
Mas, dessa vez, já conhecendo o tipo de ataque do inimigo, a Manticora facilmente desviou.
— Espera não saia da barreira. — Leilah gritou mas era tarde demais.
Alcançando ela em pleno ar com um salto a gigantesca manticora novamente soltou seu rugido mais agora com a boca cheia de Ether roxo, um estrondo sonico foi lançado derrubando varias arvores no solo a princesa por pouco não foi completamente atingida pois no instante que a criatura abria a boca rui saltava e a protegia com seu corpo.
Enquanto descia, a manticora aproveitou o gigantesco crânio como pista de pouso, aterrissando nele. O impacto fez o crânio ranger, e ela se empoleirou na órbita ocular vazia, uma gárgula no trono do inferno. Seus estalidos ecoaram, uma zombaria distorcida.
— Alteza! — Leilah gritou.
No minuto em que aterrissaram, Rozaliya encarou Rui preocupada; ele estava com sangue saindo dos ouvidos e tremendo um pouco.
— Eu vou acabar com aquele inseto superdesenvolvido. — Rozaliya rosnou, recarregando suas pistolas com um estalar de energia.
A Manticora chicoteou a cauda. O movimento foi mais rápido que o som.
FWHIP-THWACK!
Não foi uma chuva de espinhos. Foi um único projétil de obsidiana do tamanho de uma lança, vindo direto para o peito de Rozaliya.
Leilah não teve tempo de gritar. Ela agiu.
KLANG!
Ela se jogou na frente da princesa, interceptando a lança com seu escudo de Ether. A força do impacto foi cataclísmica. O som de metal vibrando foi ensurdecedor. Leilah foi arrastada para trás, suas botas cavando trincheiras de dez metros no chão de osso, seus braços gritando de dor enquanto faíscas douradas e negras explodiam do ponto de impacto. Ela mal se manteve de pé.
Enquanto Leilah estava presa, absorvendo o impacto principal, a Manticora riu — um som sibilante e agudo — e abriu suas asas.
SHIIIIING!
Uma segunda saraivada, desta vez de centenas de agulhas menores, disparou de debaixo de suas asas, contornando a defesa de Leilah.
Era uma armadilha. O primeiro tiro foi a isca; este era o ataque mortal.
— Eu não vou conseguir Bloquear! — Leilah gritou, ainda presa no mesmo local.
Rui, que ainda estava se recuperando, começou a se mover com seu plano já traçado.
— Abraço Sombrio!
Ele bateu a palma da mão no chão. As sombras sob o crânio gigante ganharam vida. Tentáculos de pura escuridão dispararam, não para a Manticora, mas para as estátuas de cristal ao redor. Com um puxão violento, Rui arremessou os macabros "troféus" petrificados no ar, usando-os como escudos improvisados.
As agulhas de obsidiana atingiram as estátuas no ar. TINK-TINK-TINK! O som de cristal se partindo ecoou. A Manticora sibilou, irritada. Sua tática de dois tempos falhou. Ela fixou seus múltiplos olhos, não em Leilah, mas em Rui, o obstáculo inesperado.
Ela se lançou do crânio.
Foi uma queda livre, um mergulho mortal. Asas fechadas, garras estendidas, mirando em rasgar Rui ao meio.
Rozaliya sem exitar começou a disparar, não na besta, mas no chão entre ela e Rui. A explosão gerada pelas balas de Ether criou uma onda de choque que tentou desviar a trajetória da Manticora, mas apenas a moveu por uma questão de milimetros.. A criatura atravessou a explosão como se fosse fumaça, o éter crepitando inofensivamente em sua quitina.
— Já é o suficiente — Rui voava sobre a manticora, que ficou surpresa ao notar as asas negras feitas de éter nas costas de Rui. — Aumento de Gravidade, 50 toneladas! — Ao dizer isso, o garoto desferiu um soco poderoso no crânio da manticora, derrubando-a no chão, quebrando o solo e causando um pequeno abalo sísmico na área.
Saindo de perto dela, Rui voou pegando distância, vendo a criatura a encarando irritada enquanto sangue descia por sua cabeça. Leilah correu para atacar a manticora. Ela se moveu como um cometa, mas a Manticora era mais rápida. Ela girou no ar, usando sua cauda massiva como um porrete.
WHOOSH!
A cauda atingiu Leilah no meio do peito. Mesmo com o escudo, a força cinética foi absurda. Leilah foi arremessada, batendo contra uma das colossais colunas vertebrais com um CRACK doentio que era parte osso do cenário. Ela caiu no chão, imóvel por um segundo.
Rui vendo aquilo afastado ergueu as mãos, sombras se formando, mas ele sabia que era tarde demais. O rosto humanoide retorcido em poucos minutos estava a centímetros de distância. Os múltiplos olhos negros da Manticora eram poços de vácuo, e Rui viu a morte neles. A bocarra sibilante se projetou, não para um rugido, mas para um bote, as presas internas gotejando um veneno que distorcia a própria luz.
BANG!
Uma explosão vermelha-rubi, aguda e ensurdecedora, detonou não na Manticora, mas no corpo de Rui.
A onda de choque do "Fogo Fátuo" de Rozaliya, O concedeu o impulso necessario para sair da direção da boca da criatura assim usando as asas negras. Ele se afastou ainda mais..
A Manticora mordeu o vácuo. Suas mandíbulas se fecharam com um estalar de guilhotina no exato local onde Rui estava.
— Você... tá tentando me matar, sua louca?! — Rui rosnou, cuspindo poeira e sangue, o zumbido em seus ouvidos misturado ao eco da explosão.
— Te salvar, seu virgem ingrato! — Rozaliya gritou de volta, seu recuo já se transformando em um movimento ofensivo enquanto criava duas novas pistolas. — Você ia virar comida de inseto!
A Manticora se virou, irritada pelo fracasso. O sangue em sua cabeça, do soco de Rui, pingava no chão, sibilando como ácido ao tocar o musgo vermelho. Ela se ergueu ligeiramente e bateu as asas.
Não foi um ataque aéreo. Foi uma detonação atmosférica.
WHOOOOOSSSSHH!
Uma rajada de vento ciclônica varreu a clareira. Não era a pressão de vácuo, mas uma tempestade de areia necrótica: poeira de ossos, fragmentos de cristal e terra seca. A visibilidade caiu para zero. O ar ficou espesso, áspero, arranhando a garganta como vidro moído.
O som rítmico, TUM-TUM, dos Fungos-Coração foi engolido pela névoa branca e fantasmagórica.
— Droga! Não consigo enxergar nada! — A voz de Leilah veio da névoa, tensa. Ela estava de pé, o braço esquerdo pendendo de forma estranha, mas seu escudo dourado brilhava erraticamente, um farol sufocado na poeira.
— Fiquem... juntos! — Leilah gritou, sua voz carregada de dor e urgência. — Formem um triângulo! Protejam as costas uns dos outros! É a única chance!
Rui se levantou, sacudindo fragmentos de ossos das asas de éter, que tentavam dissipar a poeira ao seu redor, sem sucesso. — Tch. Não me dê ordens, escudeira.
Apesar da reclamação, seu instinto de sobrevivência falou mais alto. Ele se orientou pela luz dourada e se moveu.
— E você, princesa? Vai ficar aí parada parecendo um alvo? — Rui latiu para a névoa.
Um projétil vermelho passou assobiando por sua cabeça, vindo da direção de Rozaliya. — Eu não preciso que você me diga o que fazer! Já disse que vou acabar com aquele inseto assim que ele der as caras na minha frente.
Silêncio.
Então, um estalido agudo ecoou, quitina contra osso. Perigosamente perto, à esquerda de Rozaliya.
A Manticora estava caçando pelo som.
Um vulto pálido se materializou da poeira. Não a criatura inteira, apenas a ponta de sua cauda. Rápida como um raio, ela cortou o ar, mirando no ponto cego de Rozaliya.
Rui não teve tempo de pensar. O instinto gritou.
— Abraço Sombrio!
A sombra de uma costela gigante próxima disparou, não como um tentáculo, mas como um aríete de éter negro. Ela se enrolou na cintura de Rozaliya no instante em que a cauda atacava.
Com um puxão brutal que roubou o fôlego da atiradora, Rui a arrancou do caminho.
THWACK!
A lança de obsidiana se cravou profundamente no chão onde o peito dela estivera um milissegundo antes, vibrando com uma energia mortal.
Rozaliya caiu de bunda no chão, bem ao lado de Rui e Leilah, completando o triângulo defensivo por puro e humilhante acidente.
Ela olhou para Rui, os olhos vermelhos arregalados, a provocação momentaneamente esquecida. — Você...
— Cale a boca e lute. — A voz de Rui era fria, cortante.
A poeira de ossos começou a assentar lentamente, revelando a Manticora a uns vinte metros de distância. Ela circulava o trio, seus múltiplos olhos analisando cada um deles, avaliando a nova formação. Ela sibilou, um som de puro desprezo.
— Ela é inteligente. — Leilah murmurou, o escudo firme à sua frente, apesar do braço que tremia. — Ela nos separou. Agora... ela vai tentar quebrar nossa formação.
— Que tente. — Rozaliya se levantou, um sorriso perigoso surgindo. Ela bateu as pistolas uma na outra, criando faíscas vermelhas. — Vamos ver o que quebra primeiro.
A Manticora se empinou, abrindo as asas de morcego em sua plenitude, um eclipse pálido tapando novamente a pouca luz. O ar começou a vibrar com uma nota baixa e gutural.
— Ela vai mergulhar! — Rui gritou.
— Proteção da Égide: Santuário! — Leilah não olhou para cima. Ela bateu o pé no chão. A luz dourada explodiu para cima, formando e fechando-se em uma cúpula sólida sobre os três, um instante antes da Manticora cair sobre eles como um meteoro pálido.
KRA-KOOOOM!
O impacto foi apocalíptico. A cúpula dourada rachou instantaneamente, teias de aranha de fratura se espalhando pela luz. A Manticora estava em cima deles, garras e presas arranhando a barreira, empurrando com todo o seu peso titânico.
— Não... vou... aguentar! — Leilah gritou, o éter dourado vacilando, sangue escorrendo do canto de sua boca pelo esforço.
— Não solte! — Rui colocou a mão no ombro de Leilah, canalizando seu próprio éter. Seus olhos se fixaram na silhueta da besta que arranhava o domo. — Alteza, agora!
— O quê "agora"? Eu não consigo acertar ela daqui! — Rozaliya protestou.
— Eu não disse para acertar. Eu disse AGORA! — Rui gritou. Ele mudou seu foco. — Aumento de Gravidade: 100 Toneladas!
O éter negro de Rui fluiu para o chão. A gravidade não atingiu a Manticora. Atingiu a base do domo de Leilah.
Em vez de quebrar para dentro, a gravidade aumentada de Rui ancorou o escudo, fundindo-o ao chão, tornando-o inamovível. A pressão oposta — a Manticora empurrando para dentro, a gravidade puxando o escudo para baixo — criou um efeito de prensa.
A Manticora rugiu, confusa, suas garras agora presas na energia dourada solidificada pela gravidade.
— Ah... entendi! — Os olhos de Rozaliya brilharam com compreensão assassina. Ela não mirou para cima. Ela mirou para o chão, dentro da cúpula.
— Dança Rúnica: Ressonância!
Ela disparou uma única bala vermelha no solo ósseo. A bala não explodiu. Ela mergulhou.
— Leilah, solte em três! — Rozaliya ordenou.
— Rui, tire a gravidade! — Leilah ofegou.
— Três! — gritou Rui.
— Dois! — gritou Rozaliya.
No "um", a coordenação foi perfeita.
Leilah desfez a cúpula. A Manticora, subitamente liberada da pressão, começou a cair para dentro sobre eles. Rui simultaneamente cancelou a gravidade.
A armadilha estava armada.
BOOOOOOOOM!
A bala de Rozaliya, agora diretamente sob a Manticora, detonou. Uma coluna de éter vermelho puro explodiu para cima, atingindo a criatura em cheio no peito já ferido, onde o soco de Rui havia pousado e onde sua armadura agora estava rachada.
Foi um golpe devastador e visceral.
A quitina pálida se estilhaçou. A Manticora foi lançada para o alto como um boneco, suas asas batendo descontroladamente, um grito agudo de pura agonia escapando de sua bocarra sibilante – um som que não tinha nada de zombaria.
Ela caiu pesadamente a trinta metros de distância, rolando e levantando uma nuvem de poeira, uma de suas asas de morcego pendendo, rasgada e inútil.
O trio respirou fundo, ofegante. O silêncio que se seguiu foi pesado.
— Nós... conseguimos? — Leilah perguntou, caindo de joelhos, exausta.
— Eu consegui. — Rozaliya corrigiu, girando a pistola fumegante no dedo, embora ela também estivesse tremendo.
Rui apenas observou a criatura caída. — Ainda não.
A Manticora se levantou. Lentamente. Com dificuldade.
O buraco em seu peito era hediondo, éter roxo vazando como icor. Mas ela não estava morta.
Ela se virou, e todos os seus múltiplos olhos, agora incandescentes de fúria, focaram em uma única pessoa. Rozaliya.
Ela ignorou Rui. Ignorou Leilah. A princesa havia lhe causado dor real.
A Manticora abriu a boca, e o som sibilante retornou, mas desta vez, não era fala. Era um cântico.
O éter roxo que vazava dela começou a girar, revertendo o fluxo, sendo sugado de volta para sua cauda. O ar na clareira tornou-se irrespirável, denso com uma energia que parecia sugar a própria vida do ambiente. O pulsar dos Fungos-Coração acelerou a um crescendo maníaco, TUM-TUM-TUM-TUM!, antes de parar abruptamente. Um silêncio mortal caiu, mais aterrorizante que qualquer rugido. Todo o éter roxo da floresta, todo o poder da Manticora, estava agora focado naquela agulha de obsidiana pulsante em sua cauda, uma singularidade de pura aniquilação apontada diretamente para Rozaliya.
A princesa sentiu. Pela primeira vez, a cor drenou de seu rosto. Seus lábios se curvaram num rosnado que era parte desafio, parte terror. — Sua... aberração... nojenta...
— Leilah! — A voz de Rui foi um estalo, cortando o pânico. — O escudo não vai aguentar! Não bloqueie! Mude o ângulo! Para cima! Agora!
Leilah não questionou. O desespero limpou sua mente. Seu braço deslocado era uma agonia, mas ela bateu o pé bom no chão. O éter dourado explodiu, não como uma cúpula, mas como uma rampa angular, uma cunha de luz sólida que se materializou entre a Manticora e Rozaliya, um instante antes da criatura se lançar.
Não houve salto. Foi uma ignição.
A Manticora disparou como um projétil balístico, um borrão pálido de quitina e morte, deixando um vácuo em seu rastro. A agulha roxa gritou.
Ela atingiu a rampa de Leilah.
KRA-KAAAA!
A "Proteção da Égide" se desintegrou em um milhão de fragmentos dourados. Leilah foi jogada para trás como uma boneca de pano, o som de suas próprias costelas partindo ecoando em seus ouvidos. Mas funcionou.
O impacto, mesmo que breve, alterou a trajetória da Manticora. Em vez de um ataque horizontal, ela foi lançada em um arco ascendente, ainda focada fanaticamente em seu alvo.
Mas seu alvo não estava mais lá.
— Dança Rúnica! — Rozaliya gritou, não com fúria, mas com uma clareza fria.
Ela disparou suas pistolas, não contra a besta, mas contra o chão sob seus próprios pés. A explosão dupla a catapultou para o ar, para longe da trajetória original, mas, graças à rampa de Leilah, ela agora estava diretamente no novo caminho do monstro.
A Manticora sibilou, triunfante. Ela corrigiu seu curso no ar, a agulha roxa mortal a centímetros de empalar a princesa em pleno voo.
— Você é minha... — Rozaliya sussurrou.
— Agora! — Rui rugiu, erguendo as duas mãos para o céu.
Ele não mirou na Manticora. Ele mirou no ar acima dela.
— Abraço Sombrio: Compressão!
As sombras das colossais estruturas ósseas ao redor da clareira ganharam vida. Elas dispararam, não como correntes, mas como placas sólidas de escuridão tangível, criando uma caixa ao redor da Manticora no ar. Simultaneamente, Rui ativou sua gravidade, não sobre a besta, mas sobre a própria prisão de sombras.
A Manticora, voando a uma velocidade impossível, bateu de frente contra uma parede de gravidade solidificada.
O som foi o de um trovão batendo em uma montanha.
A criatura parou no ar como se tivesse atingido rocha sólida. O impulso foi tão grande que suas próprias placas de quitina começaram a rachar sob a pressão. A agulha de energia roxa em sua cauda vacilou, a concentração quebrada.
Ela estava presa. Um alvo perfeito.
Rozaliya estava acima dela, olhando para baixo. O sorriso malicioso tinha desaparecido, substituído por uma máscara de foco letal. O éter vermelho em suas mãos se dissolveu e se refez. Não eram mais pistolas. Era um único e longo rifle, com runas brilhando ao longo do cano.
Naquele instante suspenso, não havia arrogância. Apenas o peso da gravidade de Rui segurando seu alvo, a memória do escudo quebrado de Leilah e o cheiro de sua própria pólvora rúnica.
Ela não hesitou.
— Fogo Fátuo: Perfuração.
Ela mirou. Não na cabeça. Mirou no buraco devastado em seu peito, a ferida que eles haviam criado juntos.
Ela puxou o gatilho.
Não houve explosão. Houve um zunido agudo, e um feixe de luz vermelha, fino como um fio de cabelo e brilhante como um sol, disparou do rifle.
O feixe atingiu a ferida.
Por um segundo, nada aconteceu.
Então, a luz vermelha explodiu para fora das costas da Manticora, perfurando-a completamente.
A energia necrótica roxa na cauda da besta entrou em colapso. Ela implodiu, uma detonação silenciosa de luz roxa que viajou da cauda para o corpo, desintegrando a criatura de dentro para fora.
Os múltiplos olhos negros se apagaram, um por um.
A prisão de sombras de Rui se desfez. O que restou da Manticora, uma casca carbonizada de quitina pálida e éter roxo fumegante, caiu do céu.
CRASH.
Ela atingiu o crânio colossal, quebrou o osso antigo e caiu dentro da órbita ocular escura, desaparecendo na escuridão de onde viera.
O silêncio absoluto tomou conta da floresta.
Um silêncio tão profundo que era quase ensurdecedor. O TUM-TUM-TUM maníaco dos Fungos-Coração havia desaparecido, deixando para trás apenas o eco do vento entre os ossos, o cheiro de ozônio e poeira, e o som áspero de três respirações dolorosas.
Rozaliya aterrissou, seus joelhos cedendo. O rifle desapareceu. Ela estava ofegante, o suor pingando de seu queixo.
Leilah estava caída contra a coluna vertebral que quase a matara, tentando inutilmente colocar o braço deslocado de volta no lugar, o rosto pálido de dor, um gemido baixo escapando por entre os dentes cerrados.
Rui desativou suas asas, caindo de joelhos, o esforço de prender a Manticora o esgotando. Sangue ainda escorria de seus ouvidos, e seus braços tremiam incontrolavelmente.
Por longos segundos, ninguém se moveu. A adrenalina começou a recuar, e a dor crua de seus ferimentos inundou seus sentidos. Vivos. Feridos. Exaustos.
Os três se entreolharam na clareira devastada. O ar estava pesado com exaustão, dor.
Rozaliya foi a primeira a quebrar o silêncio, sua voz rouca, mas já recuperando o tom arrogante.
— Ugh. — Ela cuspiu no chão. — Finalmente. Essa coisa quase me deixou toda molhadinha...
Rui a encarou novamente, irritado. — Maldita, você quer dizer molhada de suor, não é?! Droga, foi para isso que eu mantive a audição? Teria sido melhor se a Manticora tivesse destruído meus tímpanos, cretina.
Leilah soltou um gemido baixo, tentando se levantar. — Nós... nós vencemos...
E assim eles continuaram até que a força para se levantar chegasse.
Parte 6
Longe dos ventos secos do deserto cinzento da Floresta-Ossuário. A quilômetros dali, erguia-se Sancro, cercada por torres de aço polido perfurando o céu perpétuamente escuro, banhadas por um mar de luzes neon que dançavam como espíritos inquietos — vermelhos pulsantes, azuis frios e verdes venenosos refletindo em poças de chuva artificial. Esta não era a selvageria predatória de Zan, nem o santuário sombrio de Zohan. Sancro era o punho de ferro do Imperador Qin, envolto em veludo: ordem imposta com precisão cirúrgica, progresso forjado em fornalhas industriais e prosperidade extraída à força das veias do reino graças ao conhecimento adquirido de Elysium.
Nas ruas largas e impecáveis, fontes jorravam água purificada em praças movimentadas, um luxo que faria qualquer habitante de Umbra salivar — água limpa, sem o gosto metálico de sangue ou veneno. Vendedores ambulantes, com carroças flutuantes impulsionadas por magia mecânica, ofereciam espetos de carnes exóticas grelhadas no vapor de cristais quentes, frutas frescas importadas de terras distantes via portais logísticos implacáveis do império. O ar cheirava a especiarias picantes misturadas com o zumbido elétrico de anúncios holográficos, prometendo um futuro onde a luta diária pela sobrevivência era trocada pelo tédio reconfortante da civilização
Era como se Sancro fosse uma cena de um anime urbano-futurista, onde a modernidade colidia com o sobrenatural — demônios em ternos elegantes negociando em cafés flutuantes, súcubos checando holofones enquanto passeavam com caudas enroladas em acessórios fashion. E no coração pulsante desse tédio civilizado, aninhado entre arranha-céus de vidro espelhado, ficava o fliperama "Pixel Demon", um oásis de caos controlado onde o estresse da ordem imperial era liberado em pixels explosivos.
Dentro do "Pixel Demon", o ar era uma sinfonia caótica: explosões digitais ecoando como trovões miniatura, músicas sintetizadas pulsando em ritmos hipnóticos que faziam o chão vibrar levemente, e o tilintar incessante de moedas caindo em caixas metálicas como chuva de ouro falso. As paredes estavam cobertas de pôsteres holográficos de heróis pixelados lutando contra monstros virtuais, e o cheiro de pipoca misturava-se ao suor de jogadores ansiosos. Máquinas antigas zumbiam ao lado de cabines de VR que simulavam batalhas épicas, e no canto mais distante, um grupo de íncubos adolescentes competia em um jogo de dança, seus passos sincronizados com luzes estroboscópicas que pintavam o ar de cores vivas.
No centro de tudo, cercada por uma multidão boquiaberta de demônios jovens, súcubos com caudas balançando em excitação e íncubos com olhares admirados, estava uma garota que parecia ter saído diretamente de uma rua agitada de um mundo humano. Seus cabelos pretos curtos emolduravam um rosto concentrado, olhos rosa brilhando com o reflexo das telas como joias sob neon. Vestida em um estilo streetwear moderno que gritava rebeldia urbana — jaqueta laranja com capuz, mangas longas listradas em preto e branco, top preto justo, minissaia preta com cinto utilitário, meias pretas longas subindo acima dos joelhos, tênis estilosos em branco, preto e laranja, e uma bolsa verde pendurada no ombro —, ela se movia com uma precisão hipnótica. Seus dedos dançavam sobre os botões de uma máquina de luta antiga.
Um pirulito estava permanentemente em sua boca, girando distraidamente enquanto ela desviava de ataques virtuais com a graça de uma dançarina de rua. Seu nome era Katsuragi, e ela estava quebrando todos os recordes da casa, um após o outro, como se o jogo fosse uma extensão de seu próprio corpo.
A multidão murmurava em admiração, alguns filmando com holofones, outros apostando moedas em quanto tempo ela duraria. — INACREDITÁVEL! Ela venceu o chefão sem tomar um único golpe! — gritou um súcubo jovem, pulando no lugar. — Quem é essa garota? Ela está aqui há horas!
De repente, o barulho da multidão foi interrompido por um som diferente: um baque surdo e um gemido de dor vindo da entrada. Um grupo de arruaceiros invadiu o lugar, demônios maiores que a média com jaquetas de couro rasgadas, cicatrizes glowing sob as luzes neon e sorrisos cruéis que revelavam presas afiadas. Eles encurralaram um jovem demônio, um sujeito magricelo com óculos tortos, que tremia como uma folha em uma tempestade.
— Calma lá, amigão... — rosnou o líder, um brutamontes com chifres curtos curvados como ganchos e um anel de caveira reluzente no dedo. Seus olhos amarelos faiscavam com malícia, e ele cheirava a cigarro barato e suor rançoso. — Sinto que você é o sujeito certo para resolver um probleminha nosso. E eu chamei meus amigos para jogar, mas acabei esquecendo minha carteira, sabe...
— Hahaha, lá vai ele. — Um dos demônios ao lado dele falou, enquanto os outros riam.
— E-eu eu eu... — o garoto gaguejou, encolhendo-se contra a parede, seus chifres minúsculos tremendo. — Por favor, eu tive que economizar muito essa semana...
— Perfeito, isso vai deixar a gente aproveitar ainda mais. — O líder agarrou o demônio pelo colarinho da camisa amarrotada, erguendo-o no ar como um boneco. Seus comparsas o esvaziaram rapidamente, pegando sua carteira e revirando os bolsos, moedas tilintando no chão como confetes de uma piada ruim. Um deles até pegou um sanduíche meio comido do bolso do garoto e deu uma mordida, mastigando ruidosamente. — Opa, esse sanduíche da lojinha é uma delícia! — Tenha decência, cara, ao menos deixe o moleque ficar com o sanduíche dele, hahaha! — Assim, eles o largam no chão e começam a entrar mais a fundo no fliperama, deixando o garoto que teve que ir embora sem dinheiro para poder jogar.
Enquanto os arruaceiros comemoravam a extorsão fácil, a multidão ao redor de Katsuragi explodiu em aplausos novamente, como uma onda de energia em um concerto. — NOVO RECORDE! — berrou um íncubo, batendo palmas com tanta força que suas asas membranosas vibraram.
O líder dos arruaceiros se virou, irritado, seu rosto se contorcendo. — Que diabos é toda essa comoção? — ele resmungou, marchando em direção à multidão como um touro enfurecido, os ombros largos abrindo caminho. A multidão se abriu instintivamente. Ele avistou Katsuragi, agora focada em um jogo de ritmo, seus pés batendo levemente no chão sincronizados com a batida eletrônica. — Estão fazendo todo esse barulho por causa disso?... que piada, ela não tá fazendo nada demais. É só um pouco de sorte.
No instante em que a palavra "sorte" saiu de sua boca, uma lata de refrigerante vazia voou pelo ar em um arco perfeito, girando como um shuriken em câmera lenta, e bateu na testa dele com um clack metálico. O impacto ecoou como um efeito sonoro, e gotas de refrigerante pegajoso espirraram em seu rosto, escorrendo pelos chifres.
Katsuragi não havia nem olhado. Seus olhos rosa ainda estavam fixos na tela, dedos voando nos botões como se nada tivesse acontecido.
O fliperama ficou em silêncio absoluto, o único som sendo o bip-bip da máquina de Katsuragi. O líder limpou o refrigerante pegajoso do rosto com a manga, sua expressão escurecendo para um vermelho furioso, veias pulsando na testa. — O que... você acha que está fazendo, sua vadiazinha? — Ele cuspiu as palavras, avançando com passos pesados que faziam o chão tremer.
Seus amigos se espalharam, encurralando-a contra a máquina como lobos cercando uma presa. O líder estendeu a mão para agarrá-la, os dedos grossos se fechando como garras. Mas parou de repente, piscando confuso. Ele olhou mais de perto, inclinando a cabeça. As orelhas dela — humanas, sem pontas. A falta de chifres, de cauda serpenteante, de marcas demoníacas glowing na pele. Seus olhos se arregalaram.
— Espera aí... — Um sorriso lento e incrédulo se espalhou por seu rosto, revelando dentes amarelados. — Você não é um demônio. Você é... uma humana?
A revelação fez a multidão prender a respiração coletivamente, o ar ficando pesado com tensão. Humanos em Umbra eram escravos acorrentados em minas escuras ou petiscos em banquetes sombrios, não desafiantes casuais em fliperamas: "Uma humana? Aqui? Como ela chegou até Sancro sem ser capturada?" Um súcubo cobriu a boca, olhos brilhando com uma mistura de medo e curiosidade.
— Hah! Uma humana! — ele gargalhou. Seus capangas se juntaram, rindo histericamente. — E uma humana que se irritou só porque eu revelei seu segredinho! Ei, garotinha, você sabe que humanos são tipo... bichinhos de estimação, por aqui, né? Hahaha, acho que a minha estrela da sorte está brilhando hoje. Vamos vendê-la no mercado negro e conseguir ainda mais grana!
Katsuragi finalmente parou de jogar. A tela atrás dela piscou "GAME OVER" em letras vermelhas dramáticas, acompanhadas de uma música triste sintetizada. Ela se virou lentamente, o pirulito ainda em sua boca, olhos rosa fixos neles com uma intensidade que cortava o ar. O fliperama pareceu encolher ao seu redor, como se ela fosse o centro de uma aura invisível.
— Eu odeio essa palavra — ela disse, a voz baixa e fria.
— "Humana"? — zombou um de capangas.
Ela tirou o pirulito da boca com um pop audível. — "Sorte".
A multidão murmurou, confusa. O líder riu na cara dela, inclinando-se para frente. — Que ridículo. Só pessoas azaradas reclamam da sorte.
CRAC!
Katsuragi mordeu o pirulito com tanta força que o doce se partiu em dois, fragmentos caindo no chão como confetes de raiva. Seus olhos rosa estreitaram, uma veia pulsando na testa.
— E você, garotinha — o líder continuou, o sorriso desaparecendo para uma expressão ameaçadora —, realmente não tem sorte nenhuma. Você irritou o grupo errado. — Sua mão se moveu rápido como um raio, agarrando o peito dela com força.
Katsuragi nem vacilou. Ela apenas olhou nos olhos dele, a raiva inicial substituída por uma calma quase entediada. O toque dele enviou um arrepio de nojo por sua espinha, mas ela o usou como combustível. — Você me atacou com uma intenção ruim... — ela disse, calmamente, sua voz ecoando com uma frieza que gelava o ar ao redor. — Cara, você realmente tem muito azar.
Antes que ele pudesse reagir, o mundo explodiu: Katsuragi se agachou com graça felina, usando a mão dele como apoio — seus dedos finos contrastando com os dele grossos —, e deu uma cambalhota para trás no ar, girando como uma acrobata. Ela aterrissou perfeitamente a vários metros de distância, pés plantados firmes no chão pegajoso de refrigerante derramado, bolsa verde balançando levemente. Sem dizer uma palavra, ela se virou e começou a caminhar em direção à saída, o capuz da jaqueta laranja balançando com cada passo casual.
— Peguem ela! — o líder gritou para seus amigos, cuspindo saliva. Mas eles não se moveram. Estavam parados, olhando para cima, rostos pálidos sob as luzes neon. Um deles gaguejou: — Chefe... olha... olha pra sua cabeça!
— O... o que foi? — o líder perguntou, confuso, tocando a testa. Um deles apontou, tremendo, para o topo da cabeça do líder. Flutuando ali, brilhando com um Ether verde, estava o número "3", pulsando levemente.
— Que porra é es- KRA-BOOOOM!
O chão de madeira sob o grupo de arruaceiros cedeu instantaneamente com um crack ensurdecedor, como se o destino tivesse apertado o botão de "falha épica". Eles despencaram para o andar de baixo, um salão de sinuca escuro e enfumaçado. Bolas de bilhar rolaram para todos os lados, e tacos caíram como dominós. — Eu avisei! — gritou um demônio lá de baixo, saindo de debaixo de uma nuvem de poeira, tossindo enquanto limpava o terno. — Eu disse que ouvi o chão ranger! Mas ninguém escuta o zelador!
No meio dos destroços, o líder tentou se levantar, empurrando um capanga de cima dele. — Saiam de cima de mim, seus idiotas! Peguem aquela garota! — Ele agarrou algo para se apoiar, puxando com força. Era um fio. Um fio de energia que havia caído do andar de cima, faiscando como serpentes elétricas. ZZZRRRKKKT! O fio puxou uma fileira inteira de máquinas de fliperama na borda do buraco, como uma reação em cadeia.
Com um gemido de metal torturado, elas tombaram, caindo em cascata diretamente sobre os arruaceiros — telas estourando em faíscas, botões voando como confetes. O som de choques elétricos e gritos agudos encheu o ar, um capanga dançando involuntariamente como se estivesse em um jogo de ritmo falho.
A multidão no fliperama superior explodiu em risadas nervosas, alguns aplaudindo como se fosse um show planejado. Katsuragi, já do lado de fora, parou na calçada movimentada e olhou para o céu escuro de Umbra. O ar noturno era fresco, carregado com o cheiro de comida de rua e escapamentos de veículos mágicos. — Acho que a estrela da sorte dele não brilhou dessa vez — ela murmurou para si mesma, colocando um novo pirulito na boca com um pop satisfatório.
Naquele exato momento, como se o universo conspirasse para uma piada final, uma velha demônio com chifres tortos e um carrinho de compras flutuante começou a atravessar a rua lentamente, resmungando sobre "jovens apressados". Um carro de luxo, vindo em alta velocidade com faróis cegantes e música alta pulsando das janelas, cantou pneus para não atropelá-la — o motorista, um demônio rico com óculos escuros, xingando alto. O veículo perdeu o controle, girou o volante em pânico e subiu na calçada com um guincho de borracha queimada. Ele atravessou a parede de vidro do fliperama em uma explosão de cacos reluzentes, e com um estrondo final que sacudiu o prédio inteiro, caiu perfeitamente dentro do buraco, em cima da pilha fumegante de máquinas e arruaceiros. Fumaça subiu em espirais, e sirenes distantes começaram a soar.
Katsuragi nem olhou para trás, um sorriso sutil curvando seus lábios ao redor do pirulito. Ela continuou andando pela noite neon de Sancro, mesclando-se à multidão de demônios noturnos.
Parte 7
A saída da Floresta-Ossuário foi como emergir de um túmulo. O ar, antes carregado com o cheiro adocicado de decomposição e o ozônio, tornou-se seco, poeirento e frio, mordendo a pele exposta como lâminas invisíveis. O solo de ossos deu lugar a uma vasta planície de areia escura e rocha nua, onde cada passo levantava nuvens finas de poeira que grudavam nas roupas suadas e nas feridas recentes, fazendo os músculos protestarem com um latejar constante.
E então, eles viram.
Ao subirem a crista de uma duna petrificada, com o vento uivando baixinho ao redor deles como um sussurro de advertência, seus olhos, acostumados à luz violeta e suave de Zohan, foram agredidos por um brilho impiedoso. Abaixo deles, não havia um cânion, nem um vale, nem uma fortaleza de rocha negra. Havia uma cidade que pulsava com uma luz que não pertencia a Umbra, como se o próprio mundo tivesse sido rasgado e costurado com fios de neon alienígena.
Sancro.
Torres de metal polido arranhavam o céu nublado, suas superfícies refletindo o brilho de incontáveis luzes de néon vermelhas, azuis e verdes que cortavam a escuridão como lâminas de energia viva. Estruturas que pareciam veias de vidro conectavam os prédios, com pequenos pontos de luz movendo-se dentro delas — talvez veículos ou pessoas, zumbindo em um ritmo incessante. Era uma colmeia de aço e ordem, barulhenta e vasta, onde o ar vibrava com o eco distante de máquinas e multidões, um contraste gritante com o silêncio sepulcral da floresta que deixaram para trás.
Rozaliya parou de andar abruptamente, o corpo tenso como uma corda de arco prestes a disparar, os olhos arregalados em choque. A arrogância habitual em seu rosto, foi momentaneamente substituída por pura incredulidade, fazendo suas orelhas pontudas tremerem levemente. — Que... diabos... é isso? — ela sussurrou, a voz baixa e rouca, como se as palavras fossem arrancadas de sua garganta contra sua vontade. Aquilo não era um reino demoníaco; parecia uma ferida infectada e brilhante no meio do nada, uma abominação que desafiava tudo o que ela conhecia sobre Umbra.
— É o progresso de Qin — disse Leilah, sua voz firme e equilibrada, contrastando com o tremor na de Rozaliya. Ela ajustou a alça de sua armadura com um gesto prático, os olhos castanhos fixos na cidade, analisando-a como se fosse um mapa de batalha. — É um dos maiores polos comerciais do Império. Dizem que a água aqui é limpa e a comida, abundante, colhida de fazendas subterrâneas iluminadas por lâmpadas artificiais que imitam o sol.
O trio começou a marchar em direção à luz invasiva, seus corpos doloridos protestando a cada passo. Conforme se aproximavam, viam as muralhas se erguerem como gigantes inabaláveis: não de pedra antiga, mas de placas de metal rebitadas, reluzindo sob as luzes, patrulhadas por sentinelas em armaduras idênticas, movendo-se com uma sincronia assustadora, como marionetes controladas por uma mente coletiva. O clangor metálico de seus passos ecoava ritmicamente, um lembrete de que ali reinava a ordem implacável de Qin.
Foi Rui quem quebrou o silêncio tenso, parando para coçar a cabeça desgrenhada, seus olhos estreitos fixos nos portões distantes. — Certo. Chegamos ao circo brilhante. Qual é o plano para entrar, alteza? — ele perguntou, o sarcasmo pingando de sua voz como veneno doce, cruzando os braços sobre o peito e lançando um olhar desafiador para Rozaliya. — Duvido que os guardas de Qin se impressionem com seus... atributos... e nos deixem passar. — Ele gesticulou vagamente para as curvas dela, mas desviou o olhar rapidamente, um rubor sutil subindo por seu pescoço.
Rozaliya parou, virou-se para ele com uma graça felina, plantando as mãos nos quadris e abrindo um sorriso lento e provocador, recuperando totalmente sua compostura como se o choque anterior nunca tivesse existido. Ela inclinou a cabeça ligeiramente, deixando uma mecha de cabelo prateado cair sobre o rosto. — Ah, Rui. Você se preocupa demais com os detalhes. — Ela começou a caminhar com seu sorriso confiante de sempre, balançando os quadris e sua cauda, como se desfilasse para um público invisível. — Você vai ver. Assim como na hora do sexo. Com jeitinho, sempre dá pra entrar.
O rosto de Rui explodiu em tons de vermelho, como se alguém tivesse acendido uma fogueira sob sua pele. Ele tropeçou em uma pedra solta, quase caindo, e apontou um dedo para ela. — S-Sua... Para de falar essas coisas! — ele gaguejou, olhando em pânico para os guardas distantes nos portões, imaginando olhares acusadores sobre eles. — Estamos tentando ser discretos! Quer que sejamos presos por indecência antes mesmo de pormos os pés lá dentro?! — Sua voz subiu uma oitava, revelando a mistura de irritação e constrangimento.
— Eu tenho um plano. — A voz calma e prática de Leilah cortou a tensão como uma lâmina afiada, fazendo os dois se virarem para ela ao mesmo tempo. Ela parou, endireitando os ombros, seus dedos tamborilando levemente na empunhadura de sua espada. — Nós vamos nos apresentar como Caçadores.
— Caçadores? — repetiu Rozaliya, confusa, inclinando-se para frente com as mãos ainda nos quadris. Ela piscou devagar, processando a ideia, e um leve franzir de cenho revelou sua surpresa genuína.
Leilah tirou de dentro de sua armadura um pequeno documento amassado e um medalhão de prata com o símbolo da guilda dos caçadores, segurando-os com cuidado. O metal brilhou fracamente sob as luzes distantes da cidade, e ela o exibiu para os companheiros, virando-o para que vissem o selo gravado. — Meu pai me fez tirar uma licença. O Imperador Qin estabeleceu um tratado de parceria surpreendente com Babylon.
Rui franziu o cenho, coçando o queixo enquanto se aproximava para inspecionar o medalhão, sua expressão passando de cética para intrigada. — Babylon? Aquele colégio frequentado por humanos? — Ele inclinou a cabeça, como se tentasse encaixar as peças de um quebra-cabeça.
— Exato — confirmou Leilah, com um aceno firme, guardando o medalhão de volta com um clique suave. — O tratado permite que Caçadores humanos certificados por Babylon entrem em Umbra, desde que registrados na Guilda de Aventureiros que Qin permitiu aqui. Em troca, Qin pode enviar seus jovens mais promissores para "Apocalipse" para aprenderem a usar o Ether no colégio “Babylon”.
Rozaliya parecia chocada, seus lábios se abrindo em um "O" silencioso antes de ela balançar a cabeça devagar, cruzando os braços sob o peito. — Humanos? Aqui? Por vontade própria?
— É uma troca de conhecimento e recursos — explicou Leilah, guardando o medalhão com um movimento fluido, seus olhos encontrando os de Rozaliya. — A Guilda de Aventureiros dá permissões especiais, como a de entrar em todos os Reinos e Cidades.
— Então você pode entrar — concluiu Rui, cruzando os braços, seu corpo se inclinando para trás. — E nós? Não temos essa licença.
— Eu mostrarei a minha — disse Leilah, com uma confiança recém-descoberta e um brilho determinado nos olhos. — Vocês são meus assistentes. Aprendizes do meu grupo. A burocracia de Qin é rígida, mas as Guildas têm autonomia. Se eu me responsabilizar por vocês, há uma boa chance de nos deixarem passar.
Rozaliya abriu um sorriso triunfante e olhou para Rui, que ainda estava carrancudo. Ela deu uma piscadela travessa, inclinando-se para perto dele o suficiente para que seu perfume floral o envolvesse. — Viu só, seu virgem teimoso? Eu não te disse? — ela cantarolou, a voz melódica, estendendo um dedo para cutucar seu peito. — Com jeitinho... a gente entra.
— CALA A BOCA, MALDITA PRINCESA BOCA-SUJA! — Rui explodiu, recuando um passo com os punhos cerrados, o rosto agora um tom escarlate profundo e com vapor praticamente saindo de suas orelhas.
O grito de Rui ecoou pela planície aberta, fazendo alguns dos guardas no portão levantarem a cabeça em sua direção, seus capacetes virando em uníssono. Ignorando o vapor que saía das orelhas de seu companheiro, Rozaliya riu alto, uma gargalhada genuína e contagiante que fez Leilah sorrir de canto de boca, e, ao lado dela, começou a marcha final em direção aos imponentes portões de aço de Sancro, sem fazer ideia do que, ou quem, os aguardava do outro lado.
Parte 8
Se Zohan era um santuário de tranquilidade e Sancro um farol de ordem neon, Zan era um monumento à entropia, um caos primordial moldado em pedra e sombra que devorava a sanidade de quem ousava contemplá-lo por tempo demais.
Era uma cidade-fortaleza colossal, um labirinto de torres negras irregulares e catedrais profanas que se erguiam em desafio a qualquer senso de arquitetura ou gravidade. O céu acima de Zan não era somente escuro; era permanentemente manchado de um vermelho doentio, como se uma estrela sangrasse perpetuamente sobre o reino, tingindo o ar com um brilho pulsante que fazia as veias latejarem em resposta. O ar fedia a fumaça industrial, sangue coagulado e ao desespero.
No centro de tudo, perfurando as nuvens vermelhas como a presa de uma besta morta, erguia-se o palácio de obsidiana de Ptolemy, uma silhueta imponente que parecia sugar a luz ao seu redor, deixando apenas um vazio faminto. Suas janelas não refletiam luz, mas brilhavam com uma energia sobrenatural e faminta, como olhos predatórios piscando na escuridão, prometendo devorar almas inteiras.
Em um dos bastiões mais altos, um que servia como um estábulo para criaturas, Thorfen, um dos Generais Titânicos, fazia seus preparativos com uma precisão mecânica. Seus movimentos meticulosos enquanto verificava as correias na sela de seu dragão de guerra — uma criatura de escamas cor de basalto que rosnava baixo enquanto o vento açoitava a torre, suas asas membranosas batendo inquietas contra as correntes que a prendiam.
— Você tem certeza disso, Thorfen? — Zenobia, outra General Titânica, emergiu das sombras, seu cabelo dourado cascateando como fios de ouro derretido sobre os ombros, e sua roupa militar justa destacando sua figura bela e letal, facilmente a destacando dos soldados orcs acorrentados e dos demônios de olhos brancos que andavam de um lado para o outro, grunhindo. Ela cruzou os braços, inclinando a cabeça ligeiramente, seus olhos azuis fixos nele. — Você não é um dos mais fortes de nós e mesmo assim está pensando em ir para dentro do território inimigo?
Thorfen não se virou imediatamente, continuando a guardar um conjunto de pergaminhos enrolados em um compartimento selado na sela. — Estive estudando todos os mapas de Sancro por meses, Zenobia. Procurando qualquer indício, qualquer pista que aquele maldito herói deixou sobre a espada. — Ele parou e finalmente se virou para ela, o rosto marcado por uma frustração antiga, seus olhos negros queimando com uma determinação teimosa. — Não há nada. Mesmo depois de tanto tempo controlando aquela área, nem Qin parece ter descoberto qualquer coisa. É perda de tempo.
— Então por que ir? — ela perguntou, a voz suave, mas cortante.
— Porque — disse Thorfen, fechando o compartimento com um baque surdo que fez o dragão bufar uma nuvem de fumaça sulfúrica, virando-se completamente para encará-la, seu peito se expandindo com uma respiração profunda que revelava o peso de sua frustração —, já que passei tanto tempo nisso, antes de desistir de uma vez, decidi ir ver a cidade com meus próprios olhos. Afinal, mapas só contam metade da história.
— Se você for reconhecido...
— Eu não serei — ele a interrompeu, a voz um trovão baixo que reverberou pelas paredes do bastião, cruzando os braços. — Sei como entrar sem ser notado. E não vou sozinho.
Um som interrompeu a conversa. Um ganido agudo, seguido por latidos roucos e desesperados. No entanto, os latidos não eram cães. A porta do bastião se abriu com um rangido metálico, e três figuras humanas nuas entraram correndo, tropeçando em quatro apoios como animais, suas peles imundas reluzindo com suor e sujeira sob a luz vermelha filtrada. Estavam imundas, cobertas de hematomas e feridas abertas que sangravam levemente, dois homens e uma mulher, todos usando coleiras que pareciam feitas de Ether, pulsando com uma energia negra. Eles se jogaram no chão, lutando por uma bola de borracha que havia rolado até os pés de Thorfen, rosnando e mordendo uns aos outros em uma disputa patética.
Um dos homens a agarrou com a boca, os dentes cerrados em torno dela, e trotou de volta, abanando o traseiro de forma grotesca, entregando-a a uma nova figura na porta com um gemido subserviente.
Aurora, a terceira General Titânica, sorriu ao emergir da penumbra, uma súcubo de beleza devastadora que fazia o ar ao seu redor parecer mais denso, seus longos cabelos cor roxa em forma de marias-chiquinhas balançando enquanto ela se movia. Ela pegou a bola, agora coberta de saliva, e fez carinho na cabeça do humano que a trouxe, arranhando atrás de sua orelha como se fosse um animal de estimação premiado.
O outro homem que falhou em pegar a bola encolheu-se no chão, tremendo violentamente, os olhos arregalados em terror puro. — Ah, Trovão... você falhou de novo — ela murmurou, a voz sedosa como veludo, inclinando-se para baixo com uma graça predatória. Ela chutou o rosto dele com precisão letal, o som de osso quebrando ecoou no bastião como um estalo seco, fazendo Zenobia erguer uma sobrancelha e Thorfen pausar por um momento. Ela não parou. Começou a espancá-lo, seus saltos finos perfurando a carne dele com pontadas ritmadas, seu rosto contorcido em um êxtase sombrio enquanto o sangue começava a se espalhar pelo chão. Quando ele caiu de lado, gemendo, ela começou a chutar sua virilha repetidamente, com uma fúria fria e metódica, até o sangue começar a manchar o chão de pedra em poças irregulares, sua risada baixa misturando-se aos gritos dele.
O homem, gritando e chorando em agonia, tentou se arrastar para longe, as unhas raspando inutilmente contra a pedra fria. — Aonde você pensa que vai? — Aurora riu, um som musical e aterrorizante que encheu o ar. Ela ergueu a mão com um gesto elegante, e correntes invisíveis, conectadas à coleira de éter, materializaram-se em um brilho negro, o puxando de volta com um tranco violento que o fez cair de costas. Ela o puxou para perto e continuou a chutar seu peito e pescoço, até que o homem parou de se contorcer e ficou imóvel, o peito arfando uma última vez antes do silêncio.
Zenobia observava com nada além de leve aborrecimento, seus lábios se curvando em uma linha fina enquanto cruzava os braços. — O que você está fazendo neste andar, Aurora? Essa ala é para os animais de Thorfen, não para os seus.
Aurora limpou uma gota de sangue do salto de sua bota com um movimento casual, e endireitou-se com um sorriso inocente. — Eu já terminei os preparativos — ela disse, animada, batendo palmas levemente como uma criança excitada. — A nova leva de soldados demônios especiais que você queria levar, Thorfen. Estão prontos. — Ela estalou os dedos com um estalo ecoante. O humano que trouxe a bola e a mulher se encolheram aos seus pés, tremendo em submissão. — Estão no auge físico, como você pediu. Mas... — ela bateu o dedo indicador na própria têmpora — ...não consegui colocar todo o conhecimento militar que normalmente instalamos em suas cabeças. Por isso, eles ainda são meio burros.
Thorfen olhou para o cadáver no chão e depois para os dois humanos trêmulos e deu um sorriso leve. — Perfeito. Eles não precisam pensar. Eles apenas serão meus seguranças. Não tenho planos de batalhar. — Ele acenou com a cabeça para Aurora.
O olhar de Zenobia se demorou no cadáver mutilado por um instante, sua expressão indecifrável, antes de se voltar para o general que já se preparava para partir. — Você já relatou sua... "caminhada"... para Lorde Ptolemy? — ela perguntou, a ênfase na palavra "caminhada" deixando claro o que ela achava de uma viagem não autorizada ao território de Qin.
Thorfen bufou. — Não vi necessidade. — Ele gesticulou com desdém. — Ele tem mais coisas no que pensar. Não vou incomodá-lo só porque estou dando uma volta. — Ele se virou, seus passos pesados fazendo o chão de pedra tremer enquanto se dirigia a Aurora, estendendo uma mão para que ela o seguisse. — Vamos. Me mostre esses seus novos soldados.
Aurora, prestes a segui-lo com um salto animado, parou e olhou para Zenobia por cima do ombro, um sorriso malicioso brincando em seus lábios, aproximando-se dela novamente com um balanço sedutor nos quadris que fazia suas marias-chiquinhas dançarem. — Sabe, Zeni... você está com uma cara meio para baixo. Tão entediada. — Ela gesticulou preguiçosamente para o corpo no chão, cutucando-o com a ponta da bota. — Nem isso te animou.
A súcubo se aproximou dela ainda mais, com um balanço sedutor nos quadris que invadia o espaço pessoal de Zenobia, tocando levemente seu braço. — Você deveria ir logo para algum lugar. Fazer uma boa guerra, um genocídio em massa. Você sempre se anima depois de um desses.
Zenobia permaneceu em silêncio por um momento, seu olhar desceu do rosto de Aurora para o homem morto aos seus pés. Então, lentamente, ela ergueu a cabeça, seu olhar passando pela súcubo em direção a uma das grandes aberturas do bastião, que dava para o céu manchado de vermelho de Zan, o vento uivando como um lamento distante.
A luz carmesim banhou seu rosto pálido, destacando os contornos afiados de suas feições. Assim um leve sorriso, lento e frio como o gelo, começou a se formar em seus lábios, transformando sua expressão de tédio em algo predatório.
— Acho que você tem razão — ela disse, a voz baixa e quase melódica, dando um passo para frente e afastando o toque de Aurora. — Espero que o próximo local que eu destrua seja um lugar bem alegre e vibrante.
Ela deu um passo, saindo das sombras com uma graça deliberada, sua postura se endireitando como se despertasse de um sono letárgico. — Eu adoro ver quando as luzes se apagam... e o terror começa.
E com isso, ela também começou a marchar, seus passos silenciosos contrastando com os de Thorfen, ambos os Generais Titânicos partindo para semear o caos, cada um à sua maneira.
Continua…



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